
Leitor, não. Devorador de livros e estava, ali próximo de autores cuja leitura era um aprendizado, um desafio. CRÉDITOS: Freepik
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28-03-2025 às 10h33
Rufino Fialho Filho*
Semana do Padre Vieira, no Planalto, em Belo Horizonte. 1997. Vamirech Chacon fala do pensador e do homem político-conspirador: o pregador de sermões extensos.
Na mesa, alguém faz uma observação ampliando o leque da análise de Chacon. Observação erudita.
Ao meu lado, um estudante o identifica:
“É o padre Vaz”.
Um homem pequeno, magro, cabelos ralos e claros. Naquele auditório e no meio de tanta gente não dá para observar melhor.
Tempos atrás, em Belo Horizonte, à distância acompanhava o caminhar devagar de Eduardo Frieiro. Nunca me aproximei. A minha admiração era grande demais e não sabia como me aproximar. Seria sempre ridículo. Jamais seria natural. Ensaiei falar com Eduardo Frieiro, mas nenhuma fala me convencia, embora imaginasse, creio que com alguma perfeição, suas respostas. A minha alegria estava em acompanhá-lo, respeitando a distância. Ele jamais me viu. Nem me deixei ver.
Com outro ser da minha admiração foi diferente, mas não tanto. Para mim, Murilo Rubião era mais do que um grande escritor e um mestre do fantástico. Assim, eu me aproximava. Edifício Maletta, avenida Augusto de Lima. Aproximação cautelosa, distante. Passava perto dele e ouvia as pessoas, as vozes das pessoas falando. Nunca ouvi sua voz. Não me lembro.
Leitor, não. Devorador de livros e estava, ali, em Belo Horizonte, muito próximo de autores cuja leitura era um aprendizado, um desafio. Um menino que sonhava a partir das palavras. Já conseguia dominar-me. Vencera alguns desafios. Antes, me acontecera de não conseguir terminar de ler Eça de Queirós, como aconteceu com Os maias, tão desesperado ficara com seu domínio do idioma e com a beleza da construção do texto. Agora, conseguia vencer estes obstáculos.
Hoje, no Instituto Santo Inácio, no bairro Planalto, região da Pampulha, Zona Norte de Belo Horizonte, me encontrava diante de um desafio.
Contemporâneo do padre Vaz, podia, já no lanche, observá-lo. Um metro e 60 centímetros, algo por aí, não mais. A camisa clara estava limpa e bem passada. Uniforme de um estudante colegial.
Não pude ficar para a continuação do seminário sobre a obra e a pessoa do padre Vieira, nas comemorações dos seus 300 anos de morte. Ficara contente em ter estado próximo do padre Vaz e de ter ouvido sua palavra.
Voltei, no final de novembro, numa sexta-feira, ao Instituto. Era a oportunidade de estudar com o padre Vaz. A secretária era a Fátima. Nestes últimos meses conheci três secretárias e todas se chamavam Fátima, esta era a quarta. Olhou para mim e afirmou, fixando-se em um senhor do meu lado no balcão, “O senhor tem que conversar primeiro com o padre Vaz”. Ela buscou a concordância do moço e ele falou, “ligue para ele e pergunte o que fazer”. Ela ligou e o padre não estava em seu apartamento.
“O padre Vaz caminha no pátio, aguarde um pouco”. Fui para a livraria, uma sala pequena, um conjunto pobre de estantes, alguns poucos livros. (2) À minha esquerda os livros de filosofia, da Editora Loyola, à direita bíblias, muitas bíblias em vários formatos e algumas edições trabalhadas.
O rapaz da livraria se aproxima e observo que agora a estante dos livros de filosofia está à sua direita e as bíblias à esquerda. Peço para examinar um livro de ética do padre Vaz e um livro sobre Habermas.
O padre Vaz entra na livraria.
“Você quer fazer o curso?
“Você já estudou filosofia?
“Qual a sua formação?
