Créditos: Divulgação
24-12-2025 às 19h00
Claudio Siqueira (*)
Acabei de ler que os papéis da Alpargatas (ALPA4), controladora da Havaianas, caíram perto de 3% na Bolsa em meio à polêmica recente nas redes. E isso já virou munição para a guerra cultural de sempre, como se barulho de rede fosse economia real.
Ao mesmo tempo, a Havaianas segue entre os produtos mais desejados lá fora. Ou seja, internacionalmente a marca se consolida como um ícone, um símbolo nacional indubitável. Aqui dentro, uma polêmica orquestrada, com alcance algorítmico, vira gatilho para investidores tirarem dinheiro.
Isso expõe um traço estrutural do nosso mercado: ele reage mais a impulso, moralismo de ocasião e narrativa do que a fundamento. A Bolsa de Valores brasileira acaba sendo operada, em grande parte, por gente visceral, pouco inteligente, contaminada por ideologia e viciada no rentismo.
Aqui entra a diferença que quase ninguém quer encarar: há investidor e há especulador. O especulador não quer construir nada, quer pegar a onda. Ele usa notícia e “sentimento” como instrumento de preço: sai na alta, empurra para baixo e recompra na baixa. Ele sabe que o barulho é provisório e lucra com ele.
Por isso, precisamos fazer uma análise mais calma, fria e focada do nosso mercado. Percebam: o governo Lula atua como um dique. Ele represa as pautas sociais emergentes mais radicais por meio de acordos com a burguesia nacional. Assim, direitos sociais são concedidos no limite do controle de danos, enquanto a burguesia financeira (bancos, especuladores e afins) obtém lucros absurdos com pouco investimento produtivo.
O interessante é que a Faria Lima e parte do mercado financeiro no Brasil não agem por pragmatismo, apesar de se venderem como “racionais”. Muitas vezes, gostam é de loucura: barulho, histeria, pânico moral. E aí aparece o paradoxo. Eles criaram um ídolo, um “deus mercado”, como se esse ídolo substituísse a realidade. Só que esse ídolo não confere a realidade a si próprio. Porque, no fim, a realidade mostra outra coisa: é justamente em governos do PT que o mercado financeiro encontra terreno mais confortável para lucrar com investimento e rentismo. Já no governo Bolsonaro, com destruição de políticas sociais e corte por todo lado, o país entrou em instabilidade, e a própria Bolsa também decaiu e recuou.
Ora, nós temos uma economia hoje crescente. Talvez não seja um colosso ainda, mas tem potencial enorme. Um país desindustrializado, aumentando o PIB apesar de concessões ao agro, concessões fiscais e cortes constantes em políticas sociais, ainda assim segue se movendo, quase como sozinho. Na pandemia, apesar de Bolsonaro, o Brasil sobreviveu por causa do seu povo e do seu trabalho.
Ora, esse mercado não dá para ignorar. Por que a Bolsa não acompanha isso com a mesma lógica? Porque muita gente prefere juros altos e giro de curto prazo. Não querem investir em empresas com potencial real. Não pensam, de forma nacionalista e patriótica, em estruturar empresas nacionais que incorporem o mercado mundial.
E o recente caso do boicote da extrema direita à Havaianas é prova disso. Esse patriotismo inverso é uma vergonha. A Havaianas é indústria nacional, emprega milhares de pessoas, representa o Brasil lá fora e gera valor simbólico e financeiro. No sentido burguês, é vitrine e rentabilidade. Aí um grupo, por uma relação ideológica falaciosa, religiosa até (no conceito de seita), tenta boicotar uma marca que desenvolve economicamente o Brasil. É o país sabotando a própria imagem, como se isso fosse virtude.
E aqui entra outra diferença: o investidor que retira por convicção ideológica, por narrativa, por “seita”, não é patriota. Se não for especulador puro, é investidor apátrida. Porque está atacando uma marca que dá emprego, exporta imagem do Brasil e disputa mercado lá fora. E, na prática, esse boicote teve um efeito contrário ao que eles queriam. O barulho virou propaganda involuntária. A marca saiu reforçada.
Esse barulho também funciona como cortina de fumaça. O caso do deputado Sóstenes, por exemplo, virou assunto por dinheiro vivo e investigação da Polícia Federal. E também aparece como último suspiro do Eduardo Bolsonaro, que perdeu o passaporte diplomático e, com isso, perde parte da pose de “interlocutor oficial” que tenta encenar.
Ironicamente, esse último suspiro deu um alento tanto à marca quanto a um senso de pertencimento pátrio, de brasilidade, por parte de brasileiros que não são apenas “a esquerda”. Tem também o isento cansado, que só quer viver a vida e trabalhar, sem ficar decidindo a qual policiamento vai ser submetido. Cansado e revoltado, ele começa a perceber que, ao dar vazão a boicotes ridículos, está trabalhando contra a imagem do próprio país.
O mínimo de nacionalismo é identidade de pertencimento, e a extrema direita está destruindo isso. E a esquerda não está “se aproveitando”. A esquerda sempre teve esse senso de pertencimento. Agora isso aparece como natural, porque o contraste ficou escancarado.
E aqui cabe uma correção que precisa entrar sem quebrar o raciocínio. A Havaianas pertence à Alpargatas, e a estrutura acionária relevante da companhia passa por grupos como Itaúsa e Cambuhy, entre outros. Ou seja, estamos falando de capital organizado, de bloco de controle, não de marca “solta no ar”. É uma marca que dá lucro a uma burguesia nacional ligada ao capital financeiro e, ao mesmo tempo, virou representante do Brasil e fonte de divisas simbólicas e financeiras.
Então, a extrema direita, ao bater de frente com essa marca, tentando prejudicá-la, bate de frente com o próprio mercado. E esse mercado, apesar de ter muito investidor movido por impulso e muito especulador surfando onda, também tem empresários e grupos de controle que não querem perder dinheiro por disputa ideológica e narrativa. A política pode ser teatro, mas o capital não rasga lucro por capricho.
Assim, o cenário tende a ficar mais nítido. Esse mercado costuma dar “bênção” ao Lula porque Lula representa ordem e estabilidade. E o mercado opera como se a esquerda não tivesse sucessão clara ao Lula. Isso empurra a leitura de um novo mandato como previsibilidade, o que abre espaço para crescimento de Bolsa e de negócios. Ao mesmo tempo, essa estabilidade abre caminho para um candidato neoliberal radical, travestido de moderado, tentar suceder a Lula com discurso de “responsabilidade” e “normalidade”.
Como nossas elites financeiras são imediatistas e não têm pertencimento pátrio, esse futuro governo tende a vender “estabilidade” com corte social e choque, repetindo um padrão que o Brasil já viu no governo Bolsonaro: o país fica mais frágil por baixo, a vida real piora, e depois a conta chega. Quando chega, quem segura o país não é o “deus mercado”. É o povo trabalhando.
(*) Claudio Siqueira é jornalista

