Vender a janta para comprar o almoço. E depois?
A fábula da galinha dos ovos de ouro nos lembra que pensar apenas no dinheiro imediato não garante a felicidade a longo prazo.
25-12-2023 às 08:42h.
Rogério Reis Devisate*
O compreensível choque na política econômica argentina pretende não deixar pedra sobre pedra. De fato, repetir as coisas só causaria o mesmo resultado e sabemos que esparadrapo não serve para curar infecção. Então, inovar é preciso e, por isso, o Decreto Presidencial de Necessidade e Urgência intervém fortemente na economia e desregula-a, retirando um monte de regras e amarras legais. Assim, se institui liberdade negocial ampla e o afastamento do Estado de várias questões, revogando-se normas sobre vários setores, incluindo a locação de imóveis, os planos de saúde e a venda de terras a estrangeiros.
Notamos que quase tudo que o decreto revoga envolve atividades que podem impactar a economia de imediato e não carregam consigo riscos à Soberania Nacional ou à própria configuração dos atuais limites territoriais do país, como, ao contrário, ocorre com a questão da liberação geral da venda de terras a estrangeiros. Este último tema permitirá que estrangeiros possam comprar mais do que o limite hoje existente, de 15% da área de município, província ou do país. Tudo poderá ocorrer.
Entretanto, a fábula da galinha dos ovos de ouro nos lembra que pensar apenas no dinheiro imediato não garante a felicidade a longo prazo. Abrir as terras argentinas a estrangeiros e sem limites, como proposto, deve aquecer a economia a curto prazo e aumentar o fluxo de recursos, diante da avidez estrangeira na aquisição das férteis terras argentinas.
Observemos o detalhe de que não se está a tratar da venda de imóvel a pessoa física e que normalmente focaria na aquisição de casa, apartamento ou pequena área. O foco da medida é liberar a aquisição para as grandes empresas do setor. Isso deve nos fazer refletir.
Vejamos o exemplo do México, que poderia ter Hollywood se não tivesse vendido a Califórnia, o Texas e o Novo México para os Estados Unidos. O México perdeu 55% do seu território por estar empobrecido por 11 anos de guerra por Independência, precisando levantar fundos urgentes e, para isso, à época promoveu a venda de lotes de terra por baixo preço e a crédito, com isenção de impostos e taxas, por 5 (cinco) anos. Em plena Marcha para o Oeste e atraídos pela campanha, colonos norte-americanos acabaram atravessando a fronteira. A chegada dos estrangeiros começou silenciosa, por livre ato dos colonos. A fixação das famílias fez com que tensões separatistas surgissem, até que, em 1835, ocorresse rebelião que deu origem à República do Texas, que vigeu até o ano de 1845, quando o Congresso dos EUA votou pela sua anexação à União.
A partir daí, o enfraquecido e empobrecido governo mexicano cogitou defender a sua Soberania e expulsar colonos rebeldes na região da Alta Califórnia, quando os norte-americanos enviaram uma pseudo expedição científica, capitaneada pelo militar John Frémont. Logo se criou uma república independente que, em seguida, também se juntou aos Estados Unidos. A questão evoluiu para o Tratado de Guadalupe-Hidalgo, firmado em 1848, formalizando a cessão da Califórnia e de outros territórios.
Hoje, o Texas tem a 3ª maior economia dos EUA, só ficando atrás da Califórnia e de Nova Iorque. É terra com petróleo, gás natural e outras riquezas. A Califórnia é o estado com o maior número de milionários dos EUA, tendo a região de Hollywood, a base de foguetes de Houston, as áreas com o maior rebanho bovino dos EUA, os ricos poços de petróleo e gás e os territórios onde se cultiva o vinho californiano.
Na contramão desse exemplo, após a recente aquisição de 100 hectares (apenas) por chineses, os Estados Unidos viram necessidade de modificar a sua visão e resistir a essas aquisições. O que vale para os outros não vale para si.
Tudo isso nos serve de alerta, quando parece que passou a época de paz global e movimentos expansionistas recomeçam, com o tabuleiro da geopolítica recebendo novos jogos de guerra e jogadores com vontade de sentar na melhor mesa de jogo.
