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21-02-2025 às 10h30
Wilson Cid*
“De gôndolas, em sonhos belos,
Desfilam nobres casais:
Os rapazes de Martelos
E as moças da Henrique Vaz”
(Paraibuneidas)
Aquelas velhas estradas que os pioneiros abriam, caminho das aventuras e da ânsia de descobrir riquezas e caçar escravos, jamais escaparam de um destino comum: os bandeirantes passavam e deixavam para trás roças recém-plantadas, um posto de pousada e poucas mulheres que se dispunham a ficar para servir com o corpo aos viajantes ávidos, que, depois de longas jornadas, traziam grandes apetites de comida e amor. Sempre foi assim, e nada faria com que o Caminho Novo de Garcia Rodrigues Paes tivesse diferente sorte.
1 – Pelo que sabemos, os primeiros cronistas que por aqui passaram preferiam ignorar esse detalhe da incipiente ocupação do vale do Paraibuna. Nada registraram, como se não tivessem visto ou experimentado mulheres que se dedicassem ao ofício do sexo. Existiram, contudo. Pelo menos na Rocinha da Negra, na divisa das províncias, onde eram frequentes as baldeações e as paradas de Tiradentes, que desde 1783 dava combate aos assaltantes da estrada, como o terrível bando de Joaquim Montanha, famoso pela crueldade. Havia mulatas trabalhando na pequena propriedade rural que o alferes tinha no lugar, e consta que alimentava especial preferência por elas.
De forma que, pelo Caminho Novo, o homem que passava podia ir ao prazer, antes do sacrifício e viagem de semanas para Vila Rica. A propósito, para confirmar as visitas-relâmpago, sabe-se que, nessa época, eram comuns os casos de crianças que cresciam apenas com as mães, sem que conhecessem nem soubessem o nome do pai. O pai ia-se, quase sempre para sempre.
2 – À medida que a cidade crescia, conta o historiador Roberto Dilly, os “homens de moral” cuidavam de afastar, para o mais longe possível, as mulheres que se dedicavam à prostituição, removidas do centro, mas não tanto; afinal, a distância reduziria a clientela. Esse jogo de inconveniência não deixava de ter uma pitada de hipocrisia no receituário do moralismo da época. Mas tinha de ser jogado, em nome das famílias e das jovens recatadas.
Em Juiz de Fora, primeiro foi a Santa Rita, que a demarcação das ruas condenou a ser sede da zona boêmia, com seus buracos, lama, esgotos aparentes e casas paupérrimas com cerca de bambu. Eram tais casas o primeiro endereço dessa gente de “vida airada”, expressão criada por Ignácio Gama, o primeiro escrivão de órfãos.
Segundo Dilly, ali viveram algumas que ficaram famosas, como a quase negra Lima, a Aninha Tamanduá, Florência Gambá e Merência, sem faltar de uma que a todos apavorava, Frutuosa, com fama de feiticeira. De reza cruzada por prostituta e feiticeira ninguém escapava, já se dizia.
Com o passar dos anos, a Santa Rita foi dividir a tarefa com a rua do Sapo, que depois se chamaria Conde D’Eu, e hoje é Fonseca Hermes. Tanto dividiu, que logo estabeleceu um diferencial na categoria de prestadoras do amor pago. É de Jair Lessa, em seu “Juiz de Fora e seus Pioneiros”, a explicação: na rua do Sapo, as mulheres sofisticadas, louras, de pés macios, enfeitadas com colares e brincos emprestados pelas cafetinas; na Santa Rita, para os viajantes pobres, mulher de segunda classe, escrachada e cachaça!”.
3 – Mas a zona se atrevia em pescar homens um pouco além dos limites, atingindo seu comércio a parte baixa da Liberdade (Floriano Peixoto), Hipólito Caron e Avenida Kascher, como também a ribeira do Paraibuna. Paulino de Oliveira, em “Memórias Quase Póstumas”, informa que, em certa época, lá pelos anos 30, o meretrício começava na Marechal Deodoro, em frente à atual galeria Pio X, atingia a Batista de Oliveira, depois a Floriano e a Hipólito Caron, Famosas por ali eram Maria Repinica e Rita Espanta Patrulha, esta capaz de encarar a polícia em qualquer circunstância.
