Créditos: Divulgação
01-12-2025 às 08h43
Amauri Meireles*
Conforme a mitologia grega, Pandora, mulher dotada de muitos dons, recebeu uma caixa dos deuses, com a recomendação de jamais abri-la. Se o fizesse, seriam liberados os tormentos, os infortúnios, os transtornos no mundo. Movida pela curiosidade, ela abriu o baú, soltando todos os males e, a partir daquele momento, espalharam-se as adversidades, as desventuras e a vida passou a ser marcada por terríveis aflições e sofrimentos.
Consta que no recipiente ficou somente a esperança, que podia ser vista de duas formas: a positiva, como um presente, que nos daria forças para superar obstáculos, ou a negativa, como o derradeiro mal, que nos ilude com promessas de um futuro melhor, prolongando a angústia e a decepção.
A partir dessa abertura, o incremento da insegurança passou a compor nosso ambiente, em razão da propagação de ameaças à preservação da vida e à proteção da espécie humana. E cada localidade passou a ter sua própria matriz de insegurança: a fome, a miséria, o terrorismo, os desastres naturais, a guerra, etc.
No Brasil, a nossa é a violência da criminalidade escancarada: ora a organizada, com destaque para os cibercrimes, o tráfico e a corrupção generalizada; ora a de rua, covarde, audaciosa, atemorizante.
Há um portfólio com inúmeras e variadas formas de enfrentamento elaboradas pelos sucessivos governos – na maioria das vezes com propósitos eleitoreiros – sempre com resultados pífios, porque preponderou a face negativa da esperança.
Porém, de repente, constata-se, através de pequenos acontecimentos, que a expressão positiva da esperança, “deitada eternamente no fundo do cesto” – ainda que não muito resplandecente – já começa a suscitar, sinalizando, de várias formas, as correções a serem feitas e os rumos corretos a serem seguidos. E essa esperança nos mostra que, fundamentalmente, a solidariedade é que nos dará forças para lutar contra – e vencer – as atribulações que nos tiram a paz, a serenidade, a harmonia, a confiança.
Estudos recentes demostram que o problema da criminalidade sempre foi estruturado de forma equivocada, ensejando, persistentemente, soluções inadequadas, paliativas. A grande preocupação sempre foi com a causalidade – vértice para onde fluem causas e refluem efeitos da criminalidade ou o local onde trabalham as Polícias – vale dizer, quase a totalidade do esforço voltado para “enxugar o piso”, descurando-se de minimizar ou até eliminar a persistente infiltração de água. É como tratar sinais e sintomas em lugar de tratar da doença. Enfim, a efetividade nunca esteve presente na elaboração de políticas, na elaboração de planejamentos.
Na verdade, a grande ocupação deveria ser com a mitigação, com o tratamento das causas e efeitos das ameaças, que geram a desordem, o que sempre foi relegado a segundo plano.
Para realizar a contenção da desordem, há obviedades que, há longo tempo, não têm sido percebidas (ou não têm sido praticadas), onde se destaca que, antes de se privilegiar a repressão, é necessário priorizar a prevenção. E como isso deve ser feito? Identificando fontes de vazamento.
Essa identificação nem sempre está disponível explicitamente, sendo indicada através de certos sinais.
Por exemplo, recentemente, o senhor Ministro Luiz Fux proferiu um voto salomônico e enigmático, segundo o qual, as guardas municipais podem fazer Policiamento Ostensivo Comunitário (neologismo), desde que respeitem as funções dos outros órgãos de segurança pública.
Vale dizer, arbitragem sensata, concedendo espaço para ambas instituições policiais.
O enigma está exatamente no “como” operacionalizar a equilibrada decisão. Não pela ação em si, mas pelo que ela pode refletir e ajudar na contenção da desordem (social, ética e humana), que, destacadamente, vem aflorando com a desobediência às regras e com o desrespeito aos valores, sob a perspectiva social e moral.
Objetivamente, o organismo social brasileiro está doente! E nesse quadro biopsicossocial, as Polícias nada podem fazer em relação às doenças biológicas, quase nada quanto às psicológicas, um pouco quanto às doenças emocionais, mas, muito, quando se instala uma situação de anomia, como a que estamos vivendo em nosso país.
E a origem está na distopia estatal, presente na periferia e nas comunidades, e, também, no mau-caratismo presente nas altas rodas refrigeradas a ar-condicionado.
A sinalização muito forte hoje é que não convém ampliar, equivocada e discriminadamente, a polícia robocop, os rambos, os caveirões, etc. para a polícia ostensiva comunitária. Sua destinação não exige esse desvio de recursos, diferentemente das forças públicas estaduais, que, além de realizar operações de policiamento ostensivo fardado, realizam operações de choque, de restauração da Ordem, dentre outras.
Desvendando o enigma: a guarda municipal veio para ajudar a corrigir um erro de base: a desatenção com as causas e efeitos, exigindo aumento expressivo das ações e operações repressivas. A Polícia Ostensiva Comunitária veio para somar, para ajudar a formar verdadeiros cidadãos, através de exemplos de solidariedade, de apoio, de altruísmo, de ética, de respeito, trabalhando em parceria, prioritariamente, com órgãos de educação, assistência social. Antes de correr atrás de ladrão e prender bandido, deve participar dos esforços para reduzir a marginalidade, trabalhando para reduzir os meios-cidadãos, os que pleiteiam direitos, mas não respeitam a ordem instituída.
*Amauri Meireles é Coronel Veterano da Polícia Militar de Minas Gerais. Foi Comandante da Região Metropolitana de Belo Horizonte

