08-12-2024 ás 11h30
Marcelo Galuppo*
Ricardo I, chamado de Coração de Leão, foi mais um mito do que um rei. A bravura e a liderança deram-lhe o epíteto, e o estilo de vida, que se assemelhava mais à de um cavaleiro lendário do que à de um soberano, deram-lhe a fama de herói.
Há dois tipos de heróis. Um, o primeiro em que se pensa, é o das guerras e das cruzadas, que fazem o nome de alguém conhecido para além de seus domínios. Ricardo I foi pouco conhecido pelos ingleses de seu tempo, porque passou a maior parte da vida longe de casa, na França, na Palestina e na Itália, tornando-se o personagem das cantigas de trovadores e das lendas de Robin Hood. Outro, é o herói da vida comum, cujo nome costuma ser mais conhecido pelos de casa do que pelos que estão longe, que costuma lutar suas pequenas batalhas em silêncio e na proximidade dos seus. Uma linha tênue separa o primeiro tipo de herói da loucura. Uma distância enorme separa o segundo da insensatez. Difícil mesmo é ser herói no cotidiano.
Quando Ricardo Henrique Carvalho Salgado faleceu no dia 03 de dezembro, aos 47 anos, dois buracos se abriram. Um, dentro de nós; outro, sob nossos pés. Ele era uma amigo querido, e também o esteio do Departamento de Introdução ao Estudo do Direito e Direito do Trabalho da Universidade Federal de Minas Gerais, do qual foi chefe por quatro mandatos. Conseguiu trazer paz, camaradagem e cooperação a um ambiente antes dividido entre egos e projetos que se viam como mais distintos do que de fato eram. Não há, entre seus colegas, quem não lhe seja grato, às vezes por ter resolvido um problema que parecia maior do que nós, às vezes apenas por ser gentil com quem cruzasse seu caminho.
Ricardo tinha sempre um sorriso no rosto, era generoso, sereno, conciliador e atleticano. Daniela Muradas lembrou que era divertido. Renato Cardoso, que deu a vida pela UFMG. Maria Rosária Barbato, que costumava descomplicar o complicado. Cynthia Menezes, que não tinha vaidade (tinha orgulho, de sua filha e de sua família). Fabiana Soares, que era o tipo de pessoa que anda fazendo falta neste mundo. Andityas Matos, que era um chefe que não era chefe. Mônica Sette Lopes, que tornou melhores os lugares por onde passou. Eu diria que falava alto, mas que nunca o vi gritando com ninguém. Heróis do cotidiano são assim mesmo.
A virtude de um herói, seja o dos grandes feitos, seja o do cotidiano, é a coragem, que é a virtude que transforma o sonho em realidade, e é a palavra coragem que agora me vem à mente, quando penso em uma única que possa descrevê-lo. Coragem de ser quem era. Coragem para tirar o melhor daqueles com quem convivia.
Assustamo-nos ao recebermos a notícia de sua morte, pela qual já esperávamos: quando, há dois meses, submeteu-se a uma ablação para tratar uma arritmia cardíaca, sofreu parada cardiorrespiratória por vinte e três minutos, e entrou em coma. É difícil sobreviver a isso. Foi vítima de um coração que parecia não se ajustar ao ritmo metódico da vida sem vida. Ricardo tinha mesmo um coração diferente, mas, um dia, mesmo o coração dos leões deixa de bater.
Quando seu esquife desceu à sepultura, tive a impressão de que algo estava sendo arrancado de mim. Olhei a face dos presentes àquela cerimônia e as lágrimas indicavam que todos tinham a mesma sensação. Sei porque foi assim: em sua vida, Ricardo dividiu conosco seu coração, que não cabia em seu peito, somando um pedacinho dele ao de cada um de nós, deixando nossos próprios corações maiores. Pensávamos que era uma doação, mas era um empréstimo. Agora que partia, é como se ele reclamasse de volta seu coração de leão, inteiro, para viver uma nova vida, aguardando por nós. Ricardo não descansou: foi lutar outras batalhas.
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG e autor de vários livros, como Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, pela Editora Citadel. Ele escreve aos domingos no Diário de Minas.