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Robertão gritou, ele encontrara um Hércules, um americano de uns dois metros de altura.

Robertão gritou, ele encontrara um Hércules, um americano de uns dois metros de altura.

O gigante pegou um tambor de duzentos litros e colocou no outro lado da pista. “Puta que pariu!”, pensei. Olha só o que aparece na Amazônia. Imaginem se eu desse de bravo ou ficasse nervoso.

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03-07-2023 – 15h:10

José Altino Machado *

Robertão ia fazer um serviço no mato. Antes de sair, passou pelo Fernando com a cara fechada e disse-lhe querer, quando voltasse, os desaparecidos dezoito gramas de ouro dentro do picuá. Se não estivessem lá, o desentendimento seria forte.

O outro não tinha mais o ouro para repor e ficou com medo. Medo não, entrou em pânico. Sem solução, conhecendo bem o homem que o admoestara, pegou a espingarda calibre doze que tínhamos na cantina e saiu atrás, escondendo-se na floresta. Quando Roberto, voltando tranquilo e calmo passou, Fernando deu-lhe um tiro nas costas que lhe arrebentou o coração.

Fiquei perplexo ao ser informado do fato. Desde o início desconfiei da primeira versão a mim chegada. Roberto, homem correto, cheio de valentia, atirava muito bem, acabava por morrer de maneira covarde, até indigna para gente como ele.

Aquele tiro mudou para sempre minha vida na Amazônia. Desaparecia ali meu parceiro de chegada à região, o amigo verdadeiro em quem confiava cegamente e o grande tocador de toda e qualquer conquista ou realização que eu até então fizera no Norte.

A morte de Roberto transformou-me. De repente, tudo mudou e tomou outro rumo.

Esse rapaz que matou Robertão, era mesmo um desvario e na sequência matou outro homem, novo, ali conosco, que já demonstrava ser de confiança. Pistoleiro contratado por um pessoal contra nós, acabou preferindo estar ao nosso lado não só por ser mais saudável, como também por ter sentido que as razões nos eram favoráveis. Logo a seguir a essas notícias, um tanto abalado, quedei-me numa poltrona na sala de estar em casa e num rebuliço de memória recordava uma penca de acontecimentos que envolveram a mim e o meu inseparável companheiro Roberto.

Pouco tempo atrás, muito pouco, tinha aparecido um tal Donald, do Rio de Janeiro. Geólogo, pedia-me para conhecer o garimpo do Acari. Dizia que devia escrever uma tese sobre geologia amazônica. Nada desconfiei do circunspecto estranho, pareceu-me boa gente. Mandei um avião levá-lo. Por lá ficou uns dez dias. Ao retornar, agradeceu muito e perguntou se poderia voltar. Afirmava passar pelo garimpo onde eu estaria para que então o autorizasse a seguir de novo ao Acari, desativado naquele momento. Gostara muito de lá e do sossego que dava para estudos.

Passados não muitos dias após a despedida, estava no garimpo Rosa de Maio junto a Robertão e outros companheiros quando um recém-chegado garimpeiro, vindo no avião do Zezão, perguntou-me se voltara a tocar o “Acari”. Ele vira muita gente por lá, mais de vinte homens. Surpreso, disse-lhe que não.

Chamei Robertão, Zé Henrique, um piloto novo como reserva para provável ferido ou defunto e voamos imediatamente para o Acari. As averiguações anunciavam-se complicadas.  Esse negócio de invadir área da gente já nos causara muito transtorno. Trinta minutos do Rosa até lá. Pousamos e paramos o avião no fim da pista. Descemos calmamente e fomos andando de volta na pista, em direção ao acampamento. O pessoal estranho que estava em volta começou a correr e a entrar no mato.

Matutei na hora: se eles correm de nós, estão com má intenção. Ordenei imediato retorno ao avião para pegarmos armas longas e voltamos chamando os homens que corriam. Não tardou, descobrirmos que eram simples trabalhadores e gente humilde que estava lá. Tendo visto que aqueles homens não poderiam nos expor a risco, procurei acalmá-los, dizendo-lhes querer apenas o patrão ou quem os trouxera. 

