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06-11-2025 às 09h10
Marcos de Noronha*
O que nos define como humanos? Já percorremos caminhos diversos sobre este tema. Um deles é: em nome de Deus, a Terra foi o centro do Universo e nós, a criatura preferida do Criador. Neste mundo dicotômico e polarizado, somos capazes de dividir o mundo entre nós e eles, e não se trata de algo recente, pois, como vocês irão ver, muitas sociedades humanas lidavam dessa forma em relação a outras sociedades estranhas.
Mesmo o termo “barbárie” vem do grego antigo e se refere aos bárbaros, ou ao som incompreensível da fala dos estrangeiros. Bárbaro, portanto, seria qualquer pessoa que não falasse grego e, consequentemente, fosse considerado inferior ou selvagem por isso. Se formos buscar a etimologia no latim da palavra barbáries, trata-se de algo associado à brutalidade. Na atualidade, a palavra bárbaro quer dizer cruel ou desumano.
A recente operação no Rio de Janeiro, que resultou em diversas mortes, segundo pesquisa da Datafolha publicada na Folha de São Paulo em 2 de novembro, foi um sucesso na opinião de 57% dos moradores da capital fluminense e da região metropolitana do Rio. O governador responsável por autorizar a operação tornou-se popular, aumentando sua aprovação. Se, nesse mesmo período, analisarmos as manchetes de diversos periódicos sobre o fato, deparamo-nos com informações que mais revelam o viés dos veículos do que a própria notícia, nos moldes da ética jornalística.
Na segunda, 3 de novembro, o Le Monde noticiou o medo dos museus europeus de serem roubados, como aconteceu recentemente com o Louvre, e, em sua coluna internacional, viajou para Israel, Gaza, EUA com Trump, Ankara e Ucrânia — mas não ao Rio de Janeiro, para noticiar a ação policial contra os traficantes. Um dia antes, o Estadão, de São Paulo, trouxe matérias sobre o aumento da vigilância com câmeras públicas e privadas na cidade; outra, sobre a PEC da Segurança; e, em seu espaço aberto, críticas feitas por leitores à operação carioca, que preferiram chamá-la de massacre e chacina.
Já a CartaCapital estampou na capa a manchete “Gaza? Não, Rio” e o subtítulo “Em operação eleitoreira e ineficaz, Cláudio Castro promove um banho de sangue no Alemão, mas passa longe de impor uma derrota ao crime organizado”. Após atribuir a vitória de Milei na eleição argentina à ajuda milionária de Donald Trump na renovação das cadeiras dos deputados e senadores, dedicou-se à operação no Rio, estampando nas páginas internas o título “Massacre Inútil”.
O periódico, um dos principais veículos alinhados à esquerda, defende que tal operação está longe de ser uma opção para derrotar o crime organizado que assola o país — ao contrário do que aposta o governador do Rio, apoiado não só pelos moradores, mas por outros governadores, diante da dramática situação do crime organizado e das tentativas internacionais, lideradas pelos EUA, de associá-lo ao terrorismo. Dentre as 88 facções mapeadas pelo Ministério da Justiça, o PCC de São Paulo e o Comando Vermelho do Rio são as mais destacadas.
Noticiários na TV e em alguns outros periódicos repetiram termos como massacre, chacina e morte de civis em vez de delinquentes ou bandidos, que, encurralados na favela, fugiram para áreas florestais do morro com armas e roupas camufladas. Diversos fuzis e pacotes de drogas foram apreendidos, e vários suspeitos, presos. A operação, autorizada por diversos mandados, visava também capturar um dos líderes do Comando Vermelho, que conseguiu escapar.
Mesmo que Lula não tenha criticado publicamente a operação, a CartaCapital comparou-a com outra que lhe é atribuída, na qual a Polícia Federal tomou do Primeiro Comando da Capital (PCC) uma soma considerável de dinheiro recentemente. Essa iniciativa, iniciada pelo Ministério Público de São Paulo juntamente com a Receita Federal e a Polícia Federal, descobriu que fundos de investimento e empresas financeiras na Faria Lima, em São Paulo, serviam para gerar, lavar, ocultar e blindar recursos ilícitos provenientes do tráfico de drogas e de falcatruas em postos de combustíveis.