Na rua do Sapo, algo a denunciava: a terra amarelada. Pedro Nava confirmou, ao falar de Felisberto Soares Horta, casado com sua prima. Era proibido limpar as botinas antes de entrar em casa, porque a mulher queria saber por onde o marido havia andado. Periciava. Se chegasse com sinais de terra amarelada, dava-se mal…
A proximidade com o rio custou caro a elas, porque facilmente as águas das enchentes invadiam seus quartos. Ficavam desalojadas, sem produzir e sem comer, ocasiões em que esse conjunto de misérias fazia prosperar nelas certo temor de que aquilo era mesmo castigo, não o suficiente para regenerações, sempre raríssimas. Mas, na madrugada de 27 de janeiro de 1922, primeira vez em que a terra tremeu em Juiz de Fora, muitas traçaram o sinal da cruz, invocaram a proteção de Deus e correram temerosas para o Milheiros (Largo do Riachuelo), onde se julgavam a salvo.
4 – Dias de faturamento geralmente coincidiam com os fins de semana. Mas bons mesmo eram aqueles em que os operários recebiam o salário, porque, enquanto os casados corriam para casa, onde dívidas e despesas os esperavam, os solteiros tomavam o rumo das mulheres. E elas já sabiam quando haveriam de trabalhar mais: “Dia da Mineira”, “Dia da Pantaleone”, “Dia da Meurer”. Cada fábrica tinha seu dia de suprimento. Não menor era a capacidade da Hipólito Caron de denunciar a longo prazo esses habitués. Nava, no referido “Baú de Ossos”, identificou ali um viveiro de sífilis, tragédia que infelicitou o amigo Isador (sic), sempre cuidadoso para não ser flagrado nas escapadas à zona. Era membro da União dos Moços Católicos…
Certa vez, conta, “foi contemplado com uma carga composta de gonorreia de gancho e uma cavalhada de provocar inveja aos melhores haras”. Situações bem comuns na crônica prostiputaz, como o memorialista definia a rua do Alecrim. Dilly anotou rua da Alegria e rua das Pecadoras, sem dizer exatamente onde elas se situavam. Mas provavelmente as tradicionais de sempre.
5 – As peripécias da prostituição floresciam a ponto de preocupar o bispado de Mariana, que enviou emissário para tomar providências e sacudir nossos religiosos, que viam esse e outros problemas sociais apenas com olhar de paisagem. Porém, nem por isso, as memórias do comércio do sexo deixaram de ganhar deliciosas cronicas de Murilo Mendes, poeta que em Juiz de Fora nasceu e viveu na infância e em breve adolescência. Já morando na Europa, lembrava-se daquele tempo em que a aristocrática cidade era “um pedaço de terra cercada de pianos por todos os lados”; mas sem esquecer das prostitutas mais famosas, a começar pela Desdêmona, vice-putain; não a primeira, porque a precedência não podia ser negada a Ipólita (sem H). Desdêmona, que ninguém ficou sabendo de onde viera, “foi plantar suas coxas na rua do amor industrializado, excomungado”.
Bem antes, ficou o caso pitoresco do grande romancista Artur Azevedo, que aqui morou alguns meses, e se foi queixando-se de que Juiz de Fora é fria demais no inverno e quente demais no verão. Pois Artur acabava de assistir no teatro à peça “O Naufrágio do Vapor Porto”, e, faminto, pediu que lhe indicassem o lugar onde àquela hora da noite pudesse comer. Um gozador recomendou a “Maison Moderne”, e só ao chegar lá ele descobriu que era um prostíbulo da mais baixa categoria.
