
CRÉDITOS: Divulgação
24-07-2025 às 09h03
Marcos de Noronha*
A dupla de psicólogas Patrícia Locks e Rosita Rodrigues acompanha, todas as terças-feiras, o grupo de Terapia Social no Hospital da Polícia Militar em Florianópolis. Após estagiarem nesta modalidade, alçaram a posição de monitoras e se recusam a deixar o espaço que ocupam para se dedicarem à arteterapia, conduzida por uma paciente, no mesmo dia, após a sessão de Terapia Social. A dinâmica com arte, na sequência das atividades, é aberta para outros participantes e constitui-se em um recurso de integração e entretenimento.
A experiência das psicólogas nesses grupos de Terapia Social contou com a observação da forma como a sessão ocorre, em que os temas para discussão são sugeridos pelos pacientes e, no final, discute-se sobre as medicações. Por se tratar de grupos heterogêneos, pode-se ter uma noção ampla de psicopatologia, considerando a diversidade dos presentes, assim como de psicofarmacologia. Patrícia e Rosita, inúmeras vezes, puderam observar que muitos dos pacientes chegavam aos nossos serviços super medicados, necessitando de acolhimento coletivo para suportarem melhor o processo de qualificação do psicotrópico e a gradativa retirada de várias medicações que constituíam uma polifarmácia nociva e desnecessária.
As sessões de psicoterapia de grupo, em que, de forma coletiva, se pode discutir os efeitos positivos das medicações e seus efeitos colaterais, requer habilidade do coordenador, pois não basta somente o poder de persuasão para tranquilizar os pacientes, já que opiniões contrárias se tornam importantes, com a adesão de outros pacientes com as mesmas percepções. Pela importância do tema remédios e doença mental, as psicólogas citadas planejaram uma conferência aberta ao público em sua cidade com o título: “Remédios Psiquiátricos: Quando podem ajudar?” Será no dia 9 de agosto em Palhoça, onde os participantes poderão conhecer os bastidores da atenção aos psicotrópicos nas últimas décadas, aumentando o conhecimento e a capacidade de lidar com as inúmeras contradições que acompanham o tema.
Eu escrevi no livro Cérebro e as Emoções alguns casos de iatrogenia. Trata-se de quando um médico, ao errar o diagnóstico, prescreve um remédio que, ao invés de ajudar, cria outro quadro, e muitas vezes grave. Contei sobre um ex-paciente, que em surto foi internado no hospital psiquiátrico, e a família solicitou que eu o acompanhasse. Fazia tempo que eu não tinha notícias dele, mas já o havia diagnosticado no Espectro Bipolar (que hoje prefiro denominar Espectro Impulsivo-compulsivo). No passado, havia se recuperado com o uso da associação de remédios: um neuroléptico, usado comumente como antipsicótico, e um estabilizador, que geralmente são as medicações antiepilépticas. Este paciente chegou a participar das sessões de Terapia Social, que colaboraram com sua recuperação, mas nunca trouxe uma demanda existencial, tampouco pareceu reconhecer traços de seu comportamento que resultaram na crise que sofreu.
Hipocrítico quanto ao seu quadro, deixou a Terapia Social para continuar o acompanhamento com uma colega em seu bairro, que optou por diminuir o estabilizador e prescreveu trazodona, em baixa dosagem, para ajudar na insônia, e citalopram, como antidepressivo. Como a insônia persistia, o médico associou zolpiden, medicação sedativa que, hoje, recebe tarja preta para alertar a sociedade, pois pode causar dependência. Nem a psiquiatra, nem a esposa (ou demais familiares) perceberam o quadro maníaco surgindo, que, em sua evolução, culminou com uma grave crise, levando-o a um estado delirante. Em franco delírio, proporcionado pelo uso inadequado de medicamentos, o paciente antecipou a morte da esposa e investiu na empregada, propondo a ela um casamento. Ao chegar ao hospital, convencido pela esposa de que deveria ser internado, o plantonista que o atendeu, jovem psiquiatra, ainda assim manteve o uso de antidepressivos, repetindo a conduta da psiquiatra assistente, não percebendo a ação iatrogênica causadora da virada maníaca. Este fato ilustra o despreparo de muitos médicos, neurologistas e psiquiatras para casos desse tipo, apesar de que, na atualidade, já não há mais espaço para desculpas, considerando o grande número de publicações em revistas especializadas e as frequentes discussões sobre o tema que têm ocorrido nos principais congressos e aulas de atualização.