“O curso começará… são duas aulas… são dois semestres, ética 1 e ética 2. As aulas começarão…”
Respondi como um autômato. Ao mesmo tempo em que assumia uma postura crítica.
- Esse cara quer é vender seu curso.
Lembrei-me das divergências que tive com um texto dele sobre Marx e sobre o socialismo. Será que, um dia, eu poderei conversar com ele sobre este tema? Achei sua análise fraca, superficial e não concordava de maneira nenhuma. Era mais uma vez os séculos se repetindo: assim como os sucessores de Hegel, o padre Vaz, estrategicamente, batia em Marx. Como também queria entender melhor sua análise sobre a questão do escravo em Hegel.
No escritório de Cláudio, professor Salgado e Almirante contei diferente a história. Disse que fui submetido a uma sabatina inesperada de mais de três horas, até que ele me perguntou quem me havia indicado. Ao saber que tinha sido o Almirante, seu aluno, levantou, expressando chateação, por perda de tempo.
“Por que você não me disse antes que o Almirante o indicou? Vá, matricule-se.”
O Almirante quis saber se ele, realmente, havia perguntado por ele.
- Claro, o padre Vaz está impressionado com a sua participação nas aulas e com a sua prova final.
“Eu não fiz uma boa prova final, foi um texto curto e acho que medíocre”.
- Pois, o padre Vaz comentou seu texto, ressaltando, exatamente, a concisão – menti mais uma vez.
2.
- Qual era o público alvo destes sermões? Quem ouvia o padre Vieira? Quem tinha o privilégio de ouvir e entender o padre Vieira? Qual a repercussão de um sermão no século XVI? Qual era a participação daqueles que iam à Igreja, ouviam e não entendiam nada do sermão?
- No conjunto de prédios do Instituto Santo Inácio se encontrava uma das maiores e mais sofisticadas bibliotecas da América, com seus mais de 140 mil títulos.
E uma incrível história de resistência à ditadura, onde a instalação daquela biblioteca no Planalto fora resultado da ação competente de um bispo que soube dialogar com os militares e transferir tudo e todos, salvando tudo e todos.
3.
Na praça de São Pedro, em Roma, na manhã do dia 21 de fevereiro, sábado, dia de sol, de muito sol, o Papa João Paulo II terminava a cerimônia de investidura dos 18 novos cardeais, quando se afastou e com um simples gesto deu como consagrados cardeais a dois religiosos, cujos nomes foram omitidos.
Na linguagem política que prevalece, hoje, no mundo católico, estes dois novos cardeais não poderão “desfrutar dessas celebrações, já que suas identidades serão mantidas em sigilo, muito provavelmente por razões políticas”.
A partir daí especula-se que seriam religiosos. Seriam de países comunistas como a China e o Vietnã.
Naquela mesma manhã de sábado, o padre Vaz caminhava tranquilamente para a biblioteca da sua faculdade de Filosofia. Como o Papa não revelou os nomes dos dois novos cardeais, os seus cardeais in pectoris (*), decidimos que tínhamos os dois novos cardeais, também in pectoris, mas cujos nomes estavam revelados para nós, os amigos próximos.
Iríamos fazer alarde, mas o bom alarde, o alarde do paralelo. O maior filósofo do Ocidente, neste ano de 1998, o Padre Vaz, enquanto caminha para a sua biblioteca, em Belo Horizonte, está também sendo consagrado, na Praça de São Pedro, em Roma, pelo papa João Paulo II.
Ele é o nosso novo cardeal. Não está em um país comunista. Não correu carreira dentro da igreja, não administrou bens, nem jamais se furtou de pensar. Aí estava, Minas que nunca teve cardeal, agora tinha dois, dois não, tinha consagrados três novos cardeais.
O outro cardeal que nomeamos não é membro da igreja, não é padre, nem bispo e muito menos arcebispo. Nunca conversamos estes assuntos “religiosos” com ele, sequer sabemos se é ateu ou não, se acredita em deus ou não, mas o sabemos cardeal e antes mesmo do papa descobri-lo e nomeá-lo cardeal in pectoris, nós há mais de dez anos já o tratávamos como cardeal, é o cardeal de Salinas, dom Geraldo Santana. Minas tem três cardeais: Dom Serafim Fernandes de Araújo, Dom Vaz e Dom Geraldo Santana, um homem da igreja, um homem do pensar e um homem político.
No final da cerimônia, em Roma, movendo-se com incrível dificuldade, o papa deixou cair os dois barretes vermelhos dos cardeais ausentes.
À noite na vazia e solitária praça de São Pedro, o vento jogava de um lado para o outro os dois barretes, símbolos do poder na Igreja.
(*) In pectore (latim para “no peito/coração”) é um termo usado na Igreja Católica para uma ação, decisão ou documento que deve ser mantido em segredo. É mais frequentemente usado quando há uma nomeação papal para o Colégio dos Cardeais sem um anúncio público do nome desse cardeal. O papa reserva esse nome para si mesmo.
4.
Chico Haas me disse, no Instituto de Pesquisa Lumen, da PUC-Minas, antes de seguir para a sala de aula no ISI, Instituto Santo Inácio, que o padre Vaz optara por manter aquele ritmo de vida. Como pensador e como professor seria mais útil à Igreja. Não buscara, não buscou nenhum cargo de autoridade eclesiástica.
“Uma vez quiseram indicá-lo para assumir as funções de bispo, ele recusou”. Assim, um irmão do padre Vaz de tornou bispo. Embora, a partir de determinado momento, ele quisesse apenas se dedicar à produção intelectual, as constantes aposentadorias de professores do Instituto Santo Inácio, ISI, o obrigaram a assumir as cátedras vagas. Primeiro foi o Xavier Herrero, depois o Marcelo Perine.
Cheguei atrasado no ISI. Peguei uma carona e a aula havia começado. Lá estava o padre Vaz na frente de uma turma de silenciosos 40 alunos. Misturado com as minhas tralhas e com um lenço de papel, em meio a uma crise de gripe, mal pude cumprimentar o padre Vaz.
Depois de 45 anos de sala de aula, o padre Vaz estava preparado para me enfrentar. Era o professor de ética, o filósofo e na sua frente, em meio a uma floresta de cabeças de apaixonados alunos, um aluno atravessado pelo tempo, mais velho que o mundo, sem ética, aético, não ético, desesperadamente naufragado, vendo este mundo belo, mas dentro de uma redoma que ele jamais almejaria entrar.
Não lhe restaria outra estrada senão a de observador e um apaixonado aluno também, querendo entender.
Tínhamos feito uma série de estudos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Popper, Wittgenstein, tentando, tateando, a arte de pensar. Agora, iríamos aprender a ser bons. Grandes loucos.
- Ninguém acredita que nós dois estamos estudando filosofia, eles riem da gente.
Lateral ao curso, estou levantando documentos, textos e informações sobre o padre Vaz na década de 60. Consegui uma fala dele sobre aqueles episódios através de uma entrevista publicada no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, e consegui também um seu texto publicado na revista Paz e Terra, número 1, em que se discute o papel da Igreja.
Por que esta época é importante? Não era a época da formação do padre Vaz, mas sim a época da sua ação. Porque era a época em que o padre Vaz foi ao mundo e falou aos homens, esteve ao lado dos homens e foi perseguido, processado, julgado e absolvido por um tribunal composto por generais – o Superior Tribunal Militar. Tornou-se um refugiado dentro de seu próprio país.
O padre Vaz explica como será o curso e, antes de começar as aulas, faz uma oração, com todos em pé, pedindo no final a inspiração do Espírito Santo e de São Tomás de Aquino. Afinal, a Suma Teológica se ocupa, em sua maior parte, da Ética.
“A ética é, ao mesmo tempo, uma ciência e uma prática, ela é uma forma evoluída do saber ético – é um saber para agir, para guiar as ações”.
O padre está com aquela mesma camisa em que nos encontramos pela primeira vez. Veste com extrema simplicidade e sua camisa me lembra a de colegiais em Teófilo Otoni, lá no vale do rio Mucuri, no nordeste mineiro.
Fala baixo, em um tom que, por incrível, sentado na última fileira, ouço perfeitamente – mas já ambiciono estar mais perto e imagino uma estratégia para estar entre os primeiros na primeira fila. Vou ouvindo, anotando, como todos, e pensando.
“Estamos entrando no 4o. milênio da civilização ocidental e no 3o. milênio da civilização cristã”.
“Todos os grupos humanos têm características constantes”.
Uma bela massa de material para estudo e observação, para análise e descrição. E, caso fosse o contrário? Se detectássemos um grupo humano surpreendente e cujas características não fossem constantes, nem em relação aos demais e nem em relação a si mesmo, como grupo?
Por que este jesuíta traz para aquela conversa a marca do 4o. milênio, a lembrança da civilização ocidental?
Ele surpreenderia os incautos, quando, ao tratar da questão da ética, com firmeza, afirmou que não trataria da ética cristã, não da ética teológica, não dá ética da religião, mas da ética filosófica.
Quem é o padre Vaz? É um filósofo.
Agora, entendo o que o Vitor quis dizer quando afirmou que o padre Vaz era um mero divulgador da filosofia e, avançando em sua crítica, assegurou que era um pensador preso às limitações hegelianas, responsáveis por um pensamento autoritário e de trágicas consequências para a humanidade.
O padre Vaz é um filósofo consequente, que não se omite ao pensar e que não se encastela no pensar. É, por ser filósofo, um homem de ação. Eu não me vejo, totalmente, identificado com o mestre. Na hora da ação política temos uma larga avenida juntos, mas eu ficaria numa extremidade, gritando que o caminho deve ser mais largo e se deve ir mais longe.
Eu não me limitaria à solidariedade cristã. A política nos faz diferentes. Não vejo recuos possíveis diante da intransigência de um mundo que destrói homens, que devora homens, que submete homens. Massacra pessoas e povos.
Sexta-feira, 13
13 de março de 1998, temperatura alta, em Belo Horizonte. Mais uma vez, chego na universidade e olho, às 8h, o céu limpo. Não tem nuvens. Seu Tião, que sempre me lembra de uma paixão pela Regina, mulher do Manoel. Ele mais uma vez, se aproximará, perguntando se eu quero que ele abra a porta da prisão, como ele chama a porta do local de trabalho. Ele tem a chave. Eu a escolha. Eu tenho a opção de entrar para a cela.
Em seu passo vagaroso, transportando um peso maior do que o seu tamanho, cabelos brancos, pressinto que seu Tião tem a memória de todas aquelas árvores, prédios e de seus 20 mil estudantes, ano a ano, depois de 20 anos.
Seu amor é pelas pessoas que ele conhece, pela sua igreja e pelos seus padres e bispos da sua admiração. Seu amor é como ele, silencioso e atravessa os grandes prédios silenciosos, um amor que caminha de cabeça baixa, olhando para o chão à sua frente, erguendo a cabeça apenas para um sorriso de felicidade quando encontra o outro.
Ele entra a minha alma e eu mês acautelo. Seu Tião também sabe da minha grande, louca, lúcida, perigosa e traidora paixão. Ele sabe e diz isto claramente, com palavras que não perguntam, firmes e solidárias, alegres, felizes, palavras muito felizes, porque fomos felizes. Hoje, eu escapo.
Diferente dele é o meu caminhar, é o meu procurar e é um eterno não me encontrar nem em prédios, nem em árvores e nem em gentes. Sua grande paixão é que dali saiu um cardeal para a sua igreja. Assim, seu Tião é um homem orgulhoso, vitorioso e virtuoso.
Não posso perder tempo, hoje tenho aula com o padre Vaz.
Atravesso a cidade em busca de uma bolsa para reduzir o impacto do curso de Ética sobre meu frágil orçamento. Atravesso, mais uma vez, a cidade, passando pelo aeroporto, com os aparelhos de asas de aço se preparando para correr a pista de asfalto preto e alçar os céus, indo aos seus destinos.
Passo pela cabeceira da pista, certo de que meu voo junto ao povo do Planalto será mais alto. Tenho todas as pretensões do mundo. Sou um aprendiz de filosofia, quero pensar. Pensar corretamente. E eu quero ser, ainda a tempo, um homem bom. Como seu Tião, como o meu pai.
O padre Vaz está na livraria, onde fui buscar uma revista para checar um artigo de Vamirech Chacon, que estava truncado, pois cortaram a última linha de todas as páginas.
Ao olhar para o lado, estava o Padre Vaz. Era ele mesmo. Tenho que ter compostura. Ele pergunta por algo que virá de São Paulo. Na biblioteca, perguntando se algo já chegou, não havia a menor dúvida, primeiro que se tratava de uma publicação e, segundo que se tratava de uma publicação ligada diretamente ao seu interesse. Teria que descobrir o que ele aguardava.
Ele saiu e depois chegou um outro senhor de cabelos brancos, magro, falando português com sotaque. Faz a mesma pergunta do padre Vaz.
“Ah! o caminhão deve ter atrasado”.
Algumas pessoas estavam na expectativa. Curioso, não quis bancar o curioso. Afinal, a coisa estava evidente. Ali, no meio de homens que escreviam, traduziam, pensavam, esperar o que como surpresa, esperar o que com tanta ansiedade?
Caminho com o padre Vaz na minha frente. Evito aproximar-me. Uma pessoa se aproxima e fala que falaria com ele, antes mesmo da aula começar. Olho no relógio. Faltam dez minutos. Tempo curto. Tempo, certamente, suficiente para quem precisa de uma orientação. Talvez revolucionária. Uma palavra. Não mais que segundos. Além do mais, tudo deveria estar, ali dentro, tão encadeado, que talvez nem mesmo uma palavra seria necessária.
Passo no refeitório. Várias mesas cumpridas. Enormes. Garrafas de cinco litros de café e caixas de bolachas. É uma escola diferente. uma escola que serve ao aluno. Olho os alunos, aproximo do barulho das conversas. Pouco ouço, mas vejo. São pessoas jovens. Não são, de maneira nenhuma, provenientes de famílias ricas. Todos vestem roupas simples e baratas. São jovens recolhidos, talvez aqueles que conseguiram, por milagre, escapar do abandono. São homens ligados à igreja, serão amanhã padres, bispos, cardeais, falarão às consciências das pessoas, darão rumos, abençoarão. Com certeza, todos eles acreditam em deus. Sobre uma mesa redonda, eles deixaram seus pertences, bolsas, livros. Duas bíblias enormes se destacam. Se eles não acreditam, eles procuram o que acreditar.
Pela segunda vez, naquele refeitório, troco o café por chá. Ninguém me percebe. Estou isolado e me aproximo das conversas. Procuro alguma mulher naquele meio. Descubro duas. Depois outras aparecem.
Mais tarde uma delas puxa conversa comigo e descubro que ela era uma psicóloga que foi atraída pela filosofia e que, depois de um susto, decidiu começar pelo básico seus estudos de filosofia. Estava, agora, já no terceiro ano do curso. Era minha colega de sala. Falei que já lera diversas obras do padre Vaz e ela me confessou que, só agora, começara a ler alguma coisa.
Padre Vaz, ali, para ela, era simplesmente mais um professor. Ele não era apenas um professor. Na sala, outra mulher ao meu lado. Mais nova que a psicóloga. Esta fizera teologia no Instituto Marista e complementava seu curso com duas matérias: uma delas era justamente com o Padre Vaz.
“Ele é muito devagar”.
Ela censura a forma como o padre Vaz dá as suas aulas, ela censura a sua fala baixa, mansa, quase num mesmo tom. Para ela, terminantemente, ali, naquele seu começo, ele não era um bom professor.
(Fiquei feliz, afinal, o padre Vaz também se deparava com estudantes deste tipo).
Me preparo para explicar-lhe quem era aquele filósofo e dá fortuna que tínhamos em estar ali, quando olho para o seu rosto magro, de mulher esforçada, superando deus sabe o que, talvez uma futura freira, e me contenho.
As aulas eram sobre um tema empolgante. Ética? Pra que? Ela olha para mim. Estaria diante, certamente, de uma pessoa a ser surpreendida. Talvez ela olhasse o meu rosto e num flagrante captasse todas as minhas grandes derrotas. Eu tinha que calar-me, no máximo comer esta ex-futura freira. Depois da aula, embora ela saísse acompanhada por um rapaz – talvez um futuro padre. Tive certeza, absoluta, que eu só não transaria com ela se eu não quisesse. Olhei a sua bunda magra e murcha pela calça jeans. Minha memória de bundas logo alertou-me de que panos, às vezes, ocultam bundas geniais.
- Eu, um grande canalha, ali, no meio de tantos homens bons e honrados, estudando ética! Isto não vai dar certo. A não ser que eu descubra, em meio àquele estado de pureza, uma quadrilha e parceiros inimagináveis. Mas, no fundo, eu luto por ser um homem do meu tempo, um homem bom. Eu luto, todos os dias, pela felicidade.
Antes de chegar na escola, no carro, um pensamento me intrigava. Como podem aqueles homens religiosos discutirem tão profundamente a ética? Por que eles se aprofundam tanto nestas discussões? Era algo difícil de entender. A história era outra. Por que? Será que a evolução do homem passa por estes caminhos?
Pensava em Hegel, destacado por Marx e citado por Erich Fromm:
“AINDA O PENSAMENTO CRIMINOSO
DE UM MALFEITOR POSSUI MAIS GRANDEZA
E NOBREZA DO QUE OS PRODÍGIOS DO CÉU”
Pensamento criminoso, fácil. Prodígios dos céus? Milagres? Galáxias?
A astronomia? O céu mesmo? Os céus têm prodígios?
Se o paralelo ficasse:
Pensamento criminoso de um malfeitor x a formação de um universo
Um é vontade. O outro seria… um acidente?
Um é um universo. O outro não se sabe o que seria e se seria possível.
Qual a nobreza de um pensar criminoso?
Por ser pensar?
Por que Hegel entusiasma-se tanto com este fenômeno?
Tinha e ainda tenho ainda dificuldades em entender este povo da Igreja Católica.
Às vezes grandes companheiros, às vezes grandes ausências. Tínhamos uma grande solidão a nos unir.
Quando cheguei na sala, vi sobre a mesa de aula do padre Vaz apenas uma toalha branca e uma caneta vermelha.
Nada. Nada mais.
Eu me lembrava daqueles professores carregando seus fartos materiais didáticos, na PUC de Contagem, orgulhosos de sua parafernália, alguns com tralhas monumentais, desfilando para orgulho do nobre diretor que nunca deu aula, mas que exigia ser chamado de professor (não vai nisso nenhum descrédito à moderna pedagogia).
Padre Vaz não trazia mais nada. Apenas uma toalha branca e uma caneta vermelha.
Hoje, mais uma vez, ele vestia sua camisa branca listrada. A camisa de dar aulas. Acho que ele tem apenas duas camisas. Quando o conheci, no ano passado, ele vestia a camisa azul de manga curta. Nunca vi o padre Vaz com outra camisa. Até agora.
Este homem não tem outra preocupação senão pensar. Penso em violentar seu papo e suas preocupações. Falar com ele de comidas e de coisas superficiais. Eu gostaria, por exemplo, que ele me descrevesse o seu vagar pelo mundo, antes de ser ordenado padre jesuíta, que ele me contasse esta sua grande aventura.
Imaginava eu que sua grande aventura fosse, justamente, o desafio dos jesuítas, que, antes de serem ordenados, são convidados a percorrem, sem nada nos bolsos ou nas mãos, sem documentos e sem nenhum apoio, uma distância, enorme, entre cidades. (Ou seria esta ideia uma ficção do colega zombando da credulidade de um aprendiz.)
Depois, continua ele, então, é que eles devem confirmar sua decisão de ser padre. Lembro-me do meu companheiro de trabalho, o eficiente Chico Haas, me lembro de que Vitor me disse que Haas saiu do seminário depois da “prova”. O que teria acontecido com o Haas? Qual foi a distância percorrida pelo padre Vaz. Qual foi a conclusão, diferente de Haas?
Se eu estou preso e saio para o mundo, jamais voltaria ao estágio anterior. Se eu sou livre, eu sou livre sempre, não há limites e não há grilhões.
Este homem pequeno, barrigudinho, simples, sem nenhum apego a nada senão à inteligência, parece, aparentemente, sem entusiasmo para dar as suas aulas de ética. A metamorfose é imediata. Rápido se transforma em um leão, rapidamente, rapidamente. Mas cansa-se, também, muito rápido. Suas aulas começam às 10 horas. Ele é pontual. 10h50m, ele para. Um descanso de 10 minutos. Depois mais 30 minutos.
Às vezes, ele encerra, antes do tempo, concluindo um raciocínio e sai rápido. Sua idade não permite maior esforço. Está claro o seu cansaço. Seus estudantes conseguem capturá-lo. Já não está mais cansado. Um leve sorriso e muita alegria em seu rosto. Vejo-o atendendo, cordialmente, um estudante e saio, passo por eles e sigo o caminho.
(Ele tem seus apegos, sim, depois entro nesta seara, mas para que fique marcada a existência dos seus apegos, seus valores, destaco o apego, evidente, à família e à sua terra, seus chãos minerais de Ouro Preto).
Penso em pautar-me para uma reportagem sobre o padre Vaz. Voltaria à reportagem.
Se fosse para ser publicada no jornal do bairro, eu teria que falar quem é o padre Vaz, aquele padre baixinho que celebra a missa do sábado e duas missas no domingo. Aquele professor de filosofia da faculdade dos padres.
Ali, do outro lado da rua fica um quartel da Polícia Militar. Ninguém conhece aquele padre.
Então, esta minha reportagem teria que falar do vizinho de bairro e de suas preocupações, do imenso trabalho já realizado, da imensa obra em construção, do seu esforço editorial, seu imenso trabalho junto aos seus parceiros de filosofar, suas traduções, sua presença em um mundo em que todos, a cem metros de distância, jamais imaginariam que existe.
Neste outro mundo, que se espalha por grandes e pequenas cidades do mundo inteiro, o padre Vaz é um dos maiores filósofos contemporâneos. Um padre. Um filósofo. Uma inteligência. Rara, preciosa. Uma cultura. Sua dimensão está em relação direta com a sua profunda humildade.
Vejo o seu trabalho como o de uma formiga construindo um imenso formigueiro, inacreditável pelo tamanho. É uma formiga que construiu um palácio. Quando você procura seus companheiros neste coletivo formiga, o choque. Ela é uma formiga solitária. Ela sozinha construiu as muralhas da China, as pirâmides do Egito, a Torre Eiffel. Cruel! Seja.
“O RASTRO DE UM SONHO NÃO É
MENOS REAL DO QUE O RASTRO DE UM PASSO”
Georges Duby
Já que falei de coisas grandes, é bom sinal baixar a bola. Estamos na esfera do pensamento e vamos longe ainda.
