
Tornam a política um espetáculo circense, ensaiado, falseado e bastante enojante. CRÉDITOS: Divulgação
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19-03-2025 às 19h00
José Luiz Borges Horta*
Política é a arte do moralmente possível, ensinava o maior de nós, Milton Campos, cuja
ausência já completa meio século.
A advertência vinha de um tempo de lenta organização da estrutura pública brasileira,
conspurcada inúmeras vezes pela cosmovisão corporativista tão típica do caudilhismo, cuja
mais afrontosa expressão quiçá tenha sido não o brasileiro, mas o espanhol, cujas
características seguem vivas nas entranhas profundas da Península Ibérica — que afora a
Catalunha e Portugal, deu amplas vitórias aos setores de direita nas recentes eleições
europeias.
Milton Campos, entretanto, dificilmente manteria o “moralmente” diante do festival
farisaico contemporâneo. É certo que a União Democrática Nacional lutou
incessantemente contra a corrupção tão típica da estrutura do Estado sindical brasileiro —
mas não por razões outras, que não políticas. Não se tratava de não fazer política, ou de
não debater política, menos ainda de não travar duríssimos debates no Parlamento (e a
Banda de Música, sempre liderada pelos deputados federais da UDN mineira, era toda uma
ala do partido, dedicada exatamente ao enfrentamento parlamentar).
Milton Campos e a sua UDN jamais pretenderiam impor a moral acima da Política,
políticos que se orgulhavam de ser, herdeiros dos democratas de 1943, dos civilistas de Ruy
Barbosa, dos liberais de Santa Luzia, dos Inconfidentes de Ouro Preto.
Três décadas e meia atrás, no ato da irrupção do pensamento “finista” (tudo se acabou, eis
o “fim da história”), com a Queda do Muro de Berlim em 1989, ao que parece moralismos
de todos os gêneros foram libertos dos confins do Hades e invadiram o espaço “público”,
intoxicando o debate político a ponto de — como todos (e todas) sabemos — calar a
Política na marra.
O moralismo ideológico se infiltrou na Política como uma Novilíngua (já prevista por
George Orwell em seu 1984) com um léxico de palavras proibidas e flexões pronominais
imperativas. Evidentemente, como todo idioma, um conjunto em transformação, de tal
forma que novas palavras foram sendo proibidas e novos termos impostos, sem que se
soubesse, fora dos laboratórios universitários, o que é o “politicamente correto”.
Essa nova língua do “politicamente correto” não é política, já que visa restringir o debate
político, nele interferindo com questões, digamos, “sociais”. De chofre, uma questão de
fundo já se coloca: movimento político é movimento social? Movimento social é
movimento político? Ou são temários, atores e estratégias diferentes em cada esfera?
Parte das vezes, as questões “sociais” que são impostas como justificativa para censura de
termos e palavras sequer são questões sociais, mas apenas questões “coletivas”, de alguma
coletividade ou algum grupo particular de pessoas, com seus interesses particulares, que são
impostos midiaticamente como “minorias” — quando na verdade foram criações das
estufas acadêmicas e somente funcionam como “nanorias”, termo que nos parece mais
razoável para essas hiperminorias de laboratório. (De que outro modo supor que o mundo
gay tenha se transformado em uma sopa tamanhamente inovadora de letras que inclui até o
total antônimo de gay — o A de assexual?!).
Essa insistência corrosiva em desmontar a cultura, desmontando a língua, é muito sedutora
aos fascistas em geral, já que torna uniforme o espaço público, mas não é funcional para a
Política, que só consegue atingir seus objetivos quando arejada pela democracia. Se o povo
está impedido de pensar pela língua “culta” (sic) imposta pelo moralismo politicamente
correto, a linguagem popular vai necessariamente se distanciar e o povo vai se afastar,
inevitavelmente, de sua pseudo-“vanguarda moralista”.