Os bastidores da atenção ampliada sobre os aspectos biológicos das doenças mentais foram as descobertas dos remédios. A “terapia de conversa” de Eugen Bleuler, um dos pioneiros a integrar aspectos psicodinâmicos e orgânicos no estudo da esquizofrenia, influenciou todos nós. Tal modelo de associação contribuiu com o desenvolvimento da psicanálise de Sigmund Freud, no início do século XX, em que ambos compartilhavam a importância do inconsciente nos processos mentais. Alguns estudiosos defendiam que as doenças mentais eram decorrentes de desequilíbrios químicos no cérebro, cuja concepção foi se ampliando em nossa sociedade, principalmente com o aparecimento de importantes fármacos como o Prozac, em 1987, por exemplo. Foi o segundo inibidor da recaptação da serotonina desenvolvido, com o nome de fluoxetina, sendo o primeiro, uma pesquisa francesa, a fluvoxamina. Na época, as medicações psiquiátricas eram, na sua grande maioria, achados e nunca desenvolvidas para determinada ação.
Com a concepção biológica das doenças mentais, aspectos psicológicos e ambientais foram desprezados, até que, após décadas de desenvolvimento nessa área, nos deparamos com a falta de resultados, constatando que a doença continuava crescendo de forma exponencial. As depressões, de quarta causa incapacitante antes do que previa a Organização Mundial de Saúde, tornaram-se a primeira causa incapacitante. Com a crescente descoberta de medicamentos, cresceram também o número de diagnósticos publicados nos manuais internacionais e americano. Será que se tratava de doenças que sempre existiram e não eram reconhecidas, ou de novas psicopatologias tomando conta da sociedade moderna?
O primeiro remédio psiquiátrico foi um achado, chamado clorpromazina (Amplictil), lançado em 1954, capaz de acalmar esquizofrênicos nos hospitais existentes. Outros vieram a ser descobertos, mas não tiveram sucesso, como o meprobamato e o iproniazida. Todas elas foram desenvolvidas para outras funções e adaptadas para a psiquiatria, considerando seus efeitos. Porém, não se tinha ideia de como funcionavam, até que surgiu a hipótese da ação delas sobre os neurotransmissores, substâncias químicas que permitiam a comunicação de diversas áreas do cérebro e do organismo. O que considero relevante com essa descoberta é que, mais do que a contribuição que alguns remédios trouxeram à sociedade, um equívoco se estabeleceu, com a teoria de que a causa da doença mental é uma anormalidade na concentração cerebral de alguns elementos químicos. Mesmo na atualidade, alguns médicos acreditam que só um medicamento apropriado é capaz de combater a doença mental.
Muitas vezes, o paciente sai de uma consulta com seu psiquiatra ou neurologista sem qualquer referência de como deveria proceder em busca da causa de seu quadro, apenas com uma receita na mão. O pior é que, por volta de 2012, cerca de 90% dos clínicos, 80% dos neurologistas e 70% dos psiquiatras erravam no diagnóstico dos quadros classificados no Espectro Bipolar e, consequentemente, erravam ao prescrever remédios. Considerando que um paciente, ao receber medicações inadequadas, pode desenvolver quadros iatrogênicos ou, como efeitos colaterais, tornar-se embotado e comprometer o tratamento psicoterápico, atendi à solicitação de realizar cursos para não prescritores. Posteriormente, denominei “Integrando Psicoterapia com Psicofarmacologia”, como forma de atualização em psicopatologia e estudo de como os remédios podem ajudar ou atrapalhar o tratamento. Médicos e, principalmente, psicólogos frequentaram tal curso, não para aprenderem a prescrever, mas para serem capazes de reconhecer o uso inadequado de psicotrópicos, criando iatrogenias e interferindo na condução de suas psicoterapias.
Foi gratificante ver psicólogos experientes que, após o curso e por dedicarem mais tempo a seus pacientes de forma sistemática, identificaram aberrações nas prescrições médicas que, após corrigidas, permitiram a evolução de seus pacientes. São observações semelhantes às constatadas por Patrícia e Rosita nas Terapias Sociais, onde a polifarmácia era substituída por medicações mais apropriadas, em menor número e doses mais baixas. Viram as vantagens de compor psicotrópicos com o comportamento dos pacientes, em que estes, sem o protagonismo inibitório dos psicotrópicos, desenvolviam posturas mais saudáveis. Além disso, percebiam que tipos de pensamentos e posturas foram responsáveis pela doença que contraíram, assim como quais mudanças os libertaram.