Quanto à operação no Rio, os alvos foram o Complexo da Penha e o do Alemão, resultando em 121 mortes no final de outubro. Juntando a população oprimida ao seu lado e parte dos cariocas, o governador agora enfrenta acusações de “terrorismo de Estado” e recebe pedidos de impeachment por parte de opositores. Impulsionadas pelas cenas dos mortos enfileirados e semidespidos, postagens tentavam definir tais bandidos como vítimas da sociedade. Estas postagens foram feitas com o intuito de criar justificativas para o domínio territorial impetrado pelos traficantes? E a opressão popular imposta por eles? São suficientes esta tese de vítimas da sociedade para as indulgencias em relação aos crimes cometidos pelos traficantes mortos.
Policiais que integraram as operações tiveram suas ações todas filmadas com câmeras corporais. Esclareceram que se tratou de combate entre policiais e traficantes — muitos deles treinados —, e que, na mata, onde o confronto foi mais intenso, “não se tratava de civis passeando que por acaso foram alvejados”. Os corpos dos traficantes foram despidos por comparsas para causar impacto visual ao retirarem as roupas camufladas de combate e deixá-los apenas de cueca.
No confronto, drones dos traficantes — assim como aconteceu na Ucrânia — foram usados para despejar granadas sobre os policiais. Todas as armas apreendidas tiveram sua origem reconhecida e o caminho de sua entrada no país foi analisado. Provavelmente, os mais de 100 fuzis foram adquiridos por meio de peças contrabandeadas e componentes avulsos, montados em fábricas clandestinas ligadas ao tráfico. No Brasil — país incrível da América do Sul —, segundo o Instituto de Segurança Pública, entre janeiro e setembro deste ano foram apreendidos 593 fuzis somente no Estado do Rio, o maior número desde 2007.
O Comando Vermelho, em sua origem nas prisões brasileiras, é fruto da aliança estabelecida entre prisioneiros comuns e presos políticos por volta de 1979, durante a ditadura militar, sendo considerado, dentre as inúmeras facções em território nacional, a mais violenta. Nos locais em que estabelece seu domínio, não permite a presença do poder do Estado. Os moradores, para qualquer tipo de serviço, são obrigados a contratá-lo junto à facção, a preços mais elevados em comparação com os serviços públicos da cidade.
A duração e a intensidade do tiroteio foram captadas por diversos celulares. O governo federal, resistente em considerar essas facções como terroristas — mesmo após tantos anos ocupando espaços no Brasil, com recursos milionários e ramificações em diversas instâncias governamentais, políticas e até fora do país — vive uma crise sem precedentes na segurança pública. Pressionado por este último episódio, propôs a criação de um escritório emergencial de combate ao crime organizado, enquanto nove governadores de direita, reunidos, sugeriram o Consórcio da Paz, apoiando Cláudio Castro na megaoperação.
Ações americanas no Caribe de combate ao tráfico de drogas — atingindo diretamente Venezuela e Colômbia — mostraram suas intenções em relação a essas facções no Brasil, o que não entusiasmou o conluio STF/governo federal. A situação do país, agora exposta internacionalmente por denúncias de perseguição política e desrespeito aos direitos humanos, culminou em sanções objetivas que já afetam a população.
A Revista IstoÉ, em 31 de outubro, preferiu a manchete “A Guerra do Rio”, referindo-se à ação policial contra o crime organizado, seguindo com notícias sobre a cobertura da COP 30 no Pará. O Rio contrasta sua beleza exuberante com a insegurança proporcionada pela violência sem limites — resultado de crimes, corrupção, tráfico de drogas e bolsões de miséria. Estou embarcando para o Congresso Brasileiro de Psiquiatria no Rio, e colegas insistentemente postam vídeos tentando tranquilizar os indecisos, dizendo que há calma na Barra e na Zona Sul, e que viajem tranquilos.
