
O Socialismo Democrático, caracterizado no binômio que levaria adiante por décadas, Socialismo e Liberdade. CRÉDITOS: Reprodução
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09-04-2025 às 09h26
José Luiz Borges Horta*
Como as Minas, socialismos, já sabemos, são muitos, e quase todas as correntes ideológicas que orgulhosamente se autodeclaram à esquerda no plexo político acabam se intitulando socialistas.
Esse é, sem dúvida, um legado persistente das lutas políticas, ideológicas e jurídicas do séc. XIX pela construção de um modelo europeu de Estado social de Direito, que pudesse fazer avançar o então existente Estado liberal de Direito, produto da Era das Revoluções e das lutas pela liberdade dos séculos XVII e XVIII.
Se o Estado liberal de Direito, no séc. XIX, se espraiava pelo continente europeu e pelas civilizações europeias (o Brasil a ele adere com a Constituição Imperial de 1824), derrotando de vez o absolutismo monárquico e impondo a pauta da construção gradativa de Estados constitucionais desenhados como Democracias parlamentares, as esquerdas, por todo aquele século, buscaram formulações de democracia social e econômica que transformassem o Estado de Direito revolucionário em Estado de plena igualdade, não somente de liberdade.
Nesses passos, a filosofia de Hegel, como bem aponta Joaquim Carlos Salgado, ao agregar à ideia de justiça não somente a liberdade e a igualdade, mas também o valor do trabalho, injetou energia intelectual no pensamento progressista, viabilizando a Marx (e Engels) a formulação do ideário comunista, a boa parte do pensamento germânico distintas formulações socialistas e, talvez tardiamente, mas com imensa eficácia, a Lênin a fundação do Estado Soviético, já no século XX. Comunismos e socialismos de toda sorte, se sabe, são tributários do sistema filosófico hegeliano, como pacientemente vem demonstrando o filósofo Pedro Geraldo Novelli, da Escola Hegeliana Paulista.
Se, por um lado, as correntes, facções e partidos de esquerda muitas vezes insistem em utilizar a chave de “socialistas” para se autodenominarem, essa indeterminação conceitual milita contra a plena compreensão do ideário de esquerda, como um todo, e talvez exija de nós um pouco mais de cuidado e preciosismo terminológico. Talvez pudéssemos estabelecer, com alguma margem de debate, no grande cenário de debate ideológico dos séculos XX e XXI, três grandes vertentes à esquerda, representadas pelos trabalhistas, pelos socialistas em sentido estrito e pelos comunistas.
O trabalhismo é, inquestionavelmente, uma formulação de esquerda “costumizada” para a dócil convivência com o modo de produção capitalista. Oriunda de uma interpretação segmentada da sociedade, aceita uma divisão ontológica entre Trabalho e Capital, e a compreende na necessidade de partidos dos trabalhadores (como o foram, na nossa história, o PTB — Partido Trabalhista Brasileiro, de 1945 a 1966 —, o PDT — Partido Democrático Trabalhista, fundado em 1979 —, e o PT — Partido dos Trabalhadores, fundado em 1979, mas tornado trabalhista de fato especialmente após a depuração de quadros socialistas nos anos 1990 e 2000).
Essas forças ideológicas não são anti-capitalistas, mas buscam, dentro do sistema econômico capitalista, criar mecanismos de compensação das injustiças sistêmicas. Postulam-se de esquerda, mas como não pretendem romper o modo de produção capitalista, perdem em tração revolucionária e, raras vezes, podem ser consideradas verdadeiramente socialistas. Podemos mesmo afirmar, sem meias palavras, que a presença de uma esquerda trabalhista forte é um antídoto antissocialista. Não vai haver socialismo onde houver trabalhismo — e isso vale para os povos anglo-saxões, mas também para o Estado Sindical inventado no Brasil por Getúlio Vargas.