Os processos para liberação de um fármaco são rigorosos atualmente, mas não quer dizer que sejam totalmente éticos e eficazes. Usualmente, comparam-se os efeitos de novos fármacos com um placebo, substância que nada contém de princípios psicoativos. Se os fármacos obtiverem resultados nessa comparação, eles entram em um processo de aprovação. Para tal aprovação, contam-se com critérios objetivos, como a aplicação de escalas, uma delas conhecida é a de Hamilton, por exemplo. Muitas vezes, os placebos ganhavam dos fármacos e não podiam ser aprovados. Há critérios a serem considerados para reconhecer que o fármaco trará benefício aos pacientes, onde, nessa comparação com o placebo, o fármaco deve superar de forma expressiva.
Além das aprovações da eficácia das medicações, alguns estudos posteriores voltam a medir se realmente os psicotrópicos estão cumprindo sua função. Um dos maiores estudos aplicados sobre antidepressivos recebeu o nome de Star D, “Sequenced Treatment Alternatives to Relieve Depression”, que resultou em mais de 120 artigos publicados em revistas científicas e milhares de citações. Foi capaz de impactar nossa concepção atual sobre depressão e prescrições. Envolveu um alto custo e cerca de 4.041 pacientes com score positivo para Depressão Maior e a rotina de medicações que esses pacientes recebiam. Foram incluídos pacientes com comorbidades, ou seja, que tinham depressão associada a outros quadros psiquiátricos, acompanhados por um período de um ano. Foi dividido em 4 etapas, para diferenciar os pacientes que tinham remissão dos sintomas daqueles resistentes.
Os pacientes, mesmo que tivessem remissão, continuaram a ser acompanhados, enquanto os resistentes ou recebiam associação de outros psicotrópicos, ou substituição deles. Descobriu-se que, embora esses pacientes pudessem melhorar, após múltiplas tentativas, as chances de remissão iam diminuindo gradativamente a cada etapa. Os que não tinham um resultado rápido com medicamentos, mesmo que melhorassem com as trocas, tinham mais chances de recaídas. A conclusão foi que é preciso reconhecer comorbidades, cujos medicamentos antidepressivos foram superados por outra classe de psicotrópicos, para se obter resultados. O Star D, além de fornecer informações valiosas sobre a complexidade da depressão, sugeriu novas prescrições que, comparadas com os antidepressivos, diminuíram o embotamento nos pacientes, facilitando as psicoterapias, além da diminuição de casos de virada maníaca ou, até mesmo, de suicídios provocados iatrogenicamente.
Uma preguiça generalizada faz parte da geração atual, que terceiriza o pensamento para outros, ao deixarem de se esforçar para refletir. Com a medicina aconteceu o mesmo, em que colegas atuam com critérios inadequados sobre os sintomas, ao invés de se dedicarem a fazer diagnósticos e escolherem psicotrópicos capazes de colaborar com o tratamento psicoterápico, proporcionando tanto a melhora do paciente como sua emancipação. Transtornos que antes tinham tempo menor de duração, para entrada e retirada de medicamentos, hoje são medicados eternamente. Desconsidera-se que tais medicamentos alteram, alguns de forma significativa, o comportamento das pessoas; pior ainda com o passar do tempo. Mesmo que alguns psicotrópicos sejam reconhecidamente essenciais para a recuperação de crises e capazes de manter a estabilidade conquistada, a comodidade de pacientes e médicos faz prevalecer uma prescrição para eternidade.
Acredito que talvez aconteça de medicamentos, mesmo aqueles que aliviam os sintomas em curto prazo, possam causar, em longo prazo, danos mentais que continuam, comparados ao aparecimento natural da doença e seu término também natural. Acredita-se que um surto psicótico, por exemplo, tem aspectos degenerativos, se apenas decidirmos proteger o paciente e deixá-lo completar seu ciclo. Opto por administrar medicamentos durante o surto, proteger os pacientes portadores com internações hospitalares ou domiciliares, mas tomo o cuidado de diminuir as doses das medicações, que vieram a ajudar no período agudo das doenças. Algumas vezes a diminuição ou retirada da medicação reduz a qualidade de vida do paciente e o coloca em risco de novos e graves surtos. Porém, com o acompanhamento psicoterápico e a aproximação dos médicos e psicoterapeutas com a família, ou o contexto em que vive o paciente, pode-se criar recursos melhores de proteção e adaptar os psicotrópicos a uma posição complementar, diminuindo seus efeitos colaterais, proporcionalmente com a diminuição de seu protagonismo.
