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O beija-flor e sua rota cotidiana - créditos: divulgação
16-02-2025 às 10h00
Marcelo Galuppo[1]
Beija-flores e galinhas são aves muito diferentes. Todos os dias, sempre no mesmo horário, o beija-flor percorre a mesma rota pré-determinada em busca do néctar das flores que irá alimentá-lo. A rota é sempre idêntica, e os horários das visitas sempre os mesmos, uma mistura de GPS com cronógrafo que parece rara na natureza. Galinhas, por outro lado, nunca ciscam no mesmo lugar, parecessem vagar a esmo, de forma errática, desesperadas em sua busca de alimento e sem nenhuma inteligência que as oriente.
É uma ilusão. Ambos são muito bem adaptados a seus objetivos. O alimento do beija-flor nunca muda de lugar: ele está sempre na flor que, até se definhar, permanece imóvel na planta que a gerou. Por isso, sua estratégia alimentar depende da capacidade de se lembrar precisamente do local onde encontrou alimento no dia anterior. Recordar-se da rota bem-sucedida é a maneira mais eficiente e segura de encontrar o néctar de que precisa. Já a galinha, uma vez que tenha encontrado alimento em um lugar, dificilmente o encontrará ali durante algum tempo, e por isso sua estratégia consiste em esquecer-se de onde o encontrou no dia anterior e procurá-lo de maneira aleatória. Esquecer-se em um dia da rota bem sucedida do dia anterior é a maneira mais eficiente e segura de encontrar seu sustento. Nenhuma das duas estratégias é melhor do que a outra em si mesma. Na vida, esquecer pode ser tão importante quanto lembrar.
O esquecimento faz parte da memória, tanto quanto a lembrança. Há um conto de Jorge Luís Borges (1899-1986), Funes, o memorioso, de seu livro Ficções, de 1944 (publicado no Brasil pela Companhia das Letras), em que Irineu Funes é incapaz de esquecer-se de qualquer acontecimento ou de qualquer detalhe de sua vida. Funes lembrava-se de tudo e, ao fazê-lo, perdia a distinção da importância que atribuímos aos fatos. Se eu pedir que você se lembre do que aconteceu ontem, é mais provável que o beijo da pessoa amada lhe venha à memória antes da cor da blusa que tal pessoa usava. É mais provável que você se lembre melhor do gosto do filé suculento que comeu ontem do que do valor exato que pagou por ele (arredondar o valor em nossa mente é uma forma de reter na memória o essencial e esquecer dos detalhes insignificantes). É que a memória saudável hierarquiza a realidade, lembrando-se do que é mais importante e esquecendo-se do que é menos importante. Para Funes, a memória não distingue, já que ela se lembra igualmente de tudo, e as coisas têm sempre a mesma importância: a morte da pessoa amada não é um evento mais importante do que as notícias da morte de um rei de um longínquo país da Ásia, e o primeiro beijo apaixonado em nada se distingue de um beijo de boa noite, a não ser na ordem (pouco relevante) do tempo. A lembrança excessiva é um indício de burrice, de pessoas que pensam poder substituir a inteligência, a sensibilidade e a criatividade pela erudição, como já havia alertado Michel de Montaigne (1533-1592).
A filosofia exige certa lembrança, mas também certo esquecimento. Autores têm apontado que Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) – que, também se diz, nunca lia um livro duas vezes – copiava as passagens que despertavam seu interesse e ia alterando o texto até transformá-lo em seu próprio texto: sua originalidade é um misto de lembrança e de esquecimento. Também já li em algum lugar que Hannah Arendt (1906-1975) fazia algo parecido: as citações da Aristóteles em seus livros são um pouco diferentes dos textos originais (e, assim, tinham também um sentido ligeiramente diferente do pretendido pelo autor citado) porque as fazia de memória, parte lembrança, parte esquecimento. Todo filósofo de verdade é um pouco beija-flor e um pouco galinha, e quem se lembra de cada detalhe só pode repetir o que os outros pensam, nunca pensar por si próprio.
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG e autor do livro Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, pela Editora Citadel, dentre outros. Ele escreve aos domingos no Diário de Minas.