OTAN movimenta além do tabuleiro de WAR
Em grande resumo, a “Armadilha de Tucídides” revela a escalada estratégica entre distintas potências, quando as maiores são ameaçadas por outras, emergentes.
20-01-2024 às 08:08
*Rogério Reis Devisate
A humanidade quase sempre esteve em guerra. Isso é extremamente curioso, na medida em que as nossas poesias, discursos e promessas falam em amor, paixão, paz, natureza e vida idílica, ao passo que muitas das ações humanas vão no sentido oposto, revelando cobiça, ganância, inveja, raiva e espírito belicoso. Em resumo: falamos em paz e fazemos a guerra.
Em busca de terras agricultáveis, riquezas e outras questões, foram necessários acordos estratégicos entre governos e povos distintos. As traições aqueceram os contextos e questões eventualmente pequenas foram transformadas em disputas sangrentas. Além do mais, algumas interpretações dos fatos levaram pessoas a considerar importantes elementos pequenos em detrimento de outros mais relevantes. Os exemplos são tão abundantes que, mesmo resumidamente, não caberiam aqui.
Entretanto, há aspecto comum a muitas batalhas e guerras, revelado pela “Armadilha de Tucídides”, assim chamada certa questão formulada juntamente com as referências deste grande general grego à Guerra de Peloponeso, ocorrida há cerca de 2.500 anos.
Em grande resumo, a “Armadilha de Tucídides” revela a escalada estratégica entre distintas potências, quando as maiores são ameaçadas por outras, emergentes. Uma potência vai subindo o tom e os seus preparativos ante a movimentação do adversário. Conforme uma age, a outra reage e, assim, sucessivamente, até que a tensão leve à guerra. Nessa linha, as guerras são menos surpresas inesperadas e mais uma etapa do jogo, surgindo após o insucesso das ações diplomáticas e da falência de tratados e acordos.
Os jogos de guerra voltaram à ordem do dia, nos noticiários, porque deixaram de ser fato eventual e, de repente e em vários locais do mundo, se tornaram motivo de interesse permanente, com batalhas ocorrendo e se desdobrando.
Acima de tudo é a última notícia, surgida desse 18 de janeiro de 2024, que mais nos chama a atenção e que talvez bem represente a soma de todos os medos: a OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte anunciou que reunirá a maior tropa desde o fim da Guerra Fria, contando com membros de várias nações. Serão 90 mil soldados, mobilizados para atuar nas fronteiras orientais da Europa, ali, nas barbas da dominação da Rússia e da sua área de influência!
Isso é muito maior em proporção e potencial dano do que aquelas questões com que já estamos acostumados, como a guerra entre a Ucrânia e a Rússia, as pendências da China em relação a Tawian, a resposta de Israel ante o ataque terrorista feito pelo Hamas, os recentes movimentos entre o Irã, o Paquistão e Iraque, etc.
Aliás, chamar de “exercício militar” aquele contingente e naquela região já tão sensível, diante das brasas aquecidas pela guerra da Rússia com a Ucrânia, parece ser algo mais representativo do que mero treinamento, até pelas notícias da simulação da atuação dessas tropas em reforço aos aliados europeus fronteiriços com a Rússia e o envolvimento de mais de 50 navios de guerra, 80 aviões caças, helicópteros, tanques e demais veículos militares.
Olhando pelo menor aspecto, o custo envolvido é imenso e provavelmente não será revelado. Pensando de modo mais abrangente, o que mais importará não será o “exercício” em questão e sim o modo com que tudo será visto e interpretado pela Rússia e, também, pela China, Paquistão, Irã e outros países árabes.
A comunicação não se dá apenas pela mensagem emitida, envolvendo também como ela é entendida pelo receptor e os eventuais “ruídos” existentes. Portanto, sem nos alongar, é evidente que há muito em jogo e, nesse momento, é previsível que, nesse cenário real, os jogadores estejam se portando como fazíamos em frente ao tabuleiro de war: jogando os dados, olhando os objetivos estratégicos, fortalecendo os seus exércitos e as suas alianças e ficando com os olhos atentos nos adversários.
Lembram-se do jogo de tabuleiro? Em alguns momentos, jogávamos pelo nosso objetivo e, noutros, “alianças” eram feitas ao se perceber movimentos de outro jogador que poderiam nos beneficiar, direta ou indiretamente, na sua guerra particular com adversário nosso. Além disso, dos objetivos disfarçados e dissimulados movimentos passávamos a obrar de modo ostensivo e direto, tão logo se tornasse inegável o nosso foco estratégico e tivéssemos os exércitos fortes e disponíveis.
Portanto, é crível que nenhum país fronteiriço com os limites orientais da OTAN ficaria indiferente a essa movimentação de tropas tão grande e ostensiva, do mesmo modo que não poderia mesmo não se preparar para o caso de algo sair do controle.
Ali é área de contenção bipolar, servindo para que a OTAN não seja confrontada com ação russa e para que a Rússia não tenha vizinhança com aquela. Foi acordo feito com Gorbatchov quando da derrocada da URSS e, naturalmente, se compromissos valem algo, assim vem sendo visto desde então.
É bom registrar que Tucídides não fazia previsões, como Nostradamus. Tucídides entrou para a história por sua experiência na guerra e as suas reflexões e registros históricos, em mais de 8 volumes, sobre a famosa guerra de Peloponeso, entre Esparta e Atenas.
Tucídides foi muito estudado, inclusive por Thomas Hobbes. Ambos analisaram o caráter belicoso da natureza humana. De fato, o ser humano é escravo das paixões, impulsivo, reagente, guiado pelo ego, vaidoso e capaz de colocar estudos longos de lado por influência momentânea. É imprevisível, por mais que a história pinte quadros sobre grandes líderes e governantes e escreva obras enaltecendo virtudes – e apagando defeitos.
O que se dará, agora, com o que se avizinha? Qual a consequência disso? Quais os conceitos que a movimentação terá aos olhos adversários? O que a Rússia e a China farão? Ficarão observando? Farão “treinamento” assemelhado?
Essas perguntas ainda não encontramos nos jornais e no noticiário e é cedo para qualquer interpretação segura sobre o contexto.
Entretanto, é certo que a “simulação” armada até os dentes não será vista como algo sem importância.
De simulação em simulação, de treinamento em treinamento, de armamento em armamento e da movimentação de tropas à fixação de cabeças de ponte, chegaremos a um momento ímpar e distinto desses preparativos para o inaugurar dos verdadeiros jogos de guerra.
Nesse momento, lamentavelmente, o mundo real e da grande guerra retirará o véu das propostas ou ilusões de melhoria da vida humana e do planeta, quando o pior dos nossos dias atuais será visto como doce manjar diante do que um grande conflito mundial poderá representar, com a fome mais dantesca e a foice da morte empilhando os corpos dos jovens militares e dos inocentes civis, enquanto líderes sentados em suas luxuosas salas tomam decisões, apertam botões e mandam o mundo pelos ares.
Fomos salvos há décadas no evento conhecido como Treze Dias que Abalaram o Mundo, com as graves e quase insuperáveis tensões entre URSS e EUA, em torno da crise dos mísseis em Cuba. Se as novas tensões chegarem àqueles níveis, teremos outra chance?
O mundo real da guerra, mormente em grande escala, não tem comparação com os jogos de tabuleiro, assim como não tem precedente um novo conflito mundial com aquilo que se conheceu no passado, pois há tecnologias e armamentos incomparavelmente mais mortíferos. Que o Armagedom não se realize e que as profecias de Nostradamus sobre a 3ª Guerra não se concretizem. Que a ONU intervenha e que outros atuem como pacificadores, antes que as coisas saiam do controle e que a escalada prevista por Tucídides ganhe força. Por ora, só nos cabe observar atentamente e torcer pelo melhor ou, para manter saudáveis as nossas mentes, nos distrair e deixar que os senhores da guerra decidam o que lhes aprouver, enquanto curtimos as nossas vidas.
* Rogério Reis Devisarte é advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal.
2 comentários
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Como de hábito, mais uma excelente reflexão deste Bom Pensador, Parabéns Rogério!
Rogério, não posso deixar de elogiar a profundidade e clareza da sua análise neste texto. Ao abordar a dualidade entre as aspirações humanas e a realidade das guerras, você oferece uma visão incrivelmente perspicaz. A introdução da 'Armadilha de Tucídides' adiciona uma camada fascinante ao entendimento dos conflitos geopolíticos. Sua reflexão sobre a recente mobilização da OTAN é aguda e provocativa. Parabéns por contribuir com um texto que não só informa, mas também desafia o leitor a refletir. Excelente trabalho!