Estavam em pânico. Robertão foi com Zé Henrique e conseguiu pegar o maior grupo deles dentro do mato, já trazendo todo mundo desarmado. De repente, identificados líderes e chefes, eles começaram a correr rumo à floresta. Corremos atrás. Não iriam longe, não eram tão loucos. Sem guia mateiro, ficariam na periferia da pista de pouso. Logo os cercamos e só então vi o conhecido geólogo Donald. Acompanhavam-no amoitados e tremendo de medo outros estrangeiros, um deles, sujeito muito forte, de nacionalidade americana e dois canadenses.

Robertão, ao ver o grupo tentando se esconder atrás de um toco, deu um tiro de aviso e mandou que se levantassem. De repente, gritou para que eu fosse ver o que ele encontrara. Surgira um verdadeiro Hércules, um americano de uns dois metros de altura por dois de largura, absurdamente forte. Percebi que Roberto estava pensando em atirar no grandalhão. Impedi-o rápido.

Mandei que o mastodonte se aproximasse, acautelado na coronha da espingarda doze Boito e perguntei-lhe o que fazia naquele lugar. Ele apenas fora contratado para trabalhar com esses outros estrangeiros e não queria arrumar confusão, disse-me calmamente. Sobre ele, lembro-me de que havíamos tentado mudar de lugar uns tambores cheios de óleo e não conseguindo, nós os deixamos no lugar, mas poderíamos tentar removê-los de novo com a ajuda daquele guindaste humano. O gigante pegou um tambor de duzentos litros, desamarrou de outros, levantando-os um a um nos peitos e colocando-os no outro lado da pista. “Puta que pariu!”, pensei. Olha só o que aparece nesta Amazônia. Imaginem se eu desse de bravo ou ficasse nervoso.

Reunimos o pessoal, avisei que as armas estavam em nosso poder e fui claro. Eles não ficariam armados ali. Iria retirá-los e levá-los embora. Perguntei ao rapaz que liderava o grupo como haviam entrado, pois o tal Donald estava de cara no chão. Queria saber por que não me pedira lá em Manaus para entrar. A resposta desagradou-me e foi esclarecedora: havia pagado trinta mil dólares para arrumar aquela área ao diretor do DNPM. Não teria de pedir nada a mais ninguém.

Sem deixar margem à discussão, avisei-lhe que um dia procuraria saber a quem ele pagara aquela quantia e como explicar a presença deles no meu garimpo. Agora, era melhor irem embora. Foi só começar a dar papo, a valentia chegou. Diziam que se sumissem a embaixada do país iria procurá-los. E continuou a questionar com que autoridade eu o colocaria para fora.

 Aquilo já começava a me chatear e mesmo assim retruquei calmamente que no momento a única autoridade que eu tinha estava embutida nesta espingarda que carrego, em forma de cartucho com chumbo. “Se você insistir muito com isso, vamos chegar às vias de fato e não a bom termo”. Eu estava bem indignado com este bosta de geólogo holandês que estava com eles. Ele sabia muito bem que tudo aqui era meu. Tanto ele sabia que era meu que foi me pedir para vir e eu mandei que o trouxessem no meu avião. Ele veio, comeu à minha mesa e voltou no meu avião. Foi até bem-vindo, porque disse que escreveria um livro para expor sua pesquisa mineral sobre este lugar. Portanto, inocência quanto a quem era o legítimo proprietário, ele não podia alegar.

Sentindo-se mais confiante pela minha aparente calma, o estrangeirinho começou a se exaltar, falando demais.  Apesar da raiva, minha paciência desceu só à sacanagem.

Decidi chamar Robertão e o Zé Henrique, o piloto reserva que a esta altura, bastante apavorado, repetia sem parar que já estava sentindo cheiro de pólvora.  Acalmou-se quando me ouviu dizer que eu ficaria e aquele americano que estava quietinho iria comigo para Manaus. Quanto aos outros três vagabundos, colocassem-nos sentados na traseira do avião, com Robertão de frente para eles de revólver na mão. Decolassem, mas antes disso, tirassem a roupa deles. Iriam pelados, nus. As instruções eram bem claras quanto ao voo.

“Na Transamazônica tem muito lugar de pouso. Você voa um pouco, aterrissa e deixa um pelado. Depois voa cinquenta quilômetros, pousa, deixa outro peladão, mais cinquenta, o último. Depois volte para cá”. Para não deixar nenhuma margem de dúvida, questionei se o piloto e Robertão me haviam entendido. 