Houve também o advogado Amanajós Alcântara de Vilhena Araújo, com justiça celebrado com o maior e mais encrenqueiro boêmio da cidade em todos os tempos. Fiel vassalo das bebidas fortes, bastava-lhe um pouco do muito álcool, diariamente consumido, para promover os maiores transtornos. Temido pelas crianças e evitado por toda gente de bem, Amanajós não perdia oportunidade de visitar a zona boêmia, onde, no dizer de Murilo, “moravam as horizontais e ele horizontalizava-se a noite inteira”. Desgarrafadamente bêbado, livre depois dos exercícios de Afrodite, certa madrugada acabou adormecendo junto à jaula de um circo, sem cuidar que ela ficara mal fechada, e desmaiou junto ao leão Marruzko. Para sorte sua, o felino dormia o sono de um ancião desdentado e vegetariano…
6 – Na velha redação do “Diário Mercantil”, lá pelos anos 50, veteranos repórteres ouviam no seu plantão histórias sobre conhecidas prostitutas do triângulo formado pelas ruas Sapo, Liberdade, Hipólito Caron e, mais tarde, Henrique Vaz, para onde foram empurradas, quando o delegado Abreu decidiu que não podiam mais ficar nas ruas centrais. Cuspindo fogo, rumaram para o outro lado do Paraibuna, condenação a que o folclore da cidade atribuiu alguns insucessos do delegado na política. Praga de puta. Mas acaba que a Henrique Vaz é que se celebrizou como a grande e última zona da cidade. Foi onde, já no começo do fim, celebrizaram-se as pernas de Tereza, perfeitas, torneadas e cobertas de uma penugem suave, que fazia lembrar os pêssegos da melhor procedência. O sobrenome de Tereza era Bezerra, não do batistério, mas para celebrar uma de suas habilidades. Tal como as vizinhas, manejava também com destreza a navalha, com que se defendia de desaforos dos gigolôs. Brigas eram comuns e diárias, principalmente depois do consumo de cervejas e cachaças no Bar Brasil. “Corre, que aí vem o Dorigatti”, investigador da Polícia, com terno e sapatos brancos, contrastando com o preto do bigode bem pintado.
Conta-se ainda, com muita graça, a história singular de Aurora, que teve passagem meteórica por Juiz de Fora. Certo dia de junho de 1940 ela desceu do Rápido, trem da Central do Brasil, foi para um dos quartos alugados para encontros na Floriano. Do pouco tempo em que morou ali, ficou a fama de que só conseguia atingir ou fingir o clímax do prazer cantarolando a estrofe do Hino Nacional, ato inconsciente que talvez resultasse de um distante avô, protagonista da Retirada da Laguna na Guerra do Paraguai.
Deu-se que, certa noite, prestando na cama seus favores ao cabo Expedito, corneteiro do Regimento do Décimo RI, ele, não menos cioso das posturas cívicas, recomendadas no quartel, pôs-se de pé, nu, com a mão e todas as demais partes do corpo em posição de sentido ao ouvir de Aurora, no êxtase, o primeiro sinal da estrofe do hino. À inesperada cena de patriotismo seguiu-se o insucesso das boas intenções que o coitado acabara de trazer do quartel.
7 – Foram as aventuras e tragédias encenadas nos quartos de biombo de Desdêmona e Ipólita (Sem H), da Florência Gambá, de Tereza e quantas alugavam o corpo para uma vida quase invariavelmente curta e trágica que construíram a crônica da prostituição. A “vida airada” foi desaparecendo aos poucos. As ruas da boêmia ganharam novas funções e biografias. Zona virou coisa demodê, e os que precisam daqueles serviços ganharam outros endereços, ao ar livre descampado da Titia do Aeroporto ou em companhia das moças que vinham trabalhar no K-2 de dona Carmem Maranhão.
Em meados da década de 60, na Rádio Industrial, vivíamos, com José Carlos, o Repórter da Madrugada, com o carro de reportagem tentando descobrir onde estava a notícia naquelas horas quase mortas. Quanta vez o fato estava na Henrique Vaz, domicílio daquelas pobres mulheres, damas de uma rua em fim de carreira, decadente, cenário apagado de incríveis histórias. Mas ainda houve tempo de conhecer e entrevistar o legendário Juvenal, com seus oitenta e tantos anos, metade dos quais dedicados às “horizontais” com invulgares façanhas. Mas dele nada mais havia, além da simbólica presença e velhas lembranças. Pobre Juvenal. Pendia inerte a veneranda tripa. Ouvimos sua história e fomos dormir.