
O dia das provas finais, no colégio. CRÉDITOS: Freepik
Getting your Trinity Audio player ready...
|
16-05-2025 às 08h35
Henrique German*
O dia das provas finais, no colégio — melhor dizendo, o último dia dos exames finais — costumava ser marcado por diversos aspectos, mormente emocionais, ou situações, se preferir, que variavam de acordo com o tipo de aluno envolvido. Explico-me a seguir.
Havia aqueles que celebravam o sucesso escolar, não só, contudo, mas também a garantia da imediata entrada no longo e muito esperado período de férias de fim de ano, o qual somente vinha a findar no começo de fevereiro. Eu, graças ao bom Deus, sempre integrei esse primeiro grupo de estudantes.
Existiam os desesperados, os quais, com grande desânimo, em um desalento de pranto abundante, lamentavam a triste sorte da reprovação direta, sem chances outras, nenhum remédio que não a trágica repetição do ano letivo. Interessante notar, porém, que, dentre esses desafortunados, havia os que não davam o braço a torcer, não se descabelavam; ao contrário, mostravam-se arrogantes, a desafiarem os céus, rindo e fazendo pouco da desgraça, como se a culpa fosse de outrem, como se fosse nada. No fundo, é claro, sozinhos em casa, amarguravam-se tanto ou mais que os demais.
Um grupo, não pouco numeroso, também se apresentava, já naquele último dia de provas: os intermediários, ou seja, nem aprovados nem reprovados, e sim em recuperação. Para esses, coitados, o mal terrível da incerteza prolongada quase até o Natal, com uma carrada de aulas de reforço e novos exames.
Saliento que, sem embargo da existência dos três distintos grandes magotes de alunos, apontados nas linhas atrás, uma situação, peculiar ao último dia, atingia a todos, de forma democrática, para não dizer idêntica. Pouco importavam a série cursada, a idade, o sexo do aluno, o sucesso ou o fracasso nos derradeiros exames; não interessava, tampouco, se a pessoa ia embora do colégio a pé, de carro, com os pais, de ônibus ou em transporte escolar contratado. Nada importava, pelo simples motivo de que ninguém, absolutamente ninguém, encontrava-se a salvo da saraivada de ovos que voavam por todo lado, vindos de todas as direções, enchendo os ares, quebrando-se contra peitos, cabeças, braços, costas, pernas, rostos, paredes, portas, janelas, calçadas, automóveis e o que mais estivesse no caminho dos ovoides de combate.
A guerra de ovos do último dia era tradição antiga e tão respeitada quanto temida de todos. Os ovos eram estocados nas mochilas, nas pastas, enterrados ou escondidos nos jardins do colégio, para serem recuperados à saída, ou, ainda, trazidos por terceiros, como irmãos e amigos, para municiar os contendores.
Alguns ovos, às vezes nós os preparávamos com pequenas injeções de creolina e, enterrados por vinte e quatro horas e bem sacudidos, garantiam um fedor infernal à explosão contra os corpos das vítimas.
A correria era geral, com gente a espalhar-se pelas ruas Lavras, Pascal, Orange, Padre Odorico, Major Lopes, Padre Severino e outras muitas, aos gritos de pavor, ou de bravura, para os guerreiros que arrostavam os perigos, na busca de melhores posições para os arremessos dos petardos.
Em uma dessas ocasiões, a pior de que me recordo, procurei refúgio no interior da filial da Editora FTD que ficava na rua Lavras, logo antes que baixassem as portas de aço do estabelecimento, com medo do ataque feroz, que nada poupava — nada e ninguém da sujeira fatal. Permaneci oculto até o momento do fechamento do comércio, quando me forçaram a sair. Ainda estava claro, embora já fossem mais de dezoito horas.
Deixei o esconderijo com receio, porém satisfeito, não só porque, até aquele instante, escapara ileso, mas também porque não vi risco iminente, tendo a coisa toda, ao que parecia, serenado. Senti-me seguro o bastante para descer a rua, atento, em direção à avenida do Contorno, a fim de pegar o ônibus para casa. Incrivelmente, cheguei ao ponto, do outro lado da avenida, sem perceber um único sinal de perigo. Esperei, então, relaxado, a aproximação do grande veículo amarelo, que me tiraria, de uma vez por todas, da zona conflagrada.
Quando o ônibus encostou e abriu as portas, coloquei o pé no primeiro degrau, a fim de entrar, quando senti um impacto à altura da orelha direita. Tomando rápida consciência do que ocorria, com o líquido nojento a escorrer-me do rosto, voei para o interior do coletivo, gritando ao motorista para que arrancasse logo. O veículo, que nada tinha com a história, levou também, na lataria, alguns ovos.
Fui fedendo até o Gutierrez para um banho cuidadoso e demorado.
* Henrique German é Promotor de justiça aposentado e autor de mais de duas dezenas de livros de literatura. Ele é candidato a uma vaga na Academia Mineira de Letras (AML)