Mas apanhei a citação de Duby porque folheava meu caderno com as anotações dos rascunhos das aulas do padre Vaz e me deparei com um pequeno conto em que abro com, exatamente, esta citação.
Como estou fazendo os rascunhos das anotações das aulas?
Imito Wittgenstein, sem o talento e a profundidade de reflexão, de um lado, do lado esquerdo da folha, anoto o que penso das aulas do padre Vaz, falas dele que não tem a ver com as lições, pequenas intervenções e, do lado direito, a aula em si (sic), o concreto apresentado pelo maior filósofo de todos os tempos, dando aulas em pleno final de milênio, em uma cidade à margem do mundo.
A observação do padre Vaz: “Saber ético todos têm”. A Ética será o saber ético racionalizado.
Aí o bode.
No morro há a ética, na fábrica, no quartel, entre os bandidos e entre os corruptos. Mas a convenção do costume, da moral, da ética, não é a ética verdadeira. Código de Ética da Fábrica de Pum. Não existe? Existiria, então, um código das fábricas? Um código dos donos de fábricas? Seria uma ética tão válida quanto a ética dos marginais. Existiria, então, a ética da sobrevivência? Onde estaria isto nas éticas plurais?
Padre Vaz bate firme:
O saber ético racionalizado é muito recente na história da humanidade, tem apenas 2.600 anos. Apareceu na Grécia e tornou-se patrimônio cultural das civilizações.
Ainda na sua primeira aula, Padre Vaz situou tempos e personagens. Se abriu a aula pedindo a proteção do Espírito Santo e de São Tomás de Aquino, quando passou pela religião, lembrou que, no século 3, Santo Agostinho criou a ética cristã.
Este santo, assim como outros, teve uma vida atribulada, antes da santidade e se tratava de um estudioso da retórica, um seguidor de Manes. A problemática criada a partir de Manes deve ser bem analisada.
Antes, ao encerrar qualquer discussão radicalóide, observava que lá no século três, Santo Agostinho já botara um paradeiro no maniqueísmo, na divisão entre deus e o diabo, entre o bom e o mal.
O mundo não seria tão estreito e se reduziria a estes dois limites, mas sinto que a passagem foi rápida demais e que as ideias de Manes devem ser reavaliadas.
x
Non scholae sed vitae discimus
(Nós não aprendemos para a escola, mas para guiar a nossa vida)
Vaz faz a citação e observa:
“Nós não aprendemos a ética para saber o que é o bem, mas para nos tornarmos bons. A ética é essencialmente uma ciência prática, enquanto a economia trata de como sobreviver, a ética inquiri as razões de viver. Para que viver?”
(Um dos primeiros livros de filosofia que li foi “A finalidade da vida” de Farias Brito)
x
Vaz expõe a vulgarização das expressões ética e moral, o uso abusivo da expressão com diversas conotações, lembrando que o “saber ético é vivido espontaneamente”.
- Falta de ética.
- Se portar com ética.
- Ele não tem ética.
Por outro lado, há uma enorme bibliografia,
(Agora, me encalacro: não sei porque anotei – “tempo em que não se discutirá tanto a ética” -e a pergunta: “por que a imensa bibliografia?”)
“O “homem revoltado”, tal como o caracterizou
Albert Camus num livro já clássico, é precisamente
o homem que diz “não”, e nesta negação radical
põe em questão todo um mundo de valores que
definem uma situação opressiva, e abre espaço
para a criação de novos valores.
Assim, a História nos mostra os grupos
humanos ameaçados na sua segurança no
momento em que a revolta se torna, no seu seio, uma atitude tipicamente moral, no momento em que as leis
e as normas da convivência moral não surgem mais
como possibilidades concretas,
mas como obstáculos à liberdade”.
(Moral, Sociedade e Nação, artigo publicado na revista Paz e Terra,
número 1. 1965)
(*) Rufino Falho Filho é jornalista