Trump, os BRICS e o Brasil. “O mundo está mudado. Posso sentir na água, posso sentir na terra, posso perceber no ar”. Tudo leva à reflexão
04-12-2024 às 09h58
Hugo Rezende Henriques*
O universo da arte com frequência lega interessantes contributos à vida humana. Ao refletir sobre o tema que trago hoje a esta coluna, a frase inicial do primeiro filme da trilogia de O senhor dos anéis retumbava em minha mente.
A elfa Galadriel abre o filme com um monólogo que se inicia na língua Sindarin (uma dentre várias que Tolkien criou para seu universo), e dizendo, em tradução livre, algo como: “O mundo está mudado. Posso sentir na água, posso sentir na terra, posso perceber no ar”. A história humana na Terra já passou por diversos momentos, e desde que, ao longo de alguns milhares de anos, nos espalhamos por praticamente todos os cantos habitáveis do planeta, se particionou em grandes bolsões civilizacionais.
Curiosamente, esse particionamento jamais implicou em qualquer evento de especiação, de modo que temos, ao mesmo tempo, uma espécie humana única e civilizações humanas múltiplas em cada um dos momentos daquilo que convencionamos chamar de História. Há, portanto, uma grande epopeia humana na Terra, que convive (interagindo) com as diversas tramas históricas das distintas civilizações humanas, cada uma com seus desenvolvimentos culturais próprios, a maioria delas mantendo algum nível de contato entre si ao longo do tempo. A grande massa de terra euro-asiática, à qual se soma, praticamente em contiguidade, a África mediterrânea, é seguramente o maior exemplo dessa diferença civilizacional e dos contatos entre os povos. Não é sem razão que justamente este seja o espaço da afamada “Rota da Seda”, ao longo da qual floresceram, na antiguidade, algumas das mais inovadoras civilizações conhecidas, as mais antigas das quais perdurando por cerca de quatro ou cinco milênios, conforme os registros conhecidos.
Ao longo da História conhecida da humanidade, civilizações há, que existem há milênios, outras contam com alguns pares de séculos; algumas pereceram, outras se fundiram, umas ainda persistem; algumas se organizam de forma relativamente fechada, outras abertas ao exterior; e embora muitas delas coexistam no mesmo tempo cronológico, cada uma delas vivencia seu próprio tempo histórico. A característica de um tempo histórico “civilizacional” são os dilemas e as contradições enfrentadas por certa civilização em dado momento, suas questões fundamentais em uma configuração única, e como tal, intraduzível a outros povos.
Se faço essa longa introdução é para dizer que em algum momento entre a modernidade e a contemporaneidade, isto é, aproximadamente entre os séculos XVI e XVIII da era cristã, uma civilização particular, a ocidental, ousou imaginar um mundo inteiro reunido em um único tempo histórico civilizacional. Convenientemente, este mesmo ocidente arrogou-se a posição de ponto de chegada e modelo para as demais civilizações. A resultante desse processo são os colonialismos e imperialismos perpetrados desde então por europeus continentais e anglo-saxões dos dois lados do Atlântico. A força propulsora desse tipo novo de colonialismo/imperialismo seria denominada “globalização”.
Não se trata de fenômeno novo ou único nessa trama que denominamos História da humanidade, muito embora suas características tenham aspectos singulares sobre os quais não pretendo me delongar. É necessário que diga, entretanto, que o ponto culminante desse processo, o momento de hybris absoluta do imperialismo dito ocidental, que desde a Segunda Guerra Mundial é exclusivamente estadunidense, leva o nome de uma ideologia recentemente elaborada nas universidades dos Estados Unidos da América: neoliberalismo.
Suas características fundamentais exponenciam o espírito do capitalismo que Weber identificava no protestantismo calvinista ascético que colonizou grande parte da América do Norte: uma desconfiança fundamental acerca de toda autoridade, especialmente do Estado; um individualismo fervoroso; a crença fundamentalista de que o sucesso terreno é prova da salvação espiritual – que se desdobra na curiosa perspectiva de que os mais ricos deveriam guiar os rumos do mundo e desfrutar de absoluta liberdade (inclusive para acumular riquezas infinitamente).
Em termos de realizações efetivas, o neoliberalismo se impôs pelo golpe de Estado no Chile em 1970, e desde então se utilizou de tática de guerra e guerrilha para adentrar nos Estados tidos por “subdesenvolvidos” das Américas, África e Ásia. Isto até seu retorno triunfal à casa pátria, pelas mãos dos governos Tatcher (1979-1990 no Reino Unido) e Reagan (1981-1989 nos EUA), quando então passaram a doutrina oficial do império, seja por seus braços militares (Forças Armadas e OTAN), econômico-financeiros (Wall Street, FMI, Banco Mundial), ou culturais (Hollywood, Netflix, etc.).
A hybris neoliberal, retomo, é apenas o ponto de cumeada de um processo civilizacional ocidental que se colocou como ponto de chegada e modelo para as demais civilizações. Mas suas contradições sempre foram patentes.
A proposta de globalização (apenas econômica e financeira, claro), sempre foi estrategicamente perfurada: jamais quis incluir tecnologias civis ou militares sensíveis, e frequentemente esbarrava na autoconsciência estratégica dos polos imperiais que definia certos campos de proteção preferencial (o mais famoso, seguramente, diz respeito ao subvencionamento agrícola praticado sem pudores por todas as grandes potências, garantindo a produção alimentar local, essencial em caso de conflito ou fechamento de fronteiras por quaisquer razões – e que Macron retoma atualmente para barrar o acordo MERCOSUL-UE).
