
CRÉDITOS: Divulgação
15-07-2025 às 08h22
Sérgio Augusto Vicente*
A vida na roça nas décadas iniciais do século XX era de poucos recursos em diversos sentidos. A assistência médica, as práticas de cura e tratamento oficialmente reconhecidos pela medicina praticamente inexistiam para essas comunidades. Além da fé, o curandeirismo, a solidariedade e a ajuda mútua eram os recursos disponíveis numa sociedade desprovida de um Estado promotor de políticas públicas de bem-estar social, como previdência, saúde e educação. Apesar de condenadas e perseguidas pela medicina oficial nas cidades, as ervas medicinais, as benzeções e rezas eram bastante comuns. A crença no poder de cura da fé estava profundamente arraigada na mente dessas comunidades.
Patrocínia vinha de Portugal com arraigada fé cristã. Conservou, durante anos, o hábito de frequentar a famosa capela de Nosso Senhor do Aflitos de Bom Sucesso, localizada há alguns metros da fazenda em que morava antes de comprar o sítio Buraco Fundo. A capela, à época, tinha fama de milagrosa na religiosidade popular e atraía muitos fiéis da redondeza. O monumento religioso fora construído em 1864 pelos irmãos Mathias José da Silva Guimarães e Francisco Antunes da Silva Guimarães – respectivos pai e tio do escritor e jornalista Heitor Guimarães –, que, após sobreviverem a uma queda provocada pelo desabamento da ponte de Bom Sucesso, que ligava Vargem Grande a São Pedro de Alcântara, prometeram construir a capela como sinal de agradecimento ao sagrado.
A ponte e a capela ficavam localizadas na região em que hoje está a sede da fazenda do Sr. Silvio de Abreu. Durante anos e anos, muitos para lá se dirigiam à procura da interseção de Nosso Senhor dos Aflitos. Patrocínia, entre os vários afazeres que tinha, dedicava suas sextas-feiras a varrer a capela. Cumpria a tarefa religiosamente.
Outra capela de Sobragy que começava a ser bastante procurada por fiéis nesse início de século era a do Divino Espírito Santo, construída em 1902, por d. Clara Teixeira em agradecimento pela cura do marido, João Nazário Teixeira, pai de Breno Nazário Teixeira e Edvar Nazário Teixeira, que fora acometido por uma grave convulsão cerebral. O local também se tornou ponto de atração de grande devoção popular.
Patrocínia também trazia de Portugal a fervorosa crença popular em Santo Antônio. Em todas as situações difíceis, como doenças, problemas financeiros, perdas de objetos pessoais, etc, diziam que ela “responsava Santo Antônio”. Esse ritual, tradicional na cultura portuguesa, consiste em fazer uma oração invocando o santo milagreiro.
Segundo relatos orais da família, vizinhos e amigos acreditavam no poder de oração de Patrocínia, o que a teria transformado numa espécie de benzedeira ou curandeira da região. Toda a mística que se formava em torno dela era reforçada pelas supostas reações “estranhas” que eventualmente se manifestavam em seu corpo, como a prostração na cama, o enrolar da língua e a sensação de fraqueza muscular. Esses sintomas repentinos eram interpretados como espécies de “sinais” que antecediam as supostas “visões sobrenaturais”.
Diversos relatos confirmam a crença popular em seu poder de cura. Certa vez, a filha de um administrador de uma fazenda vizinha, o Sr. Vilela, teria sido curada de uma grave queimadura no rosto, após cair com uma porção de pólvora nas mãos. O remédio caseiro feito com ervas, acompanhado da oração, teria sido decisivo para a recuperação da pele da menina, deixando-a sem nenhuma sequela. Em outra circunstância, um homem de nome Chico Carolina cortou o pé, e o curativo de bálsamo teria curado a ferida. Patrocínia também tinha fama de boa parteira, tendo realizado o parto de diversas grávidas nas imediações de São Pedro de Alcântara, Cotegipe, Espírito Santo e Vargem Grande.
Sua força de oração também teria alcançado a graça de encontrar coisas desaparecidas. Sua bisneta, Nair Gonçalves Vicente, recorda-se de duas histórias que lhe foram contadas na infância: a primeira diz respeito ao desaparecimento de uma porca; a segunda é referente ao roubo de uma lata de leite.
Certo dia, Serafim acordou e não encontrou sua porca no chiqueiro. Depois de tanto procurá-la em vão, pediu ajuda a uma benzedeira, dona Mariana Lessa, residente em Espírito Santo (atual Sobragy). Perguntando àquela senhora sobre o paradeiro do animal, foi informado de que a porca estaria morta, dentro de uma lata, na casa mais próxima do sítio. Após comentar com a vizinha sobre o assunto, ela teria ficado constrangida, sentindo-se acusada injustamente.
Depois da pista falsa, Serafim não sabia mais o que fazer. Não lhe restava, portanto, outra possibilidade: pedir à esposa que recorresse à intercessão do santo milagreiro. Além da tradicional oração, Patrocínia acendeu uma vela, que teria tombado exatamente para o lado em que a porca se encontrava. A pista não poderia ser mais certeira, trazendo a resposta tão esperada. Após seguir a direção da vela, Serafim encontrou o bicho preso dentro de um buraco no pasto.
