Homenagem in memoriam, professor Ricardo Salgado - créditos: UFMG
14-12-2025 às 11h05
Raphael Silva Rodrigues*
A morte tem o costume de interromper frases, nunca histórias. Um ano após a partida do amigo e professor Ricardo Henrique Carvalho Salgado (o nosso querido “Salgadinho”), o que permanece não é o silêncio, mas um coro uníssono de lembranças, gratidão e saudade. Na condição de aluno, orientando e amigo (como inúmeros outros), escrevo estas modestas linhas para celebrar uma vida que, por onde passou, deixou marcas profundas de luz, humanidade e rigor intelectual.
Costuma-se dizer que grandes mestres não são apenas aqueles que dominam um campo do saber, mas aqueles que transformam pessoas. Ricardo Salgado encarnava essa definição com uma naturalidade impressionante. Professor do Departamento de Direito do Trabalho e de Introdução ao Estudo do Direito da Faculdade de Direito da UFMG, integrante do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito, ele não se limitava a transmitir conteúdos: convidava seus alunos a pensar, a duvidar, a reconstruir conceitos e a se responsabilizar pelas próprias convicções. Ao adentrar a sala de aula, a atmosfera se alterava. Não era um espetáculo de vaidades, mas um exercício coletivo de pensamento, mediado por sua escuta atenta, por perguntas certeiras e por um respeito inabalável ao posicionamento do outro.
Sua trajetória acadêmica fala por si. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008), com graduação (2001) e mestrado (2004) também pela UFMG, Ricardo construiu uma obra sólida no campo da Filosofia do Direito, dedicando-se com especial afinco à Hermenêutica Filosófica, a Kant e ao Neokantismo, ao Idealismo Alemão e à Filosofia da Linguagem. Tinha a rara habilidade de tornar temas densos e, à primeira vista, áridos, em verdadeiros convites à reflexão. Em suas aulas e orientações, conceitos como autonomia, dignidade, sentido e interpretação ganhavam vida; não eram abstrações deslocadas, mas instrumentos para compreender o Direito em sua espessura histórica, moral e humana.
No entanto, reduzir Ricardo Salgado ao seu brilhantismo acadêmico seria uma injustiça com a pessoa extraordinária que ele foi. A inteligência do maestro somava-se a uma amabilidade desarmante. Tinha um jeito sereno de circular pelos corredores da Faculdade, de cumprimentar funcionários, colegas e estudantes, de dedicar tempo ao diálogo, mesmo quando a agenda estava sufocada por reuniões, aulas e orientações. Não havia hierarquia que o impedisse de tratar cada interlocutor com igualdade de consideração e respeito.
Como gestor, Ricardo foi igualmente exemplar. Chefiou o Departamento por quatro mandatos, até março de 2024, período em que se destacou pela capacidade admirável de gestão de pessoas. Em tempos de acirramentos e desconfianças, ele optava pelo caminho mais difícil: o do diálogo paciente, da construção de consensos, da administração de conflitos com firmeza ética e delicadeza humana. Sabia ouvir, sabia ponderar, sabia dizer “não” sem humilhar, sabia dizer “sim” sem prometer o impossível. Construiu pontes onde muitos viam muros, costurou soluções onde outros apenas enxergavam impasses. Sua liderança não era impositiva; era convocatória. Liderava não pela força do cargo, mas pela autoridade moral conquistada dia após dia.
Se na pesquisa Ricardo se movia com a precisão, no convívio cotidiano ele se conduzia com a leveza de um amigo generoso. A alcunha “Salgadinho”, usada por tantos com carinho, revela essa dimensão afetiva. Era possível – e muito comum – vê-lo alternar, sem qualquer afetação, discussões sofisticadas sobre Kant, Gadamer ou o Idealismo Alemão com conversas descontraídas sobre a vida, sobre o futebol, experiências familiares e etc. Ao lado do professor, conviviam o amigo disponível, o colega solidário, e o conselheiro para todos os momentos.