O comunismo, embora raro nos parlamentos do tempo presente, nem sempre teve tão pouco impacto nas lutas políticas e ideológicas. Infenso e diametralmente oposto, na esquerda, às lutas travadas de modo sindical (Lênin é categórico sobre o tema, aliás), os comunismos supõem um esgotamento real e evidente do modo de produção capitalista, estabelecendo rotas revolucionárias para a ampla transformação das relações sociais e do sistema econômico. Usualmente, uma ideologia comunista terá uma postura cética em relação ao valor da liberdade, assim como dos direitos de liberdade (as liberdades civis e políticas, também chamadas de direitos individuais e políticos), privilegiando ou mesmo radicalizando as igualdades (ou direitos sociais e econômicos). As liberdades “burguesas”, o direito de propriedade, a vida “civil” expressam valores apenas formais, que o verdadeiro comunista tende a matizar com tons céticos, críticos e revolucionários.
A experiência política brasileira aponta a presença sempre minoritária de forças ideológicas comunistas no Brasil desde 1922, com a fundação de um Partido Comunista do Brasil (PCB), depois cindido em dois partidos — um Partido Comunista Brasileiro (com a antiga sigla PCB) e um Partido Comunista do Brasil (com o antigo nome e a nova sigla PCdoB) —, mas ambos (o PCB primeiro, tornando-se Partido Popular Socialista ‐ PPS e depois Cidadania) transitaram de partidos revolucionários a partidos democráticos, abandonando as matrizes genuinamente comunistas.
A par de algumas forças comunistas sem existência parlamentar, confinadas ao movimento estudantil e, sabe-se lá, sindical, alguma consistência teórica pode ser reivindicada no reconhecimento de tendências presentes em partidos políticos fundados a partir da diáspora de quadros socialistas do Partido dos Trabalhadores brasileiro nos anos 1990 e 2000 como vertentes ideológicas anticapitalistas. Seria o caso dos trotskistas abrigados no Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado ‐ PSTU, fundado em 1995, dos feministas e identitaristas albergados pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, fundado em 2004, e mesmo dos “ecossocialistas” alojados no partido Rede Sustentabilidade, fundado entre 2013 e 2015. A questão, no caso, é a firme resistência oposta pela própria esquerda às pautas trotskistas, feministas, identitaristas e/ou ambientalistas, desde sempre assentadas em aspectos de intensa conexão com vetores ínsitos quer ao Capital, quer ao sistema capitalista, quer a ideologias de forte cunho moralista e, por isso mesmo, antipodais ao campo progressista.
Comunistas, no Brasil, de fato quase só existem em fantasias e pesadelos de fanfarrões de extrema-direita. Ainda assim, o país deve ao velho Partidão — o PCB em sua etapa de existência clandestina, mas inserta no grupo dos Autênticos do Movimento Democrático Brasileiro, o MDB — a construção das mais consistentes estratégias e táticas de saída do regime militar de exceção e de transferência do poder dos militares aos civis. A Nova República, a transição democrática, a Anistia, a reconstitucionalização: todos esses processos fundamentais para a retomada do Estado de Direito no Brasil dos anos 1970 e 1980 foram construídos com a expertise da intelligentsia comunista.
A riqueza da nossa esquerda, entretanto, se revela de fato nas formulações ideológicas socialistas, desde seu surgimento no Brasil marcadas pelo caráter cultural nacional e pela busca de uma adequação dos postulados ideológicos aos vetores axiológicos — aos valores — brasileiros, ou mesmo brasileiríssimos.
Assim na primeira concepção genuinamente socialista no Brasil, entabulada pela genialidade de João Mangabeira, com a fundação da Esquerda Democrática, em 1945, comprometida desde logo em “respeitar integralmente os princípios democráticos e dos direitos fundamentais do homem, definidos na Constituição [de 1946]”. A Esquerda Democrática, que nascia dentro da União Democrática Nacional – UDN, era fortemente anti-getulista e democrática e encontrava, já no nascedouro, seu viés ideológico mais que original: o Socialismo Democrático, caracterizado no binômio que levaria adiante por décadas, Socialismo e Liberdade.
Já em 1947, a Esquerda Democrática da UDN funda seu próprio Partido Socialista Brasileiro – PSB, com o qual atravessará o séc. XX, extinto pelo AI-2 em 1965, logo após o falecimento de João Mangabeira, e refundado em 1985 por Antônio Houaiss, depois Ministro da Cultura no Governo do Presidente Itamar Franco. Durante mais de cinquenta anos, o lema Socialismo e Liberdade foi capaz de ofertar uma diretriz ideológica própria ao PSB e aos socialistas brasileiros: tratava-se de defender a dimensão social no domínio econômico, mas também de exigir as liberdades democráticas, sem as quais não é possível reconhecer o Estado de Direito.
