
Executiva do PSDB aprova fusão com o Podemos - créditos: divulgação-PSDB
Getting your Trinity Audio player ready...
|
03-05-2025 às 08h08
José Luiz Borges Horta(*)
Em 1989, o povo brasileiro, iludido pelo suposto caráter democrático de eleições diretas para a Presidência da República, viveu uma experiência inesquecível, na única eleição exclusivamente presidencial vivida no Brasil, nas décadas anteriores e, infelizmente, também nas posteriores.
Já não bastasse o sistema de governo brasileiro se estruturar como uma “democracia presidencial” — ao contrário de todas as nações européias, que já alcançaram o estágio de desenvolvimento político que permite reconhecer a Europa como um círculo de “democracias parlamentares” —, somos ainda obrigados a mesclar as eleições nacionais com as eleições estaduais, e ainda pior, com eleições legislativas (para o Senado, a Câmara e as Assembleias Legislativas estaduais), o que contribui para um processo eleitoral confuso e aberto a todo tipo de delinquência.
(Se levássemos a sério a ideia de vivermos em uma “democracia presidencial”, as eleições parlamentares teriam pleitos próprios, e no máximo teríamos eleições executivas — para presidente, governadores e prefeitos — em uma data e, em outro biênio, as eleições legislativas).
Mas 1989 foi uma deliciosa exceção. Só elegeríamos o novo Presidente e o Vice, com um único voto, dado em dois turnos de votação. Todos os grandes partidos nacionais apresentaram candidaturas, à direita, à esquerda e ao centro, permitindo ao eleitor diferenciar seu voto à sua maneira.
É bem dizer que, em cada plexo ideológico, os candidatos podiam se aproximar nas propostas, e acabavam competindo, entre si, pelo eleitorado em sua faixa de propostas e leituras de país. Três candidaturas, para quem se lembra, em um certo momento se digladiavam, buscando galvanizar um Brasil diferente e diferenciado, e nenhuma delas acabou chegando ao segundo turno: Mário Covas, do recém-criado Partido da Social-Democracia Brasileira, Guilherme Afif, do Partido Liberal, e Roberto Freire, do Partido Popular Socialista, três forças partidárias de centro, fortemente europeizadas e modernizantes. Mas PSDB, PL e PPS (o antigo PCB, depois Cidadania) morreriam na praia do primeiro turno.
Dois partidos “nanicos” lançaram um temerário político das Alagoas, e seriam mais bem-sucedidos: o PJ e o PSC. O PJ fora fundado, no Bigbang partidário de 1985, como Partido da Juventude, e tinha apoiado em Alagoas a eleição do Governador Fernando Collor, então no PMDB, em 1986, e ao filiá-lo para sua candidatura presidencial, em 1989, o PJ mudou de nome para Partido da Reconstrução Nacional (PRN), mantendo o número de legenda 36. (Aliás, o PRN ainda existe, embora tenha mudado de nome, em 2001, para Partido Trabalhista Cristão – PTC, e em 2022, para Agir, nome atual, que mantém a legenda 36).
36, o número do PRN (ou PJ, PTC, Agir), na salada generosa ofertada aos eleitores em 1989, terá parecido pouco apetitoso — mas a candidatura Collor podia usar o número de legenda do outro Partido que a lançava, o PSC. Se as bases ideológicas do PRN eram, digamos, fluidas, as de um partido social-cristão são menos turvas, e remetem de imediato ao pescador de almas e ao pastor de ovelhas, aliás assumindo o legado cristão até mesmo na logo partidária, que sempre se apresentou com o peixe tão simbólico da Era Cristã. O PSC, desde sempre, assumia-se marcado pela fé cristã, e oferecia a Collor um trunfo eleitoral importante: sua legenda era o 20. E Collor candidatou-se e venceu a eleição, pela coligação PRN-PSC, com a legenda 20. Se o PRN agora é o Agir, e segue 36, ainda que sem representação no Congresso Nacional, onde anda o PSC, e sua legenda 20? A resposta exige voltas bem mais peculiares.
Jânio Quadros (1917-1992), como se sabe, era um político imensamente pitoresco e sui generis. Sua participação na vida pública do país sempre foi marcada por um voluntarismo radical, e igualmente por uma desconformidade com o sistema partidário nacional. Era trabalhista, mas não se conformava ao PTB getulista. Foi eleito Presidente do Brasil, em 1960, por uma legenda trabalhista dissidente do PTB, o PTN (Partido Trabalhista Nacional), mas ao voltar à política, em 1985, foi eleito Prefeito de São Paulo pelo “novo” PTB. Pois bem: janistas, como também ademaristas, sempre os houve na “política” paulista, e terá sido um grupo de janistas paulistas a recriar, em 1995, poucos anos após a morte de Jânio, o PTN.
O PTN teve uma interessante história de êxitos, crescendo sempre à medida em que fagocitava outras forças partidárias. A primeira delas foi o Partido Humanista da Solidariedade (o PHS), fundado em 1995 como Partido do Solidarismo Nacional (PSN), após uma tentativa frustrada de se criar um Partido do Solidarismo Libertador (PSL) em 1990. Dissidentes do PSC, seus fundadores pretendiam estabelecer na solidariedade o vetor ideológico central da vida política.
