Outra inovação significativa nas regras foi a proibição do uso de robôs para mediar interações com eleitoras e eleitores, impedindo as campanhas de simular diálogos
30-12-2024 às 09h09
Lúcio de Medeiros*
As eleições de 2024 foram marcadas pelo impacto positivo de
novidades normativas, os quais foram cruciais no enfrentamento dos desafios contemporâneos impostos pela evolução tecnológica, a disseminação de desinformação e a necessidade de ampliar a inclusão social. A Justiça Eleitoral, por intermédio de dispositivos legais como a Lei nº 9.504/1997, a Resolução nº 23.610/2019 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e outras regulamentações complementares, demonstrou capacidade de adaptação para proteger a integridade do processo eleitoral e reforçar a confiança da sociedade no sistema democrático.
Com a criação de normas sobre o uso da inteligência artificial, o combate à desinformação e a promoção de um ambiente eleitoral mais inclusivo, as eleições consolidaram ainda mais o papel da Justiça Eleitoral como guardiã da democracia. Além do mais, o TSE intensificou a transparência e a fiscalização das campanhas, por meio de seu poder de polícia, incorporando diretrizes que asseguraram a lisura do pleito, primando pela ética e equidade.
Regulamentação do uso de Inteligência artificial nas eleições.
A evolução tecnológica trouxe novas possibilidades para campanhas eleitorais, mas também desafios éticos e jurídicos. Em 2024, a inédita regulamentação do uso da inteligência artificial (IA) em campanhas eleitorais foi um dos avanços mais significativos. A Resolução TSE nº 23.732/2024 que alterou a Resolução nº 23.610/2019 trouxe avanços legislativos que abordaram de forma inédita o uso da IA no processo eleitoral brasileiro.
Dispositivos como o artigo. 9º-B., que impôs ao responsável pela propaganda eleitoral feita com tecnologia de inteligência artificial, o dever de informar, de forma explícita o emprego e o nome da tecnologia utilizada. Vejamos: “a utilização na propaganda eleitoral, em qualquer modalidade, de conteúdo sintético multimídia gerado por meio de inteligência artificial para criar, substituir, omitir, mesclar ou alterar a velocidade ou sobrepor imagens ou sons impõe ao responsável pela propaganda o dever de informar, de modo explícito, destacado e acessível que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e a tecnologia utilizada.”
Outra inovação significativa nas regras foi a proibição do uso de robôs para mediar interações com eleitoras e eleitores, impedindo as campanhas de simular diálogos que aparentassem ser realizados pelo candidato ou por qualquer outra pessoa.
A norma do art. 37, XXXIV da Resolução nº 23.610/2019, trouxe ainda o conceito de IA, a saber: “sistema computacional desenvolvido com base em lógica, em representação do conhecimento ou em aprendizagem de máquina, obtendo arquitetura que o habilita a utilizar dados de entrada provenientes de máquinas ou seres humanos para, com maior ou menor grau de autonomia, produzirem conteúdos sintéticos, previsões, recomendações ou decisões que atendam a um conjunto de objetivos previamente definidos e sejam aptos a influenciar ambientes virtuais ou reais.”
Vê-se que a norma eleitoral trouxe a exigência de transparência na identificação de conteúdos fabricados com tecnologia de inteligência artificial, com vistas a impedir práticas manipuladoras ou enganosas.
O artigo 57-B da Lei nº 9.504/1997, que regula a propaganda eleitoral na internet, também desempenhou papel fundamental ao exigir que as campanhas identificassem claramente a origem de conteúdos impulsionados por algoritmos. Ferramentas como deepfakes e bots foram monitoradas de perto pela Justiça Eleitoral, com base no artigo 243 do Código Eleitoral, que veda propagandas que distorçam fatos ou ataquem a honra de candidatos.
Em outras palavras, a legislação eleitoral não vedou o uso de IA na propaganda eleitoral, mas sim, a regulamentou de forma a coibir a produção e disseminação de conteúdo lesivo.
A referida regulamentação evitou abusos e garantiu que as tecnologias fossem usadas de forma ética, fortalecendo a confiança do eleitor no processo eleitoral. A atuação da Justiça Eleitoral nesse campo também estabeleceu um precedente essencial para futuras campanhas, demonstrando a necessidade de equilíbrio entre inovação e responsabilidade, servindo como um termômetro para as eleições gerais de 2026.
Inclusão e diversidade no processo eleitoral.
As eleições municipais de 2024 também foram marcadas por avanços na promoção da inclusão e da diversidade no processo eleitoral. Tal fato se deve ao reconhecimento que a democracia só se traduz em sua plenitude quando reflete a pluralidade da sociedade. Nesse sentido, a Justiça Eleitoral foi responsável por implementar ações afirmativas com vistas de ampliar a participação de grupos historicamente sub-representados, como mulheres, pessoas negras, indígenas e com deficiência, tanto no pleito quanto na estrutura institucional.