Na redemocratização do Brasil, surpreendentemente dentro de um partido autodenominado trabalhista (o PDT), emergiria uma renovadora vertente do ideário socialista: o Socialismo Moreno, intuição e iniciativa de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. Em 1979, Brizola fora duplamente golpeado no curso do processo de redemocratização: formalmente, fora privado pelo Regime de retomar seu Velho PTB de origem trabalhista e getulista; materialmente, o “novo” sindicalismo seria carreado para outra força partidária, criada especialmente para afastar tanto a legenda PTB quanto a lenda Brizola dos sindicatos — o PT, de Lula da Silva, um líder criado sob medida para a tarefa.
Sem sindicatos e sem a bandeira trabalhista, a genialidade de Brizola (e Darcy) trouxe ao Brasil a proposta primeva de um Socialismo à brasileira, moreno, mestiço, sonhado e ideado à imagem de um país que se orgulhasse do caldeirão étnico e das amplas mestiçagens e sincretismos de que brotava. Há quem recupere as origens do Socialismo Moreno no trabalhismo tradicional brasileiro, sempre reivindicado por Brizola, que dele se originara, e por Darcy Ribeiro, gênio mineiro que nele fora Ministro de Estado e fundador de uma universidade nova — a Universidade de Brasília (UnB). Evidentemente, o Socialismo Moreno de Brizola e Darcy não brotou do nada, ex nihilo, mas constituiu-se a partir da história de ambos na vivência política e ideológica da Experiência Democrática brasileira (1946-1964) e, mesmo, do Exílio, da Anistia e da tentativa de retomada de um projeto nacional no Brasil.
Em sentido semelhante, ainda mais avançado, é a configuração de um Socialismo Criativo, vertente ideológica que aparece e se desenvolve no âmbito dos processos internos ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) ao final dos anos 2010, na virada para os anos 2020. A história do PSB é tributária de grandes líderes da política pernambucana, que souberam nacionalizar seu legado, e se mesclam com intensidade ao socialismo no Brasil. Assim, temos no PSB uma terceira geração de líderes do sertão brasileiro, com Miguel Arraes, seu neto Eduardo Campos, e o jovem e já reeleito Prefeito do Recife João Campos, bisneto de Arraes e filho de Eduardo. Os três líderes pernambucanos diferem, em suas trajetórias e postulações ideológicas, dos modelos “sudestinos” de lideranças políticas, representando, cada um à sua moda e em seu tempo, uma substancial renovação ao pensamento — e à práxis — socialista.
Arraes, o mais udenista dos esquerdistas da Experiência Democrática, atravessou o séc. XX inovando a política brasileira e trazendo consigo a prática do diálogo e da democracia, aliada a uma real sensibilidade social, voltada não simplesmente aos trabalhadores inseridos no mercado formal de trabalho (os sindicalizados e protegidos do trabalhismo), mas aos excluídos, lançados à marginalização e submetidos à barbárie do sistema capitalista. Ainda hoje, o “chapéu de palha” representa o político sensível à cruel desigualdade social, mas disposto a reagir a qualquer tentativa de supressão das liberdades democráticas.
Eduardo Campos, seu prodigioso neto, foi capaz de receber o legado do avô, já no séc. XXI, e reconstruir a máquina pública em Pernambuco com um olhar tanto sensível quanto modernizante, combatendo as forças neoliberais e as derrotando sempre, e surgindo para o País, até o advento do (inexplicável) acidente aéreo que o assassinou, como a mais sólida alternativa de Socialismo Democrático, a um tempo socialista e democrático, jamais ofertada ao Brasil. João Campos, o filho de Eduardo catapultado à Política em meio à indignação nacional e pernambucana com a espantosa morte do pai (em meio à campanha presidencial de 2014, que poderia vencer, nessa hipótese salvando o Brasil dos desdobramentos que hoje conhecemos), é de longe o mais autêntico dos jovens políticos brasileiros de esquerda, com uma inédita capacidade de comunicação popular e uma gestão tão aprovada à frente do Recife que o anima a buscar suceder ao bisavô e ao pai no Governo de Pernambuco, já em 2026.