Detentores da legenda 31, em 2016 chegaram a eleger o Prefeito de Belo Horizonte, com o mote óbvio — “BH é 31”, remissão explícita ao código de discagem direta à distância (DDD) —, e em 2018, a legenda elegeu o Senador Carlos Viana, por Minas Gerais, também ele um antigo dissidente do PSC. Em 2019, no entanto, dada a legislação eleitoral, o PHS optou por ser incorporado pelo PTN, que àquela altura já havia mudado seu nome para Podemos.
Há duas possíveis razões para a escolha do nome Podemos, todas duas conjecturais. Uma espanhola, outra norteamericana. Em 2017, ano da mudança do nome do PTN para Podemos, na Espanha era ascendente o peso político do Partido Podemos, de perfil fortemente renovador e associado aos movimentos sociais de ocupação de praças públicas conhecidos após as Primaveras Árabes (os movimentos 15M); e nos Estados Unidos, Barack Hussein Obama concluía oito anos de mandato presidencial construído a partir do engenhoso mote “Yes, We Can” (sim, nós podemos, em tradução literal). O número de legenda do PTN desde 1995, mantido pelo Podemos em 2017 e mesmo após a incorporação do PHS, em 2019, seguia sendo 19, pelo qual o Senador paranaense Álvaro Dias disputou a Presidência da República, em 2018, em coligação com o PSC. Em 2023, entretanto, nova incorporação traria mudanças ao Podemos: seria a vez do tradicional PSC, então sob a liderança do pastor neopentecostal Everaldo Dias Pereira (Assembleia de Deus) ser incorporado ao e pelo Podemos, que então adquire um ativo eleitoral altamente simbólico: a legenda 20, histórica do PSC, vitoriosa em 1989, passa a ser do Podemos, a partir de 2024.
E é esse Podemos, “empoderado” pela legenda 20, que afinal foi brindado pela Executiva Nacional do PSDB com recente decisão unânime pela fusão partidária. O PSDB, criado em 1988 como dissidência do PMDB, consagrado em São Paulo com duas décadas de predomínio administrativo e destroçado eleitoralmente após a emergência do bolsonarismo como antipetismo raiz — restando aos tucanos como sempre o antipetismo light — atravessou os últimos anos flertando com diversas forças partidárias para buscar sobrevida. Tentou uma Federação com o Cidadania, mas foram mal sucedidos; dialogaram com o MDB, de que eram dissidentes, para voltar ao seio original, mas a proposta gerava contradições em unidades federativas em que o MDB se manteve muito forte (caso de Goiás); consideraram absorverem-se pelo PSD — cuja história, mesmo recente, merece imensa atenção, de dissidência do Democratas a nova Meca partidária nacional —, mas desapareceriam em São Paulo e em Minas Gerais; aproximaram-se do Solidariedade, mas era ainda muito pouco para sobreviverem para além de 2026.
Ao fim e ao cabo de anos de tergiversação, os tucanos optaram por fundirem-se ao pós-janismo cristão do atual Podemos. Segundo se noticia, abandonarão a legenda 45, que usaram desde a fundação em 1988, mas manterão os tucanos como mascotes simbólicas, ganhando agora a legenda 20, mais viável e palatável nos jingles de campanha.
Há certamente quem ignore a força dos números — que os especialistas em propaganda eleitoral chamarão de “recall de legenda” — mesmo em tempos, como estes, de urnas eletrônicas, em que se vota mediante números. O PT segue firme com o 13, desde 1985, como o PDT com o 12 e o MDB com o 15. O recall do PSB está assentado no 40, e a União Progressista, é de se supor, entre o 11 do PP e o atual 44 do União Brasil, acabará mantendo a força do 11 quando (e se) transitar de Federação a fusão partidária. Mesmo o Republicanos, força partidária recente, já se beneficia do seu 10. Os tucanos, agora, serão 20; parece melhor que serem 45, ainda que o 20 venha do PSC e da vitória de Collor, em 1989.
Para quem duvida dos números, lembremos que, em 1998, Hélio Garcia estava presuntivamente eleito Senador por Minas Gerais, candidato pela legenda 14, do ainda existente PTB, e era apoiado pelo Governador tucano em busca de reeleição, Eduardo Azeredo, a quem quatro anos antes o mesmo Hélio tinha eleito, com Walfrido Mares Guia como Vice-Governador. Quando começou a campanha, no entanto, o PMDB lançou uma saudosa chapa completa para Governador (Itamar Franco), vice (Newton Cardoso) e Senador (José Alencar), e o jingle da campanha ao Senado de José Alencar — que quatro anos antes tinha sido candidato ao Governo de Minas, ficando em terceiro lugar — desequilibrou avassaladoramente o jogo político mineiro e segue ainda assustando os adversários do MDB:
“O 15 do Itamar, / é o 15 do Zé Alencar. / É com o 15 que vou, / número 15, pra Senador. / É com o 15 que eu vou, / número 15, Governador!”
(*) José Luiz Borges Horta, 54, é Professor Titular de Teoria do Estado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Votou 15 em Minas em 1994 e 1998, para Governador (José Alencar e Itamar Franco) e para Senador (Tarcísio Delgado e José Alencar), entre outros votos de que também se orgulha. Coordena na UFMG o Grupo internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado e o Grupo de Pesquisa dos Seminários Hegelianos. Professor visitante na Universitat de Barcelona, é membro da Sociedade Hegel Brasileira e do Centro de Excelência Jean Monnet em Estudos Europeus. Contato: zeluiz@ufmg.br.