A Justiça Eleitoral realizou melhorias nos locais de votação para eliminar barreiras arquitetônicas e implementou avanços tecnológicos, como a adaptação das urnas eletrônicas com software que facilita a votação de pessoas com deficiência visual, como a implantação da voz sintetizada “Letícia” que ajudou esse grupo de pessoas.
Na promoção da igualdade racial, temos a criação da Comissão de Promoção da Igualdade Racial pela Portaria TSE nº 230. O grupo atua na elaboração de estudos e projetos para ampliar a participação da população negra no processo eleitoral, planejando ações que visam o fortalecimento do exercício da capacidade eleitoral ativa e passiva da população negra. Além do mais, a Resolução nº 23.724/2023 estabeleceu cotas nos concursos da Justiça Eleitoral, reservando 20% das vagas para pessoas negras, 10% para pessoas com deficiência e 3% para indígenas, o que demonstra o compromisso contínuo com a diversidade não apenas no pleito, mas na própria estrutura institucional.
Cumpre-nos destacar aqui, que a violência política de gênero foi enfrentada com rigor. O artigo 10 da Lei nº 9.504/1997, que exige a reserva de no mínimo de 30% (trinta por cento) e no máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo, foi acompanhado por uma fiscalização rigorosa e campanhas educativas para combater práticas discriminatórias. Essas medidas asseguraram que pessoas de diversas identidades de gênero tivessem maior espaço e segurança para participar ativamente da política.
A Justiça Eleitoral também promoveu eventos educativos, Tal como a “Democracia e Consciência Antirracista na Justiça Eleitoral” que em 2022 criou e lançou a cartilha Expressões racistas: por que evitá-las, e o II Encontro Nacional de Acessibilidade realizado em 2023, que fomentaram o debate e a conscientização sobre a importância da diversidade no processo eleitoral. Tais ações, aliadas à ampliação da participação indígena e quilombola nos debates, reforçaram o compromisso com uma democracia verdadeiramente inclusiva.
As eleições de 2024 provaram que a inclusão não é apenas um objetivo, mas uma prática contínua que fortalece a democracia brasileira, reafirmando que a pluralidade é um dos pilares fundamentais de um sistema eleitoral justo e representativo.
Fake news e o combate à desinformação
Nas eleições de 2024, o combate à desinformação tornou-se um dos principais desafios enfrentados pela Justiça Eleitoral, uma vez que as fake news têm o poder de distorcer a percepção pública, minar a confiança nas instituições e manipular o eleitorado, medidas rigorosas foram adotadas para proteger a integridade do processo democrático.
A legislação eleitoral, notadamente a Lei nº 9.504/1997 e a Resolução TSE nº 23.610/2019 foram os principais instrumentos normativos utilizados para enfrentar a disseminação das notícias falsas. A referida Resolução veda expressamente a veiculação de fatos sabidamente inverídicos com potencial de influenciar a decisão do eleitorado, tal como preconiza o art. 27, §1º da Res. 23.610/2019. Neste diapasão, a Lei nº 9.504/1997 prevê a possibilidade de remoção de conteúdos ofensivos ou falsos das plataformas digitais, aplicação de multa e sansões no âmbito, consoante se infere nos artigos 57 e seguintes, enquanto o artigo 58 garante o direito de resposta às vítimas de fake news.
Outra novidade, foi o Sistema de Alertas de Desinformação Eleitoral – Siade, implementado pelo TSE, o qual se caracteriza por ser uma ferramenta crucial no enfrentamento à desinformação, por meio do qual cidadãs e cidadãos podem enviar denúncias de notícias falsas passíveis de causar danos ao equilíbrio ou à integridade das eleições e ao processo eleitoral. Durante o pleito, milhares de denúncias foram registradas, resultando na remoção de conteúdos falsos, instauração de inquéritos e aplicação de penalidades aos responsáveis.
Por fim, anotamos que as eleições municipais de 2024 representaram um marco para a democracia, criando e consolidando avanços normativos, tecnológicos e institucionais que reafirmaram o compromisso da Justiça Eleitoral com a ética, a transparência e a inclusão, sempre com vistas a lisura do pleito. Por meio de notórias iniciativas, tanto em sua estrutura normativa, quanto em seu poder de polícia, que atuou no combate à desinformação, a regulamentação do uso de tecnologias e a promoção da diversidade, o pleito não apenas enfrentou desafios contemporâneos, mas também estabeleceu um modelo de governança que servirá como referência para futuras eleições.
*Lúcio Medeiros: Possui graduação em Direito pela Universidade Salgado de Oliveira (2010). Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2022). Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Presidente da comissão de direito eleitoral – Ordem dos Advogados do Brasil MG – 222 – Subseção – Barro Preto. Advogado, Sócio Proprietário do Escritório Lucio de Medeiros Advocacia. Possui experiência em Direito Cível e Processo Civil, bem como em Público, com ênfase em Direito Eleitoral, onde atua há mais de 14 anos. Colunista do Jornal Diário de Minas.