A questão não envolve apenas a comercialização privada de terras. Se esse fosse o caso problema algum haveria, cada um compraria e venderia o que quisesse e a vida seguiria feliz. A questão é o motivo pelo qual os Estados Unidos resistem a vender a estrangeiros terras férteis e agricultáveis, como no exemplo citado. O foco é estratégico, nesse mundo globalizado, onde as fronteiras são menos os limites territoriais de um país e mais a linha divisória entre quem tem grande capital para ter acesso à terra e a água e, assim, controlar o fluxo de capital e de alimentos acessíveis – e quem implorará por ter apenas uma parcela de terras férteis, água e comida, em previsível futuro próximo.
De fato, assusta a conclusão a que chegaram os 500 líderes mundiais que se reuniram, em 1995, no luxuoso hotel The Fairmont, na Califórnia: cerca de 20% da população bastaria para assegurar as necessidades produtivas mundiais. Nesse caso, fica a pergunta: o que fazer com os 80% restantes? O quadro terrível se agrava com a possível futura carência de comida e água, com países e povos ainda os acessando facilmente e os que sofrerão com fome e sede, principalmente quando se prevê que o planeta terá 10 bilhões de habitantes em 2050.
Países como a China, com a maior população do mundo, precisam de constante aumento na aquisição de alimentos. Por qual motivo ficariam apenas comprando produtos se poderiam comprar as terras e produzir, eles mesmos, para o seu consumo? Esse contexto não é apenas imaginário.
Resgata a memória do que a antiga URSS fez com as férteis terras da Ucrânia, durante a crise generalizada e a grande fome conhecida como Holomodor, que levou à morte milhões de pessoas, nos anos de 1932/1933.
Ninguém sabe o futuro, mas há indicativos que nos permitem avaliar cenários e vaticinar a respeito. Nada acontece por acaso ou surge do nada: toda consequência tem uma causa, as coisas costumam ter explicações lógicas, a História é cíclica e os acontecimentos se repetem.
Ao mesmo tempo, o olhar futuro explica melhor os fatos do passado, já que o cenário político é cercado de mistérios, como nos alertava Heródoto, antigo historiador grego. A Argentina já teve o maior PIB per capita do mundo em 1896. De lá para cá, virou até exemplo do que não se fazer, em matéria intitulada “The Parable of Argentina” (A Parábola da Argentina), publicada na revista The Economist, em 15.02.2014. Hoje, vive à sombra dos dourados dias ensolarados de outrora.
Por falar em números, os países mais populosos do mundo são a China e a Índia: cada um com cerca de 1 bilhão e 400 milhões de pessoas. Então, se corporações ou habitantes, de cada um desses países, decidirem comprar vastas terras na Argentina, sem limites de tamanho, enviando para lá 10% (apenas) da sua população adulta, estaríamos falando em 150 milhões de pessoas. Isso é quase 3 vezes a população da Argentina (em torno de 46 milhões de pessoas).
Seriam esses minoria em seu próprio país ou passariam, no futuro, por mais privações do que hoje, sofrendo com alta de preços e pouca oferta de água e alimentos. Aliás, já há estrangeiros
com grandes porções de terras argentinas: algo em torno de 15 milhões de hectares, segundo dados do seu registro nacional de terras rurais, havendo quem, sozinho, possua cerca de 655 mil hectares.
Temos defendido a ideia de que se façam parcerias e fomento das atividades agrícolas, mas não a venda de terras a estrangeiros sem controle do Estado ou fixação de limites sérios, por este, sob pena de se tornar vulnerável a soberania alimentar, a economia local e a Soberania Nacional. Por fim, como a questão não envolve apenas o direito privado e sim o direito público e as questões de Estado, ampliemos esse micro cenário para o mundo, para imaginar situação distópica, com falta de água, fome e inimagináveis doenças daí decorrentes. Só assim talvez percebamos o quanto está em jogo hoje. Que não se acorde com arrependimento e ressaca, no dia seguinte!
*Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária.