
Créditos: Divulgação
18-08-2025 às 10h18
José Aluísio Vieira*
Uma velha pauta com novos megafones
A adultização, sexualização e abuso de crianças não são fenômenos recentes. Quem viveu os anos 1980 lembra de programas infantis com figurinos, coreografias e roteiros que hoje soariam inaceitáveis. O que na época era tratado como “normal” ou “inocente” se revela, à luz de novas evidências psicológicas e legais, como parte de um ciclo de exposição precoce e vulnerabilidade infantil.
Apesar de décadas de denúncias e campanhas, o Brasil só parece acordar para a gravidade do problema em momentos de comoção pública — quase sempre impulsionados por casos emblemáticos ou por vozes que fogem do circuito político tradicional. É o que aconteceu recentemente, quando um influenciador digital, o YouTuber Felca, conseguiu pautar o noticiário e provocar o anúncio de um pacote de proteção à criança pelo governo.
A cultura que normalizou e o debate que polarizou
Desde a televisão aberta dos anos 80/90 até as redes sociais de hoje, o mercado de entretenimento percebeu na criança um vetor de audiência e receita. O que mudou foi a consciência social — hoje mais sensível a riscos psicológicos, abuso e exploração.
Quando figuras políticas, como a ex-ministra Damares Alves, apontaram para o problema, inclusive em comunidades indígenas e regiões vulneráveis do Norte e Nordeste, o debate se fragmentou. A pauta deixou de ser um consenso de proteção e virou trincheira ideológica: de um lado, quem enxergava moralismo; de outro, quem acusava negligência histórica. Nesse ruído, a complexidade do problema se perdeu.
A nova lógica da atenção: da política para os criadores digitais
Se antes eram parlamentares ou jornalistas que pautavam governos, hoje o fluxo se inverte. Plataformas digitais e influenciadores se tornaram aceleradores de agenda, capazes de mobilizar milhões em poucas horas. O caso Felca ilustra bem: sem cargo, sem partido, mas com alcance, ele conseguiu mais atenção e ação do que campanhas institucionais anteriores.
Essa mudança de poder comunicacional tem implicações estratégicas. Governos precisam entender que o timing é crítico: janelas de atenção abrem e fecham rápido. Como propôs Joseph Overton. Perder o momento significa ver o tema ser engolido por outra polêmica e voltar à gaveta.
Política, comunicação e cultura: o nó brasileiro
Três forças se entrelaçam nessa questão:
- Culturais — normas e costumes que por décadas toleraram a exposição de crianças como “entretenimento”.
- Comunicacionais — algoritmos e viralização que hoje amplificam, mas também podem inibir, conteúdos problemáticos.
- Políticas — o uso da pauta como arma eleitoral, travando o consenso necessário para ações efetivas.
Quando essas três esferas se chocam, a proteção da criança deixa de ser prioridade prática e vira moeda de troca discursiva.
O que fazer? Uma estratégia integrada
A solução passa por quatro eixos:
- Cultura: atualizar padrões de mídia, publicidade e entretenimento; formar pais, educadores e produtores.
- Comunicação: narrativas claras de que proteger não é censurar; campanhas com influenciadores; canais ágeis de denúncia.
- Política pública: coordenação entre ministérios, conselhos tutelares e judiciário; co-regulação com plataformas digitais.
- Dados: monitorar indicadores de exposição, denúncias, remoção de conteúdos e tempo de resposta.
Mais do que anunciar pacotes, é preciso medir impacto, auditar resultados e ajustar rotas.
Considerações Finais – Do escândalo à política de Estado
A proteção da infância não pode depender de trending topics ou de disputas ideológicas. Precisamos transformar momentos de comoção em políticas de Estado, blindadas contra a volatilidade da atenção pública e do calendário eleitoral.
A pergunta não é se vamos agir — é quando e como. E no caso das crianças, cada dia perdido significa permitir que mais uma infância seja roubada, enquanto adultos discutem quem deve levar o crédito pela denúncia.
*José Aluísio Vieira é Consultor empresarial; Educação financeira; Finanças empresariais.