05-01-2025 às 10h40
Sérgio Augusto Vicente*
Sou do tempo em que a experiência sensorial com o livro físico antecedia a leitura de suas palavras. Lembro-me de contemplar, durante anos e anos, em minha infância de menino de roça, as capas e as ilustrações dos poucos livros que possuímos em nossa casa colonial assoalhada.
Como não me recordar das enciclopédias de capa amarela em cima da escrivaninha de minha irmã mais velha? E o pequenino livro de orações, onde minha tia lia os mistérios do terço sempre rezado nas noites de Natal e Réveillon, com a família reunida na sala? Nas páginas dos gibis trazidos por parentes e amigos, punha-me a contar as minhas próprias estórias a partir da observação atenta e imaginativa dos desenhos…
Dentre os inúmeros episódios que eu poderia narrar aqui, não deixaria de ampliar o “zoom” sobre a doação que um primo (João Batista Cardoso) fizera, no final da década de 1980, de um conjunto de revistas publicadas entre os anos 1970 e 1980. Notícias e propagandas ultrapassadas, mas encantadoras aos meus olhos e aos de meus irmãos, que a elas recorriam para recortar palavras e imagens para as tarefas da escola. Sem termos acesso à televisão e desconhecendo o computador, que irrompia nas famílias de classe média alta dos grandes centros urbanos, bisbilhotávamos aqueles exemplares com muita curiosidade e imaginação. As ilustrações eram como adubo para a imaginação. Sem dúvida, muitas delas contribuíram tanto para a formação do meu inconsciente como também para as minhas primeiras experiências de letramento visual.
Mesmo depois de aprender a ler, continuei manuseando aquele material por longos anos disponível no compartimento da pequena estante de madeira da sala de meus pais. Elas, as revistas, faziam as vezes da tão sonhada televisão que ainda não tínhamos. A mágica tela luminosa, somente nas propagandas dos periódicos, onde dividiam espaço com as enceradeiras, liquidificadores, batedeiras de bolo e todas as bruxarias trazidas pelo capitalismo. Bruxarias que proporcionavam conforto e comodidade às donas de casa. Algumas donas de casa, diga-se de passagem! Minha mãe, enquanto isso, ainda passava roupa em ferro de brasa, esfregava roupa em cima de uma mesa de madeira coberta de lona, punha as peças brancas para quarar no sol e descia o morro da bica d’água para matar a sede dentro de casa. A energia elétrica visitaria a nossa casa somente em dezembro de 1997. “American way of life” somente nas páginas de revistas com notícias defasadas.
Dentre os periódicos, um livro do escritor estadunidense John Steinbeck me chamava atenção. “The Pearl” era o seu título. Um exemplar fino, pequeno e repleto de ilustrações em preto e branco. Pela primeira vez, tinha em mãos uma obra em inglês, publicada e editada no exterior. Uma dupla barreira linguística se me impunha para acessá-la: o português em que, a duras penas, tentava me alfabetizar, e a língua inglesa, que nem sequer sonhava um dia aprender. O tempo se passou. O livro continuou guardado. Diz minha irmã que um primo da cidade, que passava as férias na roça e fazia cursinho de inglês, chegou a lê-lo. Na escola, o verbo “to be” não me ajudava. Levei-o à professora para descobrir o significado do título: “A Pérola”, segundo ela.
Por mais que me esforçasse, não conseguia lê-lo. Sem poder contar com a ajuda do Google Tradutor, só me contentava mesmo com as ilustrações. Parecia a estória de um casal de pescadores mexicanos. E, numa das páginas, chamava-me atenção a aflitiva cena de um escorpião descendo por uma corda que sustentava uma caixa de madeira, na qual dormia um bebê. E, assim, mais anos se passaram. O livro, apesar de empoeirado na estante e indecifrado, nunca deixou de morar em minha memória.
Passou o ensino médio, passou a faculdade, passou o mestrado e… passou o doutorado. Ao longo desse percurso, vieram as aulas de Inglês e a minha melhor proficiência na língua. E o livro, por descuido e prioridades outras, permaneceu incógnito na estante.
Eis que, finalmente, nas tediosas horas de um recesso de Natal e Ano Novo, ele acaba de ser “devorado” como a tradicional bacalhoada ou rabanada de minha mãe.
O autor, John Steinbech, se vivo estivesse, alegre estaria com a notícia. O famoso escritor estadunidense, nascido na Flórida em 1902 e falecido em 1962, publicou “A Pérola” em 1947. Trata-se de uma narrativa envolvente e de fácil leitura, cujos protagonistas são Kino e Juana, um casal de pescadores de uma aldeia mexicana, que teve suas vidas arruinadas por uma preciosa pérola encontrada no mar. Numa trama envolvendo críticas à dominação do colonizador europeu sobre os nativos americanos, bem como aos burgueses exploradores e à ação destrutiva da ambição sobre a vida humana, o autor nos descortina um drama, no qual o protagonista, na busca por justiça e emancipação do sistema de dominação vigente em seu meio social, recusa-se a vender a pérola para os mal-intencionados compradores da cidade mais próxima e dá início a uma perigosa saga, na qual ele, a mulher e o filho partem em direção à capital. Uma saga cujo desfecho é a morte do seu bem mais precioso: o filho carregado nos braços da esposa.
Na trama, o casal atira a pérola no mar e repudia a sua maldição. Kino e Juana, definitivamente, não concordariam com a máxima de Rubem Alves, de que “Ostra feliz não produz pérola”. Se, na estória de Kino e Juana, a pérola parecia a solução dos problemas, tudo não passou de uma sucessão de tragédia e violência. Quando Kino imaginava que a preciosa pérola pudesse mudar a sua condição socioeconômica, oportunizando escola e livros para o filho no futuro, foi a morte de seu bebê a amarga “recompensa” que a ambição humana lhe trouxe.
Quanto a mim, julgo acertada a frase de Rubem Alves. Afinal, após longos anos de desconfortável e árida incompreensão de uma língua, consegui acessar a Pérola. A tão esperada pérola, que demorou longos anos para ser formada. Fruto da longa maturação necessária à formação de um leitor. Maturação essa infelizmente ignorada por muitos jovens atuais, presos pelo imediatismo e overdose de imagens rolantes nas telas dos celulares. Jovens tragados pela inteligência artificial, pela volatilidade dos novos tempos, em que tudo se torna descartável antes mesmo de nascer.