Largar de tomar remédios é algo não incentivado por médicos, e pode ser, dependendo do psicotrópico, muito difícil para o paciente. Por isso, a pertinência do título do evento das psicólogas citadas, questionando quando os psicotrópicos podem ajudar. É preciso habilidade para o prescritor, ao retirar os remédios psicoativos, para ajudar na adaptação do paciente, diferenciando o que, dos sintomas que aparecerão no processo de desmame, são temporários, daqueles que oferecem maiores dificuldades de adaptação. Mesmo que eu recorra a um processo gradativo de diminuição das doses, muitas vezes, substituo por outros psicotrópicos, de menor potência e capazes de causar menos dependência, num processo escalonado. O medo de recaída que toma conta tanto do paciente como do prescritor pode confundir esse processo de adaptação na retirada das drogas psicoativas.
De qualquer forma, a atenção ao comportamento nas doenças mentais, na década de 80, foi transferida para o cérebro e cada vez menos nos interessamos pela história dos pacientes. Erramos e continuaremos a errar se continuarmos obcecados em esfacelar sintomas, pois isso tira a perspectiva de libertar os pacientes psiquiátricos dos fatores etiológicos de seu quadro. Mesmo que sejamos capazes de reconhecer indústrias farmacêuticas com postura ética, o interesse dessas empresas visa o lucro, e a comodidade da classe médica pode comprometer seu papel. Se um psiquiatra não tiver formação ou habilidade para uma abordagem psicoterápica, mesmo assim, pode ter conhecimento que lhe permita recomendar o procedimento. Outro fator são os custos elevados para a maioria da população para as psicoterapias, cuja contribuição das terapias de grupo é renovável, e no exemplo das Terapias Comunitárias do Nordeste, das Terapias Sociais em Florianópolis ou os espaços no Sistema Único de Saúde, podem ser a solução.
Os planos de saúde são obrigados a oferecer psicoterapia como procedimento. Porém, considerando o fato de que um número expressivo de pacientes chega medicado ao consultório de um psicólogo ou psicoterapeuta, a ideia de oferecer conhecimento a estes sobre os efeitos positivos e negativos dos psicotrópicos é de suma importância. O meu minicurso, Integrando Psicoterapia com Psicofarmacologia, ajudou-me também, através da manifestação dos alunos, a perceber a dificuldade que se estabelece em saber o que é da doença e o que é dos psicotrópicos, para poder cogitar em reconhecer o que foi proporcionado a partir das mudanças do comportamento do paciente. Parte delas, estimulada pela psicoterapia. Ao estudarmos sobre os novos conceitos de psicopatologia, víamos nas inúmeras descobertas recentes de psicotrópicos.
Saber da existência de psicopatologias que, após décadas de observações, compreendemos a necessidade de reclassificá-las é essencial para a atuação profissional. Compreender o surgimento de novas classes de medicamentos, chamados multimodais, também é relevante, pois assim compreendemos que uma ação moduladora é mais adequada do que efeitos incisivos sobre sintomas, tirando do paciente o discernimento que lhe permitiria conciliar com mudanças libertadoras de sua doença. Conhecer que o estudo sistemático da doença mental trouxe à luz conhecimentos, que desde a década de 90, foi capaz de alterar significativamente o conceito das depressões e nossa forma de prescrever, não pode ser ignorado.
O que aconteceu foi que, inicialmente, agrupamos algumas doenças que não respondiam às medicações dos tratamentos praticados na época em espectros. Surgiu, por exemplo, a concepção de um espectro chamado Impulsivo-compulsivo, reunindo patologias diversas, com indicação também de prescrições diversas. Com esse esforço, para melhor entendimento das psicopatologias, o que estava em jogo não era apenas o uso inadequado de determinadas medicações e o consequente agravamento de um quadro; ou uma intervenção médica que produzia um estado que, de tão grave, colocava a vida do paciente em risco iatrogenicamente, ao invés de proteção e alívio. Estudos recentes confirmam casos de apatia pelo uso de medicamentos, interferindo nas psicoterapias, assim como um paciente adicto, não evolui se não recorrer à abstinência.
O que um psicoterapeuta precisa saber sobre psicotrópicos para ajudar melhor seu paciente? Como os novos conhecimentos, apesar de longa data estarem sendo propagados, chegam gradativamente à sociedade, vale a insistência em publicações como esta que faço aqui. Não cabe mais preconceitos de médicos que não reconhecem a eficácia das ações psicoterápicas e de psicoterapeutas totalmente alheios aos benefícios de um psicotrópico bem indicado. Com isso, não é raro o distanciamento desses profissionais, ao invés da aproximação necessária para um bom tratamento do paciente que compartilham.