Miguel Arraes (1916-2005) presidiu o PSB entre 1993 e 2005; Eduardo Campos (1965-2014) presidiu o PSB entre 2005 e 2014; João Campos assumirá o PSB em seu XVI Congresso Nacional, em Brasília, de 30 de maio a 01 de junho deste 2025. O Congresso, que tem como tema central “Brasil – Potência Criativa e Sustentável”, culmina um longo processo de refundação partidária, comandado por um ideólogo de estofo global: entre Eduardo e João, o PSB foi presidido por Carlos Siqueira, advogado, político e ideólogo que, na companhia de intelectuais do porte de Domingos Leonelli, Paulo Bracarense e Sinoel Batista, liderou o processo de Autorreforma do PSB, no curso do qual o conceito de Socialismo Criativo gradualmente ganhou centralidade.
A proposta de um Socialismo Criativo nasce, inequivocamente, da perspectiva de combinar o tempo (ou o Espírito do Tempo – Zeitgeist, em um sistema econômico já considerado fruto de uma quarta Revolução Industrial, respectiva a uma Sociedade do Conhecimento), com suas nuanças de ampla transformação do modo de produção capitalista e da novíssima ordem mundial, multipolar e pluricivilizacional, ao espaço tão próprio da cultura brasileira, desde sempre admirada pela resiliente criatividade e pela capacidade inata de inovação. Um exame do vigente Programa do PSB pode ser inspirador; veja-se o parágrafo 451:
“O Socialismo Criativo deverá se constituir na dimensão humana do desenvolvimento das forças produtivas e da revolução tecnológica e deve valorizar todas as formas de vida presentes na Terra. O socialismo para o século XXI deve contribuir na perspectiva de um novo e mais amplo humanismo, capaz de reverter a ameaça do atual sistema ideológico liberal-capitalista. São tarefas do socialismo criativo: desenvolver a criatividade, o empreendedorismo, o cooperativismo, ampliando os espaços de liberdade na sociedade e o bem-estar de todos.” [V. Programa e manifesto do Partido Socialista Brasileiro – PSB. São Paulo: Quanta, 2022.]
O êxito da formulação própria do Socialismo Criativo (há mesmo uma plataforma mantida para seu debate: https://www.socialismocriativo.com.br/) desborda os limites de uma ideologia limitada ao debate brasileiro: nenhuma outra chave conceitual permite compreender o chamado “socialismo com características chinesas”, tão contemporâneo nosso, como a construída no Brasil pelos socialistas. Como evidenciamos de pronto, a configuração de um Socialismo Criativo, forjada em intensos debates construídos por Carlos Siqueira e seus interlocutores, suprassume uma longa tradição de lutas por um socialismo genuíno e democrático, atingindo uma proposta ideológica capaz de oferecer à história das ideias socialistas (título que aqui furtamos a Vamireh Chacon) condições de compreender o evolver do socialismo no tempo presente e de renovar os ideais socialistas que, em boa parte do Ocidente, já se perderam, ora substituídos pelo trabalhismo de matriz sindical, ora pelo estranhíssimo fenômeno de “esquerdas neoliberais”.
Um inventário socialista no Brasil revela autores e ideólogos tais como João Mangabeira, Anísio Teixeira, Santiago Dantas, Darcy Ribeiro, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Eduardo Campos, Mangabeira Unger, Aldo Rebelo; nenhum deles terá atingido, ao que parece, o rigor conceitual da proposta de Socialismo Criativo do grupo de Carlos Siqueira. O Brasil pode, mais uma vez, se orgulhar de si. Em alguma medida, o tradicional PCdoB representou o sonho comunista, como o PDT representou o sonho trabalhista. O PSB, nascido da ala mais democrática do udenismo, mostra-se ainda capaz de sonhar o sonho socialista, pelo Brasil mas também por um mundo mais justo, mais diferente, e por isso mesmo mais democrático.
* José Luiz Borges Horta, 54, é Professor Titular de Teoria do Estado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e eleitor contumaz do bloco PSB-PDT-PCdoB. Coordena na UFMG o Grupo internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado e o Grupo de Pesquisa dos Seminários Hegelianos. Professor Visitante na Universitat de Barcelona, é membro da Sociedade Hegel Brasileira e do Centro de Excelência Jean Monnet em Estudos Europeus. Contato: zeluiz@ufmg.br