
Desenvolvimento tecnológico é soberania nacional - créditos: divulgação
14-09-2025 às 08h48
Claudio Siqueira (*)
A notícia não é nova, mas ninguém está falando muito disso: a Fiocruz desenvolveu e patenteou uma tecnologia própria para vacinas de RNA mensageiro. Isso, que deveria estar nas manchetes e nos debates políticos, passou quase em silêncio. Isso toca numa ferida profunda demais, nossa dependência científica e nossa subserviência tecnológica diante de grandes laboratórios estrangeiros, principalmente dos EUA.
O que está em jogo aqui não é só uma fórmula de vacina. É soberania.
Hoje, mesmo quando temos capacidade de produzir imunizantes — e temos — estamos presos a contratos, licenças, royalties e barreiras comerciais impostas por conglomerados privados que controlam a propriedade intelectual da maior parte da biotecnologia mundial. A perversidade é que essas empresas não descobriram as vacinas. Elas apenas patentearam o uso industrial de descobertas feitas por pesquisadores — a maioria deles formados em universidades públicas.
Sim. A ciência básica que permitiu a criação das vacinas de mRNA contra a Covid-19 foi feita em instituições públicas, com dinheiro público, por cientistas que depois foram contratados, cooptados ou absorvidos por universidades ou empresas privadas no exterior. Muitas dessas universidades estadunidenses são formalmente “filantrópicas”, sustentadas com isenções fiscais, doações bilionárias e recursos públicos. O lucro, no entanto, fica 100% na esfera privada.
É um modelo colonial: o conhecimento é extraído do Sul global e periferia, lapidado no Norte com dinheiro público é convertido em monopólio privado — protegido por leis internacionais que punem qualquer tentativa de quebrar o ciclo.
No Brasil, a equação é ainda mais cruel. Formamos nossos melhores cientistas em instituições como a USP, UFRJ, Unicamp, UFMG, UNILA, Fiocruz — e depois os perdemos. Ou para laboratórios estrangeiros, ou para universidades estrangeiras.
Enquanto isso, seguimos comprando vacina pronta, pagando royalty, importando microchip, terceirizando a inteligência, ajoelhando diante de patentes que, no fundo, nunca deveriam ter sido privatizadas.
O gesto da Fiocruz, nesse contexto, é mais político que técnico. Ter uma plataforma nacional de mRNA patenteada no Brasil é um divisor de águas (se soubermos usá-la). É preciso proteger, financiar, desenvolver e blindar essa conquista. Porque, sim, ela será atacada. Vão tentar desacreditar, sabotar, comprar ou congelar o projeto. Porque ele rompe um ciclo de dependência.
A pergunta que fica é simples: quem está disposto a bancar um projeto nacional de verdade, com ciência pública, saúde soberana e desenvolvimento tecnológico autônomo?
Ou vamos continuar formando os cérebros que vão enriquecer outros países — enquanto aqui seguimos exportando soja, minério e servidão?
Mas não podemos ficar deprimidos, continuando a conversa sobre o recente protagonismo brasileiro, a ciência pública brasileira não para de surpreender — e de nos colocar diante de escolhas urgentes.
Depois de a Fiocruz patentear, finalmente, uma plataforma nacional de vacinas de mRNA, aparece agora a polilaminina: um remédio desenvolvido pela UFRJ, junto ao laboratório Cristália, que promete regenerar a medula espinhal lesionada. Recuperar movimentos perdidos. Devolver autonomia a quem ficou preso ao próprio corpo.
Aí surge a pergunta inevitável: será que vamos deixar mais essa descoberta morrer em papel de patente ou burocracia? Deixar que ela vire objeto de lobby, de parcerias vantajosas para empresas estrangeiras, de dependência externa de insumos, de custo inflado?
Mais uma vez, a realidade bate: formamos a base científica — a descoberta do mRNA, a da polilaminina — mas quem detém poder tecnológico, quem lucra, quem decide sobre uso, quem detém acesso, permanece o mesmo grupo global. Nosso corpo produz a ciência. Mas não somos donos das aplicações.
A polilaminina exige financiamento público massivo, regulação clara, comprometimento do Estado para garantir que ela chegue a quem precisa — não apenas a quem pode pagar. Exige que a patente seja nossa, que nós decidamos os preços, que o tratamento seja universal.
Se a Fiocruz pode patentar vacinas de mRNA, se pesquisadores brasileiros descobrem regeneradores poderosos de medula, então não há desculpa para sermos eternamente terceiros em nossa própria terra.
Ou continuamos exportando terra, cérebro e biodiversidade ou erguemos uma estrutura de poder tecnológico e científico que nos pertence.
Patente nacional é poder. Ciência pública é soberania.
A cura, quando se torna monopolizada, deixa de ser disso que chamamos de bem comum.
E a saúde digna não pode esperar.
(*) Claudio Siqueira é jornalista