Como podemos justificar o horror de humanos contra humanos? A civilidade diminui atos cruéis em razão das leis e da ética propagada? Não imagino, em Tóquio — de onde acabei de chegar após participar de um congresso internacional —, pessoas ocupando territórios e portando fuzis. Aliás, em nenhuma cidade do primeiro mundo essa cena, tão comum em diversos espaços do Brasil, poderia acontecer. Tornamo-nos insensíveis? Ou somos cruéis por sermos privilegiados, vivendo longe desses locais ocupados? Se conhecemos as estatísticas do alto número de homicídios no Brasil, por que alguns de nós se mostram indulgentes com crimes, organizados ou não? Sabemos que o homem, diante de tanta crueldade, gradativamente desenvolve uma insensibilidade reativa para proteger nosso próprio sofrimento. Será que atingimos esse nível?
Jared Diamond, falando de evolução e projetando o futuro da humanidade em seu livro O Terceiro Chimpanzé, arriscou associar o comportamento agressivo humano ao de nossos ancestrais. Lembrou os diversos genocídios documentados em nossa longa história e atribui ao incremento da possibilidade de matar à distância, com armas letais, o aumento dessas mortes. Comparando com os chimpanzés, reconheceu que são capazes de exterminar sistematicamente grupos rivais, como documentou Jane Goodall na década de 1970. Enquanto os gorilas (padrão encontrado também nos leões) poupam fêmeas e filhotes, os chimpanzés não respeitam essas diferenças. O autor alega que, dentre todas as marcas humanas — como arte, linguagem falada ou uso de drogas — o genocídio é a manifestação que mais aproxima seres humanos de animais.
Durante a ditadura militar na Argentina, mulheres grávidas presas políticas eram mantidas presas até darem à luz. Seus filhos eram criados por parentes dos militares, enquanto as mães desapareciam, como muitos outros prisioneiros. Nossos instintos agressivos são contidos por uma força contrária ao ato de matar. Por isso, considerar o outro como bicho de outra espécie pode facilitar o assassinato. Foi assim a disposição social promovida por Hitler no processo de eliminação dos judeus, repetida em diversos contextos por várias sociedades.
E a situação atual no mundo, em que a ciência nos faz reconhecer que somos todos Homo sapiens e, portanto, todos irmãos de sangue? Como dividir este mundo entre nós e eles? São milhares os diversos tipos de “outros”, diferentes entre si por inúmeros aspectos. Assim como os primatas antes de nós são territorialistas, nós, humanos, valemo-nos desse aspecto para justificar nossas crueldades.
Parece existir um código universal para a crueldade, assim como, especificamente, para o genocídio. Mas vejam o exemplo recente de 8 de janeiro de 2023, no Brasil. Dependendo dos meios de comunicação em que o indivíduo busca se informar, poderia considerá-la justa e a prisão de milhares de pessoas legítima, indiferente às opressões contra os acusados — transformados em “os outros” ou em “os adversários” —, distanciando-se completamente do drama das famílias afetadas.
Um sentimento ainda maior e mais cruel, proporcionado por palavras repetidas como “trama golpista”, “terroristas”, “criminosos”, “Vândalos”, “extremistas”, “idiotas úteis”, “massa de manobra”, dentre outras, ajudou a formar a opinião de “uns” sobre “outros”. Na Universidade de Brasília, em trabalho de conclusão do curso de Jornalismo, Brenda da Conceição Silva analisou as escolhas lexicais das coberturas do 8 de janeiro pelos principais meios de comunicação. Incluiu os canais GloboNews, Jovem Pan News e CNN Brasil para categorizar a invasão dos palácios em Brasília, observando falas de jornalistas e textos das tarjas. Apontou a mudança de duas emissoras — Globo e CNN — durante a cobertura, que passaram a condenar os participantes dos atos, enquanto a Jovem Pan manteve-se num léxico pouco negativo.