Mandado, bem obedecido. Os três lá, pelados ficaram. Transamazônica, beira de mata, sem roupa, sem dinheiro, nem vergonha.

Embrulhei tudo deles, seus passaportes e outros documentos, guardei numa pasta para levar comigo.  Chamei a Polícia Federal pelo rádio quando estava chegando a Manaus. Esperaram no pátio do aeroporto e logo prenderam o americano que eu levara. Junto, entreguei os pertences dos outros três que largamos na floresta. Expliquei não os ter trazidos, porque estavam metidos a bravos e bestas.

Passaram-se vinte dias e os gringos não tinham aparecido ainda. A Embaixada Americana queria saber onde estavam. A Polícia Federal pressionava-me também e eu cá só lhes repetia haver largado os três lá na Transamazônica.

Finalmente, eles chegaram a Porto Velho a pé, de carona, calção vermelho, o que denunciava uma possível barganha corporal com os índios, era o que tinham. A imprensa dos Estados Unidos e do Canadá publicaram que bandidos atacaram o acampamento da Canan, que era o nome da empresa deles. Na versão dos jornais estrangeiros, a empresa comprara uma mina de ouro no Brasil.

A origem da informação fora um release do geólogo Donald, que detalhava a capacidade de ouro da mina. As ações subiram, eles venderam papéis conhecidos como ações, truque velhíssimo. Tentavam, na verdade, continuar o jogo e nem com tudo isso desistiram, nem podiam, senão tomariam cadeia no Canadá.

Não havendo concluído o trabalho, numa nova tentativa procuraram proteção de pistoleiros. Tiveram cobertura de ex-policiais civis do Amazonas e invadiram novamente a área com a ajuda deles. Fretei um helicóptero, botei uma turma arretada dentro mais Roberto de novo e fui para lá. Antes de descermos, todo mundo correu e embrenhou-se no mato. Não adiantou nada chamar; escafederam-se. Mantive a pista ocupada e ninguém teve coragem de vir.

Dias e dias, os homens desapareceram no mato. As famílias deles, preocupadas, nos procuraram, assim como a polícia, autoridades, as entidades dos direitos humanos tão em voga, com a afirmação de que eu havia jogado todos do avião sobre a floresta. Queriam todos que eu desse conta desses homens. Aquilo me enchia o saco. Nem os viras, não tinha de dar conta de nada. Isso provocou um clima de produção cinematográfica em Manaus, chamando a atenção de todo mundo. O jornal publicou matéria sugerindo desconfiança de que eu os jogara mesmo e estava sendo acusado formalmente disso.

Fiquei com fama de mau e não adiantava explicar que os homens correram “enviadados” e eu não tivera contato com nenhum deles. Instalaram uma comissão investigativa proposta por um promotor da capital e outras ações para me intimidar. Fui acusado por quase quinze dias de ter matado aqueles homens.

Finalmente apareceram num lugarzinho na beira do Rio Madeira. Eles fugiram pela mata procurando os rios e ao longo das margens conseguiram ajuda de um canoeiro. Trinta e seis dias levaram para chegar ao destino. Um deles morreu no meio do mato, o que fez correr o boato de que pelo menos um havíamos assassinado. Com tantas acusações alardeadas sem provas, ficou difícil de comprovar. Sempre imaginei que esse homem tenha morrido numa briga entre eles durante a fuga.

No meio desses invasores havia um pistoleiro que veio falar comigo. Pedia-me desculpas formais, a seu modo.

“Seu Zé, o senhor mim desculpa e mim contrata para ficar ao seu lado, trabalhando com o Roberto?”.

Expliquei-lhe não ter nada contra ele, mas trabalharmos juntos era um pouco demais. O tempo passava, ele insistindo muito, Roberto começando a cismar, até que um dia eu lhe disse que voaria para o Acari levando o pistoleiro.

Achou que eu havia enlouquecido, então lhe expliquei que seria melhor o pistoleiro ficar perto de mim.

“Você sai a toda hora para outros garimpos.  Aquele pistoleiro poderia fazer mal à sua família.”

Alertava Robertão.

Embora aquele rapaz fosse um pobre coitado, iria tentar. Levei o cidadão, cujo apelido era, por coincidência, Holandês.

