
De porta fechada ninguém entra - créditos: divulgação
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21-04-2025 às 09h49
Sérgio Augusto Vicente (*)
A porta bateu, mas não trancou. Quem a via assim, podia jurar que por ali ninguém mais entrava e saía. Não foi uma batida qualquer. Ela bateu com a força de um pai furioso.
“Aqui essa vagabunda não entra mais!”
O relógio na parede da sala marcava onze e meia da noite de sábado. A cada barulho dos segundos, o coração de Maria das Dores pulsava apertado. A filha, mais uma vez, pecava pelo atraso. Gibão, destilando toda a fúria de macho atroz, esbravejava e desfechava murros contra a parede. A casa, erguida em acanhada alvenaria, tremia.
“Aqui ela não entra!”
Das Dores apertava contra o peito o pingente do colar de Nossa Senhora, que ganhara do marido na última excursão a Aparecida do Norte. Gibão herdara o fervor religioso da mãe, mulher que exibia como troféu a dedicação ao luto e ao celibato de viúva.
Gibão era filho único. A mãe lhe dera à luz quando acabara de enviuvar. O tempo se passou. Maria das Dores lhe atravessou o caminho, conheceram-se e logo se casaram. O motivo da pressa? Clarinha, concebida na primeira noite de amor do casal. Ele, com seus 20. Ela, com seus 15 aninhos. Para não macular o nome da família, D. Imaculada logo tratou de arranjar o casamento do filho e de ceder o fundo de seu lote para o jovem casal.
Gibão não era exatamente um muro de arrimo de família. Alternando o ganha-pão entre um serviço e outro de pedreiro e as migalhas deixadas pela pensão da mãe, descontava na esposa e na filha as frustrações de um patriarcado decadente.
Clarinha não era propriamente uma menina de igreja, apesar dos esforços da avó paterna para fazê-la beata. Aos sábados, saía com as amigas para beijar na boca. Mesmo sabendo das reprovações de Gibão, Das Dores a deixava se divertir. “Mas pelo amor de Deus, filha, volte no horário combinado!”. Mas Clarinha empolgava e chegava tarde.
Todo final de semana era o mesmo sacrilégio. Gibão olhava para o relógio, resmungava, esmurrava a parede e começava a gritar impropérios.
“Aqui ela não entra! Essa menina tá virando puta por sua causa!”
Em seguida, Gibão tomava mais um copo de cachaça, arrastava o chinelo no chão e se jogava no sofá, de onde se levantava apenas no dia seguinte.
Das Dores, insone, com os olhos inchados e marejados de lágrimas, ouvia o marido roncar. O relógio marcava uma hora. Um estrépito vinha do quintal. Era Clarinha chegando. A porta da sala estava lá, fechada, porém destrancada. A única chave, sempre de posse do marido, desaparecera. Gibão sempre dizia que providenciaria outra. Mas, como na vida, nem tudo se deve resolver com celeridade, protelava.
Clarinha entrava silenciosamente, à espera do abraço apertado e aliviado da mãe, que segurava um pequeno objeto há pouco desenterrado do vaso de planta ao lado da porta.
No sofá, Gibão roncava o ronco dos justos. Como de praxe, acordava às 10h de domingo e tomava aquele café de ressuscitar defunto, enquanto assistia às notícias diárias na televisão.
O homem parecia tomado por uma profunda amnésia. Toda a exasperação da noite anterior ficara no passado. Numa rápida ida ao banheiro pra “tirar a água do joelho”, lavou o rosto e encarou, no espelho manchado e quebrado na parede, cada ruga estampada na cara. Em cima da pia, ao lado da saboneteira, mirou, incrédulo, um pequeno objeto metálico. Talvez por descuido, a esposa o esquecera ali. Por alguns segundos, um filme se passou em sua cabeça. Sem pestanejar, pegou o objeto, atirou-o na privada e apertou a descarga.
Livre e desimpedidamente, Gibão abriu a porta da sala e seguiu para o boteco, sem hora para voltar. Maria das Dores e Clarinha ganhavam tempo no quarto, à espera do ranger da porta, que lhes soava como grande alívio.
Gibão não encostava o pé na rua sem antes passar na casa de D. Imaculada, em frente à sua. Antes do primeiro gole com os amigos, cumpria o religioso costume de pedir e receber a bênção materna.
À noite, sempre que chegava e não encontrava a filha, o drama – ou tragédia – se repetia. “Aquela vagabunda não entra mais nessa casa!” A porta lá estava, fechada, porém destrancada. Faltava-lhe a chave, que Gibão não tinha pressa de providenciar…
(*) Sérgio Augusto Vicente é historiador