O caso da lata de leite também é bastante curioso. Dois garotos da vizinhança, residentes na chamada “Grota do Degredo”, roubaram o objeto no sítio de Patrocínia e Serafim. A “responsa ao Santo Antônio” teria mostrado, mais uma vez, sua eficácia. Num belo dia, pela manhã, a mãe dos autores do roubo teria comparecido ao sítio a fim de entregar o objeto pessoalmente aos donos.
Em conversa com Patrocínia, a mulher se desculpava pelo erro dos filhos e confessava que, de uma hora para outra, se viu profundamente atormentada por uma voz que sussurrava insistentemente em seu ouvido: “devolve a lata da dona!”. Segundo ela, sua paz mental só teria se restabelecido após a decisão de devolver o objeto.
Nem mesmo a descoberta da causa do incêndio no sítio deixou de ser atribuída ao poder de oração de Patrocínia. Após se mudar para a nova residência, o casal teria ouvido a confissão da boca do próprio autor do crime, que, surpreendentemente, era um dos subordinados de Antônio da Silveira Gomes Sobrinho. O antigo proprietário do sítio, que, na ocasião do incêndio, ainda não havia desocupado a casa, teria mandado o homem atear fogo na plantação de café. Não se sabe exatamente por que razão, mas o vendedor estava determinado a prejudicar o comprador, antes mesmo de passar a terra às suas mãos. Vivendo dos favores e dos laços de dependência trocados com seu antigo senhor, o autor do incêndio não teria suportado o sentimento de culpa. Arrependido da maldade cometida, teria procurado Serafim e Patrocínia para pedir desculpas.
Além de Santo Antônio, Patrocínia também tinha intensa relação com Santa Bárbara e Santa Luzia. A esta pedia proteção aos olhos e àquela suplicava bênçãos à natureza, para que do céu caíssem chuvas calmas capazes de molhar a terra e favorecer o êxito nas lavouras, livrando-lhe das ameaçadoras tempestades que pudessem colocar em perigo a casa, a família, os animais e as plantações. Toda essa relação de respeito e intimidade com o divino não se dissociava de um profundo respeito às coisas da natureza.
Duas pequenas imagens de Santa Bárbara e Santa Luzia, emolduradas em madeira, datam dessa época. Ambas pertenceram à matriarca, que delas não abria mão. A sede do sítio se transformou, definitivamente, em seu oratório. Ali permanecem até hoje aliviando a alma e os corações da família nos momentos de tensão vividos durante diversas tempestades que atemorizaram gerações da família. A bisneta Nair manteve a tradição, transmitida pelas tias-avós. Ana Maria Vicente, filha de Nair e tataraneta de Patrocínia, foi a primeira a se apegar às duas imagens e a abraçar a missão de conservá-las carinhosamente, mantendo-as em seu quarto, ao lado da sala de estar.
Esses símbolos de devoção, além de atravessarem gerações, talvez reflitam a preocupação da matriarca com a iniciação dos filhos na doutrina cristã. Manoel, o primogênito, quando criança, ainda na fazenda de café de Dona Mariana, recebeu os primeiros ensinamentos catequéticos através da Cartilha da Doutrina Cristã, de A. J. de Mesquita Pimentel, editado, em 1897, pela Tipografia da Papelaria Ribeiro, do Rio de Janeiro. O livro de diminuta proporção, logo na folha de rosto, informava ao leitor que trazia “toda a doutrina e orações precisas ao ensino dos meninos e meninas; orações para a Missa, Confissão e Comunhão; modo de ajudar à Missa e rezar o Rosário, a Coroa e a Via-Sacra”. E não só tratava de assuntos religiosos: também fornecia o sistema métrico, a descrição geográfica de Portugal e do Brasil, seu número de habitantes (à época, cerca de 17 milhões) e citava uma longa lista de frases e pensamentos do Marquês de Maricá (1783-1848). Pensamentos carregados de ensinamentos, reflexões e humor de teor moralizante.
Além de escrever o próprio nome no livro, o menino Manoel Cardoso não deixou de registrar o nome do pai e outras palavras e frases esboçadas a lápis e a caneta. Entre uma lição e outra recebida sob a rigidez da catequese, o menino parecia grafar pensamentos que “voavam” em sua imaginação. Ao lado da imagem de Nossa Senhora, escreveu “Bonita Senhora”. Ao que parece, nada visto pelos adultos como acintoso. Experiência diferente daquela relatada pelo poeta Belmiro Braga, que, na infância, teria associado uma imagem borrada de Jesus crucificado, com barba grande e cabeça pendida para o lado, à de um “caboclo velho”, seu conhecido, cuja cabeça era “torta”. Após escrever por baixo da efígie o nome do caboclo, quase levou uma surra de sua mãe, que considerou a atitude desrespeitosa. Fato que seria cômico se não fosse trágico… Afinal, quem duvida da motivação racista da repressão?…
(A história continua em outra edição do jornal… Aguardem!)