Eu ali, na poltrona da sala de estar de minha casa... Roberto é morto, o cantineiro dos dezoito gramas de ouro desaparecidos chama o Holandês em outro local, provavelmente dizendo-lhe que estavam invadindo o garimpo e já haviam matado o Roberto.

Quando se aproximam do lugar onde se encontrava estendido o corpo de Roberto, o cantineiro Fernando aproveita o momento em que o Holandês se agacha próximo do cadáver e dá-lhe um tiro na cabeça, por trás.

Depois, ficou tentando falar comigo pelo rádio. Não havia propagação para transmissão, naquele momento estava em outro garimpo. No dia seguinte, indo a Manaus, logo ao chegar, o rádio ainda insistia, chamando. Atendi, entrando na frequência do Acari e ouvi o trágico anúncio:

 

- “Seu” Zé, venha cá, mataram o Roberto.

- Como é que é?

- Mataram o Roberto ontem “seu” Zé, ele ainda está lá, caído.

- Quem matou?

- Ah! Foi o Holandês, mas eu o matei.

 

Raciocinei rápido e concluí que aquilo era conversa fiada. Como eu estava no auge da má fama, não podia chiar e o mal maior já acontecera. Nem quis ir lá para não ver corpo, tampouco encontrar-me com Fernando. Sei lá o que poderia fazer com a visão de tudo! Pedi a um delegado amigo nosso que fosse ao garimpo buscar os corpos. Disse-lhe ter certeza absoluta de que Fernando era o assassino e que não era verdade que o Holandês teria matado Roberto e afirmei também que Fernando tinha matado o Holandês.

“Não vou entrar nessa, porque vão dizer que é promiscuo, eu junto com você e isso vai colocar em jogo o seu status imparcial de polícia. Seja como for, não diga que foi o vagabundo. Vamos fingir acreditar na história, certificar-nos do que houve e depois a gente vê. Pode ter certeza de que foi Fernando quem matou Roberto”.

Questão de tempo. Logo depois entrou no caso uma delegada nomeada para o duplo homicídio. Conversas chegaram aos ouvidos superiores que a nomearam em lugar do nosso amigo por temerem que fizéssemos alguma besteira.  A nova autoridade nem me conhecia, o que já aliviava as preocupações deles. Nada demorou e ela concluiu que o assassino era realmente Fernando, que terminou confessando. Foi preso, ficou dois anos na penitenciária sem julgamento e nem continuidade processual jurídica. Um absurdo. Sempre que o promotor lhe falava do seu direito à liberdade por excesso de prazo, sem culpa formada ou julgamento, ele respondia que se saísse da penitenciária eles o matariam na rua.

Achava que eu providenciaria o seu despacho para o além, para o inferno, na contramão do Roberto e ficou trabalhando na penitenciária, na mais pura candura. Não queria sair por medo e insegurança. A família do finado Roberto andou descontando nos parentes do Fernando, em Governador Valadares e em Mutum, Minas Gerais. Fernando saiu da penitenciária pela primeira vez depois de três anos e uma semana depois o mataram mesmo, numa rua de Manaus.

Ex-policial-militar, natural de Mutum, Fernando fora para a Amazônia por acaso. Sua mulher trabalhava com minha mãe, que me pediu para ajudá-lo. Eu nem o conhecia, mas mãe é mãe; pediu, atendi. Levei-os para o norte, dei-lhe serviço no Amazonas para tranquilidade da mulher e o resultado foi essa tragédia. Tudo começou com o roubo de dezoito gramas de ouro. Roberto tinha certeza de que o ladrão era Fernando, pois só eles estavam lá. Fernando, por não possuir ouro para repor e por medo de Roberto...

Por que tirar dezoito gramas de ouro? O que se faz com isso? Ninguém de fora entende. É fácil de explicar. Tirar dezoito gramas pode ser atribuído a uma diferença constante de balança. Hoje oito, dez amanhã, cinco depois e, como se trata de pesos mínimos, custa-se a dar por fé. É o furto do rato, grão em grão. O grande questionamento é sobre a hora e como interferir. Talvez a excessiva valentia de Roberto o tenha tornado exageradamente temido ou a imensa covardia e medo do outro o tenha tornado um frio duplo homicida.

* José Altino Machado é jornalista e líder garimpeiro

Imagem da Galeria Quanto aos outros três vagabundos, que fossem colocassem-nos sentados na traseira do aviãor na mão.
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