Como orientador, Ricardo reunia qualidades que, infelizmente, nem sempre caminham juntas: exigência acadêmica elevada e profunda humanidade. Apontava inconsistências, desafiava argumentos frágeis e estimulava a busca pelo fundamento sólido. Mas fazia tudo isso sem desqualificar, sem diminuir, sem ridicularizar. Orientar, para ele, era um ato de confiança recíproca: confiava na possibilidade de amadurecimento intelectual do orientando e se comprometia, de maneira leal, com esse processo. Suas críticas vinham sempre acompanhadas de sugestões concretas, de perguntas que abriam caminhos ao invés de fechar portas.
Viver sua orientação significava, muitas vezes, descobrir potencialidades que o próprio aluno desconhecia. E, quando o orientando se via desanimado, cansado, pensando em desistir, lá estava ele com uma palavra firme, mas encorajadora: “vamos juntos”, “não jogue fora o que você já construiu”, “você tem algo importante a dizer”. O Direito, sob sua influência, deixava de ser apenas um campo de normas, passando a ser também um espaço de construção de sentido.
Do ponto de vista humano, talvez a marca mais forte de Ricardo Salgado tenha sido a capacidade de fazer as pessoas se sentirem vistas. Em ambientes em que a competição e o desempenho numérico tantas vezes prevalecem, ele reintroduzia a dimensão da consideração ética: lembrava nomes, histórias, dificuldades; percebia quando alguém não estava bem; oferecia ajuda sem esperar reciprocidade. Sua presença, nos corredores, nas salas, nos eventos, era a de quem somava e acolhia, não a de quem ocupava espaço.
Um ano após a sua partida, o vazio é evidente. As cadeiras que não mais ouvirão sua voz, as reuniões que não mais contarão com sua ponderação, as bancas que não mais terão suas intervenções perspicazes, tudo isso dói. Mas a dor da ausência é acompanhada por uma certeza reconfortante: Ricardo Henrique Carvalho Salgado permanece vivo na memória, na obra e, sobretudo, nas pessoas que transformou. Os alunos que orientou, os colegas e amigos que inspirou, os projetos institucionais que ajudou a construir, os livros e artigos que deixou – tudo isso compõe um legado que o tempo não apaga.
Como aluno, orientando e amigo, deixo registrado, mais uma vez, o meu muito obrigado. Obrigado pelas aulas em que o mundo se tornava um pouco mais inteligível. Obrigado pelas conversas em que a vida ficava mais leve, justamente porque era levada a sério. Obrigado pelas palavras de incentivo que chegaram na hora certa; pela confiança depositada mesmo nos momentos em que eu duvidava de mim. Obrigado, sobretudo, por ter mostrado, com o exemplo, que é possível ser, ao mesmo tempo, um grande intelectual e um grande ser humano.
Ricardo Salgado deixa uma imensa saudade a todos que tiveram o privilégio de compartilhar da sua luz. Essa saudade, contudo, não é estéril. Ela se converte em compromisso: o de honrar os valores que ele encarnava – a honestidade e o respeito ao outro, a defesa intransigente dos seus amigos e a abertura ao diálogo. Cada aluno que hoje ensina inspirado por ele, cada pesquisa que se desenvolve na trilha que ele ajudou a abrir, cada gesto de cuidado no ambiente acadêmico é, de algum modo, uma continuação da sua presença entre nós.
Não me despeço com um adeus, porque a dimensão do que ele foi e continua sendo não se encerra na palavra final. Deixo aqui um até logo, meu amigo. Que a memória de Ricardo Henrique Carvalho Salgado – o nosso eterno “Salgadinho” – continue a iluminar os caminhos de todos nós que, um dia, tivemos a alegria de aprender, conviver e caminhar ao seu lado.
Raphael Silva Rodrigues: Doutor e Mestre em Direito (UFMG), com pesquisa Pós-doutoral pela Universitat de Barcelona, na Espanha. Especialista em Direito Tributário e Financeiro (PUC/MG). Professor do PPGA/Unihorizontes. Professor de cursos de Graduação e de Especialização (Unihorizontes e PUC/MG). Advogado e Consultor tributário.

