Para dar o ponto, o arroz da paella autêntica deve ficar sem água (mas não seco), além de inteiro e solto. E atenção: é proibido mexer o arroz durante o cozimento. Isso evita que o amido se desprenda do grão e o arroz fique empapado
Gisele Bicalho*
Tem gente que reclama do excesso de trabalho. Eu, não. Estar ocupada me alegra. Faz meu cérebro ficar em looping (ops!). E quando, depois um dia longo, a gente ainda é looping surpreendida por um mimo da chefia. Que tal uma happy hour (ops de novo) com comidinhas, bebidinhas e uma paella feita por um chef de cozinha. Para esse momento cabe um ensinamento do Rubem Alves: “Alma não come pão. Alma come beleza. A beleza é coisa da leveza”.
Essa descrição cabe como uma luva na paella caipira preparada pelo chef Eduardo Avelar. No prato, além, obviamente, do arroz, juntou linguiça, frango, ovos, legumes e verduras da horta, como cebola, pimentão, ervilha, tomate, cebolinha, salsa e couve frita. Pra ornar, um torresminho, porque é de lei. Aliás e a propósito, Avelar é autor do livro “Cozinha Mineira – Dos Quintais aos Territórios Gastronômicos”. Nessa obra, Avelar compartilha suas descobertas e experiências culinárias ao longo de 20 anos.
Voltando à paella, a magia começou pelo preparo. Nessa fase fomos convidados a participar de um ritual. O mesmo feito pelas famílias espanholas. Sim, porque a origem desse prato é a Espanha. Nesse país ibérico tudo começa pela escolha da panela. Mas, atenção, não se trata de uma panela qualquer. E na falta de uma autêntica “paellera”, use uma frigideira grande com as laterais mais altas. Funciona também.
Deixe a panela ou a frigideira grande em fogo médio alto e espere aquecer. Depois, adicione o óleo e espalhe por toda a superfície. Corte o frango em pedaços pequenos, tempere com sal e pimenta do reino e leve para dourar dos dois lados.
Acrescente a linguiça, também cortada em pedaços pequenos, e doure levemente. Adicione a cebola cortada em brunoise. (E antes que você me pergunte o que é esse tal de brunoise, lá vai a explicação: é quando você corta os alimentos em cubinhos bem pequenos e uniformes). Refogue muito bem. Acrescente o alho, refogue mais um pouco. Depois junte o ramo de tomilho e o pimentão. Dê uma boa mexida e rapidamente acrescente o tomate ralado para o pimentón não queimar.
Deixe ferver por alguns segundos e só aí coloque o arroz. É nesse momento que acontece o ritual. Cada membro da família despeja o tanto de arroz que vai consumir. E o ritual não acaba aí. O arroz deve ser despejado em forma de cruz.
Para dar o ponto, o arroz da paella autêntica deve ficar sem água (mas não seco), além de inteiro e solto. E atenção: é proibido mexer o arroz durante o cozimento. Isso evita que o amido se desprenda do grão e o arroz fique empapado.
Se você pensa que o prazer de saborear uma autêntica paella termina quando a comida está quase no fim é porque ainda não conhece o socarrat. Se esse for o seu caso, prepare-se para descobrir uma das jóias da culinária espanhola. O socarrat é aquele arroz que fica no fundo da panela e que vai tostando à medida que o caldo é absorvido. O resultado é um arroz com textura caramelizada e um sabor inigualável. E quando saber que o socarrat está pronto? Uai! Pelo som do arroz fritando no fundo da panela. Quando o caldo seca é música para os ouvidos.
Meu pai adorava socarrat, mesmo sem saber que esse era o nome. Para ele, era a rapa de arroz que tanto gostava. Mal começava a refeição, ele perguntava: “Fia, tem rapa?” E não era só a rapa que o encantava. Ele também gostava da primeira água do arroz bem temperadinha, servida numa xícara. Esse ritual se repetia todos os dias. O brilho nos olhos e o sorriso de satisfação eram nossa maior recompensa.
E para encerrar essa nossa prosa porque eu já me estendi demais, cito o querido Rubem Alves. É da safra dele essa preciosidade: “Quem nunca usou expressões como “comer de joelhos”, “comer rezando”? A boa mesa é como um altar onde nos curvamos diante do sagrado”.
Bem assim. Indo. Até mais.