
CRÉDITOS: Ricardo Stuckert / PR
06-08-2025 às 09h54
Prof. Ilder
As últimas viagens tinham sido turbulentas. Roma. Moscou. Pequim. Paris. Agora, o casal estava em casa, no Palácio da Alvorada.
Lula adiara o banho para depois e esparramara-se nas almofadas do sofá da sala. De cueca samba-canção e camisa de manga comprida, desabotoada no peito, mas justa na barriga, deixou-se mergulhar em apatia, desinteresse e tédio. Permaneceu melancólico, pelo resto do dia; abandonado, na planura do Planalto Central.
Ela tinha pesquisado, on-line, o horário do pôr do sol, em Brasília, naquela terça-feira, 5 de agosto de 2025, véspera do tarifaço. 17:26:22.[1] “Por volta de cinco e quinze, posso acender uma vela?”
“Que diferença faz para mim você acender uma vela?” A rispidez não era dirigida à pessoa, mas à pergunta. Qualquer um, que soubesse que sua mulher lhe pede autorização para acender uma vela, concluiria que ele não é o defensor de direitos que a maioria dos brasileiros acredita que seja. “Dona Marisa compreendia isso muito bem.”
Ela queria aproveitar o final do dia para, com toda a paciência do mundo, lhe pedir que esclarecesse certo detalhe em uma de suas últimas declarações. Teria que ser especialista em gerenciamento de tempo porque, assim que escurecesse, ele começaria a beber. Duas, três garrafas seriam consumidas, na primeira hora. Então, o mundo assistiria à uma interminável sessão de mau-humor.
Ele perscrutou o ar, aguçando o olfato. Andava preocupado com cheiros porque, pouco antes do voo para Moscou, sentira um azedo. Não passou de sugestão: por um instante, um ser teria flutuado a seu lado, exalado, e voado embora.
Ela acessou ao Google e escreveu “Trump”. A chama da vela, primeiro, oscilou; depois, agitada, lançou faíscas; por fim, equilibrou-se na ponta do pavio.
Em Estudos sobre a histeria, 1985, Freud registrou o tratamento de Cecilie M. (Anna von Lieben), vítima de “ausências e dores, que, em um contexto de depressão e sentimentos de baixa autoestima, levaram a uma grave dependência de morfina”[1]. Odiava o marido e sentia-se aprisionada. No entanto, sob as ruínas de sua mente, Freud encontrou não desejo de liberdade, mas fantasia de dominação, humilhação e violência.
Ao longe, em algum canto do palácio, o toque de um celular soou por fração de segundo. A conversa que se seguiu não pôde ser ouvida.
Lula apostou que, na outra vez em que morou no Alvorada, não havia tanto sussurro. “Qual é o cheiro do suor da Morte? Getúlio pensou nisso?” Viu sangue salpicado na parede em frente, mas não descobriu de onde vinha a imagem. “E agora, companheiro?” O eco devolveu-lhe, sumariamente: “E agora? Agora? Ora…”
Ela tinha um plano: assim que a chama da vela se imobilizasse, perguntaria o que, numa coletiva qualquer, em Paris, ele quis dizer sobre “eleições do ano que vem”[1]. Entretanto, o fogo mantinha-se baixo e amarelo. Enquanto esperava a chama ficar o mais fina possível, distraiu-se com a imagem de Trump e seus 1,90m de altura.
Em A feminilidade, 1932, Freud assinalou que, “de acordo com sua natureza peculiar, a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher – seria esta uma tarefa difícil de cumprir -, mas se empenha em indagar como é que a mulher se forma”. Ao tratar da “mulher na vida adulta”, indicou que “pode acontecer que a segunda metade da vida da mulher venha a ser preenchida pela luta contra seu marido”.[2]
Logo, às 18:00 horas, teria início a atividade vespertina do cerimonial militar, “a arriação solene da Bandeira Nacional, com seus guardas usando trajes históricos”[3]. Lula chegou a resmungar: “A coisa piorou em Paris”. O azedo misturou-se ao cheiro de um imaginário Mercado de Vinagres. Veio de fora do prédio, penetrou por fendas.
desprotegidas e envolveu o Grand Palais, onde, “sem sapatos, só de meias”[1], se prostou no chão e tentou acrobacias. “Forças ocultas, será que Jânio tinha razão?” Voltou sua atenção para Jango: “O que aconteceu realmente?” Ela foi tomada por uma sensação de urgência. Era quase noite, na hora de pôr em prática o que tinha ensaiado: “Amor, qual é a relação entre 2026 e Trump?” Mas ainda lhe faltava a coragem.
Em O problema econômico do masoquismo (1924), Freud distinguiu, no vínculo entre perversão e pulsão de morte, o masoquismo feminino, que se refere a homem que se coloca em “situação caracteristicamente feminina”, isto é, de “ser possuído sexualmente ou dar à luz”[1]. É comum esse masoquista aliar-se a mulher que tenha a morte como cenário para o amor: Medeia, por exemplo. Perséfone raptada por Hades. Em linguagem freudiana, Eros contra Thanatos.
Na noite brasiliense, sombras a vaguear, livremente: Cleriston Pereira da Cunha, Daniel Silveira, Felipe Martins…
Lula admitiu: “Na cerimônia do BRICS, senti o cheiro o tempo todo.” Quis acreditar em alucinação suave, uma sombra fina e colorida, ainda que cinzenta.
Ela ia desenterrando o incrustado nas raízes mais primitivas de sua alma. Carregada por uma força explosiva, testou o poder de quebrar o feitiço da noite recém-nascida. “Benhê, o pessoal da cozinha está perguntando sobre ovos de pata para amanhã.”
Ele fingiu dormir. Não parava de pensar, ora em Collor e o cheiro da Casa da Dinda, ora em Dilma.
Ela ficou observando a silhueta do “cara” sobre o sofá. A Casa Branca veio-lhe à mente e pareceu muito maior do que Vaticano, Kremlin, Zhongnanhai e Palácio do Eliseu juntos. Enamorou-se pelo que supôs serem as cores de Washington, nesse verão; sentiu-se inefável ao recordar a mensagem de Trump ao Brasil.
Em carta a Maria Bonaparte, 1925, Freud confessou: “A grande pergunta que não foi nunca respondida e que eu não fui capaz ainda de responder, apesar dos meus trinta anos de pesquisa sobre a alma feminina, é – o que quer uma mulher?”