O que pode tornar mais pitoresco o processo de demolição das estruturas juridico-politicas
ocidentais — e parece estar em gestação um novo ramo do Direito formado para que se
possa viabilizar a intervenção forense na reestruturação interna de instituições públicas e
privadas, um “direito processual (re)estrutural” —, é a emergência de mais um moralismo
ideológico, digamos, de outra facção do Hades.
São os moralistas conservadores, moralista mais raiz, menos moda, que cansaram dos
modernismos do politicamente correto e em êxtase proclamam instaurar o “biblicamente
correto”. É claro que detestam política, tanto quando os moralistas de vanguarda, mas se o
assunto é “moral e bons costumes” (os vanguardistas preferem os eufemísticos “boa
governança e moralidade”), então é assunto que diz, sim, respeito a eles também, como
nanocoletividades espalhadas aí pelo interior do sertão e da selva urbana — parece,
segundo um português muito amigo de uma minha colega, Boaventura de Souza Santos,
que as nanocoletividades podem até se autogovernar, como se Pasárgada fossem, possuir
forças paramilitares próprias etc.
Os moralistas de retaguarda, é muito divertido ver, só se alimentam dos dejetos dos
moralistas de vanguarda, que por sua vez vivem a vida para denunciar que a retaguarda vem
aí. Assim uns e outros trabalham juntos para impedir o livre debate político nacional,
atolando a Política em temas meramente morais.
O país poderia e deveria debater inúmeros temas políticos (e geopolíticos, em meio à
revolução geopolítica que estamos presenciando no planeta), mas entre eles, nem aborto,
nem cannabis são prioridades, nem de longe.
Aliás, ninguém debate os temas em questão politicamente. Somente querem e sabem
debater no raso campo da moral. Exemplifiquemos o que é, ou o que poderia ser, pensar
politicamente esses temas.
Quero combater politicamente o aborto? Basta criar incentivos à natalidade: a cada filho
que a mulher tem, o Estado a premia com dois anos a menos de trabalho para sua
aposentadoria — ao invés de perseguir as mulheres que não querem procriar, vamos
premiar as que assim se portem, equacionando o gravíssimo problema demográfico que
pode impedir as aposentadorias das atuais gerações.
Quero pensar politicamente em entorpecentes? Vamos começar impedindo o porte de
álcool e de tabaco nas ruas do Brasil — essas drogas matam e viciam, ao contrário da
cannabis, que o jovem pode plantar, colher e consumir, e depois fica parado em casa sem
causar o menor mal. E os norteamericanos estão lucrando milhões com a agroindústria
cannábica — o Brasil deixaria de competir internacionalmente exatamente por quê? (Para
manter essas centenas de milhões cannábicos nas mãos do tráfico, ao contrário do que
fazem até os Estados Unidos da América? Aí nem é moralismo e total alienação política —
é tolice, pura e simples).
A presença de ideologias moralistas é absolutamente danosa à democracia e à Política, já
que a Política precisa ser construída sobre uma base comum — concordamos em discordar
e debater — o que não pode existir em sede moral: na moral o meu debatedor não é meu
adversário, é uma força do mal que precisa ser calada, invisibilizada ou “cancelada”. Não é
possível, a um moralista, ver ou ouvir imoralidades, que soam como verdadeiros atentados
ou heresias, crimes óbvios (nem precisamos de leis, já que óbvios) e blasfêmias contra a
democracia, a Liberdade ou, ainda mais grave, Deus, Ele mesmo — em pessoa ou em seu
caminhar no mundo (assim Hegel compreendia o Estado de Direito).
Aos políticos, as batalhas das forças moralistas de “vanguarda” e de “retaguarda” são tão
risíveis e verdadeiras como as lutas de telecatch dos anos 1970 e 1980 ou as lutas de
modelos em ringues enlameados de programas televisivos de redes alternativas nos anos
Tornam a política um espetáculo circense, ensaiado, falseado e bastante enojante. O
resultado é despolitizar ainda mais os processos políticos e eleitorais, como já somos
experts no Brasil — bastando relembrar o insuportável outubro de 2022, em que a
campanha presidencial vitoriosa por menos de dois por cento dos votos só o foi em razão
de acusações falsas de canibalismo (canibalismo!) e pedofilia (contra adolescente em
estabelecimento do ramo da prostituição, quando pedofilia é crime que tem por vítima
criança), ambas acusações sustentadas por manipulações de falas debochadas do candidato
oposto — que pode ser o Mal encarnado, mas seguramente nem é canibal nem pedófilo, e
nem muito menos os moralistas de vanguarda crêem nisso (era só um moralismo tático, de
campanha, e funcionou).
