Trabalho braçal; serviço pesado, repetitivo, maçante, leva à exaustão física e mental
Carlitos, de “Tempos Modernos”, é alguém escravizado pela máquina, sendo um operário que passa anos apertando parafusos e, assim, após o expediente continua no serviço de forma reflexa.
03-04-2023 - 09h:07
Mara Narciso*
- Aqui tem muito serviço e pouca coragem! Quero sombra! - disse o operário da terra, que também é poeta.
- Não pense! Vá sem coragem e sem pensar... O serviço braçal exige brutalização do pensamento, senão a pessoa enlouquece - disse sua amiga.
O trabalho operário, dentro de uma fábrica, por exemplo, é a imagem da imperfeição, de como a vida nunca deveria ser. O labor no campo é pesado e mal remunerado - vide o cortador de cana, mas acontece num ambiente, em geral mais saudável. O serviço pesado, repetitivo, maçante, leva à exaustão física e mental.
No filme “Tempos Modernos”, de 1936, Carlitos é alguém escravizado pela máquina, sendo um operário que passa anos apertando parafusos e, assim, após o expediente continua no serviço de forma reflexa.
O trabalho braçal não criativo embrutece a pessoa que se robotiza num sequestro da personalidade e pensamento criativo durante o serviço. No período é preciso haver o fim do pensamento elaborado, numa espécie de adeus à razão. No caso de fábricas automatizadas, cujas máquinas sejam rápidas e ofereçam perigo, o operador precisa estar atento, para não se acidentar. A meta de produtividade obriga o não pensar, e esse esvaziamento cerebral é exaustivo.
O que acontece com os 86 bilhões de neurônios cerebrais, a inquietude, a curiosidade e a vontade de criar, quando a pessoa é reduzida a um coadjuvante da máquina por oito horas por dia por 30 antes e agora 49 anos?
Cento e trinta mulheres operárias se rebelaram contra as más condições de trabalho e foram queimadas vivas em oito de março de 1857. Ganhando 70% do que ganham os homens, elas são lavradoras, cozinheiras, costureiras de fábricas, uma extensão da máquina, ou lavadeiras, um complemento ao tanque. “Lava roupa todo dia, que agonia”! -Luiz Melodia. As babás deixam seus filhos por aí para cuidar do filho da outra e conseguir comida para a família. Como poderá sonhar? Carolina Maria de Jesus e seu “Quarto de Despejo” conta como é a vida.
O salário de um operário é variável, havendo quem esteja na classe média, mas a maioria recebe apenas para sub existir. E do produto desse árduo trabalho mal come, mal veste, mal vive. Lazer não há.
Em Comportamento Geral Gonzaguinha diz: “Você deve notar que não tem mais tutu/ e dizer que não está preocupado/ Você deve lutar pela xepa da feira/ e dizer que está recompensado/ Você deve estampar sempre um ar de alegria/ e dizer: tudo tem melhorado/ Você deve rezar pelo bem do patrão/ e esquecer que está desempregado/ Você merece, você merece/ Tudo vai bem, tudo legal/ Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé/ Se acabarem com o teu Carnaval?/ Você deve aprender a baixar a cabeça/ E dizer sempre: "Muito obrigado"/ São palavras que ainda te deixam dizer/ Por ser homem bem disciplinado/ Deve pois só fazer pelo bem da Nação/ Tudo aquilo que lhe for ordenado/ Pra ganhar um Fuscão no juízo final/E diploma de bem comportado”... Isso não é destino nem maldição, é fruto do sistema.
Na Ditadura Militar havia o “Troféu Operário Padrão” em forma de capacete. Quem o recebia era o funcionário dócil, de cabeça baixa, silencioso, que ultrapassava as metas e dava mais lucro para a empresa. Além de subordinado à máquina, era oprimido pelo regime e, alienado, sentia orgulho disso.
O trabalho executado reflexamente pela força muscular é uma violência contra a humanidade do trabalhador. Por mais que espere por uma vida melhor, pouco acontecerá de bom ao operário, que segue o destino do pai e seu filho e neto também seguirão o mesmo caminho.
Os que não conseguem parar de pensar se suicidam, como aconteceu com o personagem de “Construção”, de Chico Buarque. O pedreiro fez tudo como se fosse a última vez: despediu-se da família, subiu na construção, trabalhou, comeu, bebeu, dançou, “e tropeçou no céu como se fosse um bêbado/ E flutuou no ar como se fosse um pássaro/ E se acabou no chão feito um pacote flácido/ Agonizou no meio do passeio público/ Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. E o que vem depois? O breu.
*Mara Narciso é médica, escritora e jornalista.