
O tempo passa lentamente e para me distrair desenvolvi a minha audição, identifico os meus vizinhos pelo jeito deles agirem. CRÉDITOS: Freepik
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08-04-2025 às 09h28
Rita Prates*
Hoje acordei um pouco indisposta e bastante aborrecida ao recordar a minha discussão com o meu indeciso namorado, amante ou sei lá o que. Tivemos duas grandes brigas nesses vinte anos e em todas eu sumia alguns dias, jurava que nunca mais iria vê-lo. Jurava em falso entre lágrimas com medo da solidão que me esmagava sem dó. Ele recolhia os meus caquinhos, me colocava em seu colo e prometia o impossível; largar a esposa, casarmos e eu me tornar mãe de uma menininha.
Como compensação pelos anos de espera fui presenteada com um apartamento e com o pagamento das taxas e impostos. Aceitei, confiante que um dia ele moraria comigo. Hoje quem me faz companhia é um cachorro preguiçoso que há anos vive deitado aos meus pés sem se mexer, e três pássaros que de tão tristes pararam de cantar.
Cinco anos se passaram depois da última briga que tivemos. Absorta em recordações larguei a xícara do café, me ajeitei na cadeira ao sentir uma dor aguda no coração, que me sufocava por dentro e por fora. O meu único desejo era que ele tocasse o interfone, viesse me abraçar e me tirar da solidão.
Moro em um edifício pequeno de quatro pavimentos com dois apartamentos em cada andar. Vivo no terceiro piso. O tempo passa lentamente e para me distrair desenvolvi a minha audição, identifico os meus vizinhos pelo jeito deles agirem. Reconheço-os pelo som das suas pisadas, do bater das portas e pelo timbre de suas vozes que dançam como partituras sobre a mesa posta. Mesmo os sussurros consigo decodificá-los, e assim monto o quebra cabeça da vida secreta de cada morador.
Sempre fui muito reservada devido ao meu status de amante. Poucos contatos fiz com os vizinhos, mas para me redimir, conversava com a senhorinha viúva do primeiro andar, cujas janelas ficavam sempre fechadas. Ela me mostrava fotos dos netos que nunca a visitavam, falava dos filhos que estavam sempre ocupados e de suas doenças diárias.
Também conversava com o velho do segundo andar. Esse sim era agradável, contava dos livros que lia, dos teatros e dos filmes que assistia. Discreto, jamais perguntou sobre o senhor que frequentava o meu apartamento, conhecido político da mídia e respeitado pelas suas ideias conservadoras sobre família e propriedade.
Não me agrada a psicóloga do quarto andar que tem três filhos fisicamente distintos. O marido é um grosso, de fala chula, medíocre nos ganhos e conveniente em fingir que não percebe as escapulidas da mulher. Fieis aos sermões de domingo e aos amigos ricos da esposa. Desfilam nos cultos como um casal perfeito e invejável.
No apartamento do segundo andar, abaixo do meu, houve um bafafá há uns três anos atrás com o escroto do velhote galante. Namorava uma senhora rica, divorciada, que lhe dava boa vida. Uma tarde ela entrou no apartamento dele, e, na surdina, o pegou com uma moça nua na cama. Todos ouviram a namorada esgoelar que ele esqueceu de desligar o celular, e ela o escutou elogiar as marquinhas de biquíni na jovem.
Furiosa armou um barraco e deu na cara do velhote, que partiu para cima da moça, descabelou-a, arranhou as marquinhas e a socou com fúria. Ao ser contida pelo traíra, saiu e bateu a porta com tanta força que abalou as estruturas do prédio e dos moradores infiéis, que viram uma pequena amostra do que pode fazer uma mulher furiosa quando é traída.
Ela quis voltar para quebrar todos os cristais da casa, mas ele já havia trancado a porta e sentado no chão com o coração em disparada. Pálido e respirando com dificuldade agradeceu ao médico pela ponte de safena, senão teria enfartado.
No mesmo andar do meu apartamento mora um casal gay que faz comidas sofisticadas por encomenda. O cheiro é delicioso, às vezes o rapaz tímido, de rabo de cavalo, batia na minha porta e deixava uma embalagem com uma de suas obras primas. Eu retribuía com flores. Há muito não recebo esses mimos, acho que se esqueceram de mim.
E para não alongar mais, há uns dois anos uma moça mudou-se para o primeiro andar. Ela tem dois gatos e namora um homem casado que trabalha na mesma escola que ela. Eu a ouvi reclamando dos abandonos dos finais de semana, das festas do colégio em que ia sozinha e o via com a mulher e os filhos. Ele prometia, como todos prometem, que um dia ficaria com ela. Primeiro ponderou que não poderia largar as crianças pequenas e depois porque a mulher estava com câncer.
Eu ouvi, por Deus que ouvi ela desejando a morte da mulher do amante. Não deu outra, a dona morreu em seis meses. Tempos depois ele casou-se com a sobrinha da falecida. Alegou, enquanto ela chorava aos prantos, que as crianças gostavam da prima e assim evitou novos traumas. A amante sofreu horrores durante vários meses. Depois, como eu, acabou se conformando em representar o papel secundário na vida do parceiro.
A pandemia do coronavírus não me afetou, pois vivo enclausurada neste apartamento há mais de cinco anos. Ontem ouvi vozes e batidas na porta, não fui atendê-los, me sentia imobilizada, presa na cadeira e em recordações.
Hoje, para a minha surpresa, o meu apartamento foi invadido pela polícia, por um pseudo comprador do meu imóvel e vizinhos curiosos. Ao me verem sentada sem me servir do café frio, da torrada dura e das frutas secas, secas e desidratadas como eu, deram um grito de pavor, o que me deixou também assustada.
Olhei para o meu cachorro deitado aos meus pés e ele estava mumificado, e, como eu, não se manifestou com a invasão. Eu estava estática, petrificada, porém me sentindo em outra dimensão. Fitei os olhos transtornados dos vizinhos que, ao me verem deixada tantos anos ao léu, exposta ao vento e ao frio, estava transformada em uma múmia, seca e resistente ao tempo e ao esquecimento.
Pensei sorridente – talvez eu me torne uma múmia famosa e saia em um artigo de jornal como a mulher morta, que habitou o esquecimento, e conviveu silenciosamente durante anos com vizinhos intangíveis.
Olhei em volta e vi a porta aberta. Corri para fora, desci as escadas e quase cai ao tropeçar com o meu cachorro que latia de alegria. Fui me aquecer no banco da calçada, enchi os pulmões com o ar fresco da manhã, abri os braços, deixei a brisa me levar. Voei, finalmente liberta, e flutuei feliz junto com o meu cachorro e os três canários que cantavam sem parar.
* Rita Prates é mestre em Administração, professora de graduação e de pós-graduação em Gestão e possui grande vivência em consultoria na área de Gestão Empresarial.