Boa parte de nós, que gostamos dos jogos e artimanhas políticas, estamos sinceramente
preocupados com os destinos da França, nas mãos do derrotado Macron ou da cada vez
mais vitoriosa Marine Le Pen. Esquecemos de nos perguntar onde estão os socialistas, que
em tese deveriam vencer as forças de centro-direita após a Presidência de Nicolas Sarkozy
em 2012 — e que empataram com Macron nas recentes eleições européias.
Relembrar para nunca repetir: o candidato socialista mais forte contra Sarkozy era
Dominique Strauss-Kahn, professor nas universidades de Paris X- Nanterre, Stanford e na
SciencePo. Ao deixar Nova York rumo a Paris, já no avião da Air France (portanto, em
aeronave francesa, expressão territorial francesa), foi sequestrado de dentro do avião a
pretexto de ter de responder a acusações de crime “contra os costumes” que teriam sido
feitas, no mesmo dia, por uma camareira do Sofitel de onde saíra para o Aeroporto JFK.
Impressionante como são moralistas e eficientes em NY na persecução de tarados sexuais
perigosíssimos! Claro, não houve condenação, exceto para a França, que para se livrar de
Sarkozy teve de votar em um burocrata do Partido Socialista, François Hollande, que
projetou na política o jovem banqueiro Emmanuel Macron, seu sucessor eleito em 2017.
O gosto pérfido e falsamente moralista pelas práticas sexuais e privadas dos líderes
políticos é uma expressão notável da incapacidade política que campeia pelos muitos cantos
de uma sociedade censurada na língua e no debate. Ao invés de se debaterem idéias, o
ataque moralista — que chamamos de falácia “ad hominem”, invalidar uma idéia por ser de
uma pessoa a priori já “cancelada” — se impõe como praxis política. Corrijo-me, em
tempo: praxis antipolítica. Atacar a pessoa por suas escolhas morais e não por suas idéias,
só é “política” na mente degenerada dos nazistas.
Toda essa fuzarca em torno de “lugar de fala” quer dizer, na real, que o outro “não tem
moral para falar”, só eu posso. Parece uma cândida forma de visibilizar vozes minoritárias
que a história real calou ou insistiu em ignorar — mas quando o moralismo se coloca acima
da Política, visibilizar uns implica em calar outros à força.
E Política, quando feita na base da força, da coação, da criminalização, da judicialização… já
não é democrática, uma vez que contida em limites nos quais inevitavelmente os
verdadeiros políticos — capazes de consertar relógios suíços com luvas de boxe, segundo
ensinava Ulysses Guimarães — jamais a deixariam prisioneira. Os moralistas querem
neutralizar a Política, e o neoliberalismo é sua gloriosa era — mas os tempos de moralismos
(de vanguarda, se é possível esse ornitorrinco, e de retaguarda) só duram diante de povos
hipnotizados. Um bater de palmas costuma despertar alguém do sono falso-moralista.
Mais ainda no Brasil — país da alegria, da felicidade, do abraço, do carinho, do afeto
máximo. Esses moralistas são, acima de tudo, gente que odeia a Brasilidade, sempre muito
pornofônica para os ouvidos sensíveis dos inimigos da beleza.
*José Luiz Borges Horta, 53, é Professor Titular de Teoria do Estado na Universidade
Federal de Minas Gerais e professor visitante sênior PrInt-CAPES na Facultat de Filosofia
da Universitat de Barcelona. Educa moralistas com palavras dúbias e obscenas. Contato:
zeluiz@ufmg.br