A suposição, razoável, que fundamenta essa perspectiva do ponto de vista do hegemon, é a de que a civilização-guia tivesse chegado ao ponto máximo de desenvolvimento próprio, e que, portanto, pudesse no máximo ser alcançada, jamais ultrapassada. Outras civilizações, entretanto, não necessariamente estavam de acordo com essa leitura, e, ao seu modo, recepcionaram alguns dos avanços que consideravam interessantes para seus próprios desígnios, enquanto ignoraram solenemente aquilo que não lhes dizia respeito, e prontamente se puseram a continuar em seus rumos civilizacionais próprios. E é precisamente desde então que o mundo está mudando.
Enquanto os arautos do neoliberalismo seguem em sua doutrinação ideológica cegada pelo fundamentalismo, apegados a um contexto já demonstradamente ultrapassado, a História da humanidade segue seu ritmo, e as diferentes civilizações, cada uma em seu tempo histórico civilizacional próprio, vão providenciando para si mesmas os seus desenvolvimentos. O neoliberalismo, e com ele o que parece ter sido o último movimento do mais recente período de globalização, vai dando sinais de esgotamento, e à medida que as disputas civilizacionais se intensificam, o próprio centro de irradiação imperial vai dando os sinais de sua crise. O recente aviso do presidente eleito dos EUA, Donald Trump, sobre a elevação da taxação dos países do BRICS caso estes insistam na desdolarização das transações entre os países-membros é sintomática ao mesmo tempo dos fundamentos semi-implícitos da pax americana e da percepção estadunidense do arrefecimento de seu momento histórico de hegemonia incontestada.
Se descortinam a olhos vistos os pressupostos da recente globalização, que se iniciou sob o signo do domínio europeu sobre o mundo, e que se transladou para o domínio global estadunidense: a premissa da supremacia da civilização “ocidental” como elemento legitimador do domínio. Tão logo o interesse do hegemon seja colocado em xeque, e a suposição de sua superioridade cultural seja contestada, toda a ortodoxia cuidadosamente tecida ao longo dos últimos setenta ou oitenta anos se desmancha no ar. O mundo está mudando, e essa mudança é infinitamente mais nítida nas atitudes dos países do Atlântico Norte do que em qualquer outro lugar do mundo hoje. Ainda que boa parte dos analistas e especialistas se esforcem (e é preciso esforço) para não enxergar as mudanças.
Nenhuma categoria profissional logra êxito maior, nesse exercício de cegueira auto-imposta, de forma mais consistente que os economistas. Os outrora humanistas, que ao longo do último meio século se esforçaram conscientemente em reduzir as ciências econômicas a um bastião matematizado de defesa da ortodoxia e da doutrina imperial (o fenômeno foi esplendidamente analisado na obra “The internationalization of Palace wars” de Yves Dezalay e Bryant Garth). Recentemente um economista brasileiro da FGV veio a público comparar a experiência dos BRICS e da União Europeia em relação ao dólar, para concluir que “A Europa não polariza, está alinhada” e sugerir que os BRICS façam o mesmo. As diferenças entre as estruturas não são apenas institucionais, mas também temporais. A União Europeia é o mais bem acabado produto da pax americana, e atualmente tem passado por dilemas a respeito de seus próprios destinos no mundo em alteração, especialmente para definir se são, afinal, uma civilização europeia soberana, ou simplesmente a vitrine kitsch do modelo estadunidense. Enquanto os BRICS, por seu lado, são precisamente a atual ponta de lança da contestação àquela mesma pax, por um grupo de países pertencentes a diferentes civilizações (e, portanto, com diferentes interesses nessa mesma contestação, relativos a seus momentos histórico civilizacionais próprios).
O mais curioso fenômeno a nosso ver, entretanto, se dá internamente, na política brasileira. Isso porque os reflexos da mudança global e das idiossincrasias propriamente brasileiras vão explicitando o esgotamento do “presidencialismo de coalisão”, o arranjo político-institucional que permitiu a entrada, os esboços de reação, e a consolidação do neoliberalismo em terras tupiniquim (um processo capitaneado pelos partidos paulistas da redemocratização). À medida em que o Parlamento brasileiro, escamoteado por aquele modelo, recupera consciência e força, se tornam explícitas as consequências de décadas de leviandade político-institucional (afinal, no receituário neoliberal, as decisões políticas de cunho supostamente “administrativo” – preferirão o termo “decisões técnicas” – são furtadas ao Parlamento por órgãos ditos especializados, e a política econômica é entregue ao mercado de forma indireta ou direta – no caso recente do Brasil, na “autonomia” garantida ao Banco Central para finalmente poder atuar ignorando o clamor das ruas e os interesses dos cidadãos).
As forças conservadoras, sempre presentes na política brasileira se entrincheiraram no Parlamento e cresceram em força e proporção. Reorganizaram seus braços políticos, ideológicos, culturais e até, parece, militares, desmobilizados desde a redemocratização. A resultante é de uma singularidade ímpar: uma elite política e econômica quase totalmente dominada por uma perspectiva neoliberal (na economia) e neoconservadora (nos demais planos), alheia às mudanças que se passam no mundo, e inclusive do papel brasileiro nesses movimentos.
A se garantir o benefício da dúvida sobre a inteligência desta elite político-econômica, é possível interpretar as recentes tentativas de avanço neoliberal (contra trabalhadores, aposentados, educação pública e desenvolvimento militar, por exemplo) como os últimos esforços de quem vê o mundo em que cresceu e do qual se beneficiou desmoronando ao redor (algo que assistimos também na recalcitrante resistência de parcelas de nossa elite política ao movimento abolicionista da segunda metade do século XIX). Mais grave, entretanto, parece ser a falta de um esforço de redefinição estratégica dos interesses e da identidade brasileira no novo momento da História humana.
*Hugo Rezende Henriques é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).