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Retrospectiva inversa

Sentimos surpresa quando vemos que não cumprimos, na agenda passada, a data do início da dieta, da matrícula em academia, da correção de um hábito ou vício que tem dado problemas

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30-12-2023 às 08:38h.

Rogério Reis Devisate*

Mais um ano termina. Como normalmente fazemos, chegamos ao final exaustos e cheios de situações por corrigir no ano vindouro. Fazemos lista de coisas a cumprir, decidimos não repetir erros do passado e teimamos em marcar uma agenda nova com as coisas que não conseguimos fixar em nossas mentes.

Passamos da agenda antiga para a nova muitas coisas que não realizamos, como se a nova fosse nos catapultar para um mágico cenário de Alice no País das Maravilhas, onde tudo ocorreu maravilhosamente bem.

Sentimos surpresa quando vemos que não cumprimos, na agenda passada, a data do início da dieta, da matrícula em academia, da correção de um hábito ou vício que tem dado problemas, como nos atrasar para compromissos, nos distrair no pagamento de contas em dia e de fazer dívidas por coisas que nem precisaríamos comprar.

Também é tempo de retrospectiva, com o significado de apenas olhar para trás. Não buscamos força para nos lançar adiante. Costumamos olhar para trás para reclamar, lamentar e culpar outros por coisas que nós mesmos fizemos ou deixamos de fazer e, assim, por nossa ação ou omissão, de permanecer presos nas gaiolas de sempre, como se gostássemos mais de cantar como passarinhos aprisionados do que de ser livres para viver em plenitude as dádivas das nossas vidas.

A lamúria tem sido uma constante? O que tem sido feito para mudar? Não fazemos dessa época o tempo da catarse, da purgação do que nos aflige e corrompe, porque não nos é próprio.

De certo modo, gostamos do fardo que temos carregado, como se tivéssemos orgulho dele, embora saibamos o quanto ele nos custa. Não lavamos nossa alma das máculas adquiridas. Não nos libertamos das emoções que nos feriram, não cicatrizam o que nos atingiu e não perdoamos o que já se foi. Acumulamos tudo isso e a essa bagagem pesada agregamos novos dissabores. Isso não é bom.

Tendemos a fazer projeções futuras, como se o tempo curasse tudo, sem dimensionar claramente que o que cura não é o tempo, mas o que fazemos durante o seu passar.

Precisamos fechar ciclos e retirar de nós o que não mais nos pertence, aflige, fere e entristece. Não podemos continuar a imaginar coisas que já se foram, como se o passado distante ou próximo pudesse ter o direito de contaminar o tempo presente e, assim, macular o nosso futuro, que ainda nem chegou.

Vivemos ansiosos e com as emoções embaralhadas, nos vestindo de armaduras e agindo como gladiadores, enquanto a nossa alma e o nosso coração estão feridos e fracos.

Cuidamos da aparência de estar bem e temos tido dificuldades em ter o nosso bem estar em qualquer lugar. Temos sorrido de piadas sem graça, para não perder amigos. Temos suportado deselegâncias, a troco de nada. Temos admitido pequenas porções de ilusão com pitadas de carinho e amor, para não ficar sozinhos. Temos medo da solidão ou de descobrir que livres não sabemos utilizar tão bem da liberdade? Temos medo do que? De descobrirem que fazemos terapia, que tomamos remédios para dormir, outros para acordar, outros para emagrecer e desperdiçamos o tempo fazendo nada ou vendo pela enésima vez uma série de tv? De perceberem que não somos tão legais quanto queremos parecer e nem tão felizes quanto as fotos coloridas que postamos nas redes sociais?

O que tem sido de nós, diante do espelho? Gostamos do que vemos, de quem somos ou precisamos colocar a máscara de fisionomia leve para disfarçar as olheiras com as quais convivemos, fruto das noites indormidas e dos sentimentos renitentes que nos fazem ter pesadelos mesmo acordados?

Que tal nesse Réveillon fazer algo diferente, mesmo? Que tal se vestir com a melhor roupa e se cercar de gente, não para vender sorrisos como se fosse uma propaganda de refrigerante e sim para se despedir do que já findou? Que tal não fazer promessas que não serão cumpridas e sim, verdadeiramente, assumir que não precisamos de agenda para fazer o que devemos. Se queremos falar alguma coisa ou fazer algo, não precisamos de agenda, seja de papel ou eletrônica. Não precisamos ser “lembrados” por algo se isso ainda não foi fixado em nossas mentes, alma e coração, muito diferentemente de quando estamos apaixonados por alguém e fazemos de tudo (e mais um pouco) para estar com a pessoa amada.

Por qual motivo não assumimos o nosso amor próprio e que somos a pessoa que nos basta para a nossa felicidade? Vamos nos amar e respeitar a ponto de poder assumir que estamos apaixonados por nós e o de ser capazes de fazer tudo e mais um pouco (a repetição é intencional) e até além por nós mesmos. Nesse momento e a partir dele, faremos aquilo que quisermos por nós pois, de fato, o nosso querer é tudo e fundamental.

Que em 2024 possamos querer ser melhores pais, filhos e amores de quem nos ama. Que em 2024 possamos agir com paixão em tudo o que fizermos, trabalhar com mais prazer, construir coisas, fazer algo diferente, seja jardinagem, esporte, pintura, terapia, estar com os exames médicos em dia, visitar aquela tia ou tio que há tempos não vemos, ligar para aquele amigo ou parente que circunstâncias fizeram com que ficassem distantes, ser voluntário e ajudar em obra de caridade em alguma instituição ou onde possamos fazer um pouquinho a diferença na vida de alguém, que consigamos superar a nossa dificuldade em beber mais água, dormir mais cedo e comer mais saladas e frutas, que sejamos mais gentis no trânsito e, também, como pedestres, que oremos para agradecer, que não desperdicemos tempo – que é apenas nosso – e que não nos esqueçamos de que somos únicos no mundo, parecidos com todos, mas diferentes, exclusivos e importantes.

Quando entramos no avião, somos informados pela tripulação de que, em caso de emergência, as máscaras de oxigênio cairão do teto e que deveremos, primeiro, colocar uma em nós, antes de colocar em quem está do nosso lado. Essa é uma interessante metáfora para a vida: que cuidemos de nós para poder bem cuidar das pessoas amadas e próximas.

Que em 2024, então, não nos esqueçamos de nós nem um dia sequer e que, por isso e exatamente por isso, possamos chegar ao seu final e ter orgulho da sua retrospectiva, não no que diz respeito ao time de coração, ao político de estimação ou a qualquer coisa exterior, mas, principalmente, por termos feito o melhor a cada dia, por nós e, assim, pelos que nos são queridos e próximos.

Que esses dias finais de 2023 sejam de despedida, portanto, não desse ano de calendário, mas de quem fomos para nós e para os outros, durante os seus 12 meses.

Façamos, portanto, um tipo de retrospectiva inversa, olhando para a frente e que venha o novo neste ano de 2024, o novo em nós, a melhor versão de nós mesmos, a mais autêntica, profunda e verdadeira essência de cada um.

*Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária.

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  3 comentários

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Parabéns. Muita verdade e sabedoria. O que passamos em 2023, já foi, está feito. Muitas esperanças no que virá.

Maravilhosa mensagemTudo que podemos fazer, esperar em 2024Parabéns.

Belíssimo texto, a pura verdade

 

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