A Cultura dos Órgãos de Tubos na Capitania das Minas Gerais nos Períodos Colonial e Imperial Brasileiro
17/12/2024 às 10h36
Dr. Handel Cecilio
A Capitania das Minas Gerais, no Brasil Colonial, é conhecida por sua rica produção de ouro e
diamantes, que impulsionou um florescimento cultural e artístico sem precedentes. Parte significativa
desse cenário foi a introdução e disseminação dos órgãos de tubos nas igrejas mineiras, especialmente
a partir do século XVIII. Esses instrumentos, além de sua função litúrgica, tornaram-se símbolos de
poder e status para a elite local e entre as irmandades e confrarias religiosas, refletindo a complexa
intersecção entre cultura, religião e sociedade na região.
Contexto Histórico: Minas Gerais e o Barroco Religioso
A Capitania das Minas Gerais desenvolveu um dos mais importantes conjuntos artísticos do Brasil
Colonial. O ciclo do ouro, iniciado no final do século XVII, proporcionou o capital necessário para a
construção de imponentes igrejas e a importação de elementos culturais europeus, incluindo os órgãos
de tubos, que foram fundamentais na consolidação do Barroco religioso na região. Essas igrejas, além
de locais de culto, serviam como verdadeiros palcos para a música sacra, na qual o órgão desempenhava
um papel central.
O desenvolvimento musical em Minas Gerais era tão vigoroso que as vilas mineiras, em pleno sertão,
possuíam uma vida musical intensa, comparável às cidades europeias da época (CECILIO, 2008). O
naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em suas viagens pelo Brasil, relatou a excelência da música
executada nas igrejas de Minas Gerais, destacando a qualidade técnica dos músicos locais (CECILIO,
2006).
Os Primeiros Órgãos de Tubos em Minas Gerais
Os primeiros órgãos de tubos chegaram à Capitania de Minas Gerais provenientes da Europa,
principalmente de Portugal e Espanha. Essas importações, entretanto, enfrentavam dificuldades devido
ao clima tropical da região, que deteriorava rapidamente os materiais utilizados na construção desses
instrumentos. Madeiras nobres, como o carvalho, comuns na Europa, não resistiam à umidade e aos
insetos do Brasil Colonial (CECILIO, 2006).
Diante desse cenário, surgiu a necessidade de construir órgãos localmente, utilizando materiais nativos
e adaptando as técnicas europeias às condições brasileiras. O desenvolvimento de uma organaria local
foi crucial para a disseminação do uso de órgãos de tubos em Minas Gerais, especialmente no século
XVIII. Figuras como o organeiro Athanazio Fernandez da Silva e o padre Manuel de Almeida e Silva
foram fundamentais nesse processo. Athanazio foi responsável por diversos órgãos em igrejas
importantes, como a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Sabará, e a Igreja de São Francisco, em
Mariana (CECILIO, 2014).
O padre Manuel de Almeida e Silva, outro nome central da organaria mineira, foi o responsável pela
construção do órgão da Igreja do Carmo, em Diamantina, uma das obras mais sofisticadas do período.
Inaugurado em 1787, o órgão da Igreja do Carmo foi descrito por Curt Lange como o mais completo da
América Latina (CECILIO, 2006). Este órgão, inteiramente construído em Minas Gerais, marcou o auge
da organaria colonial na região.
O Órgão de Tubos como Símbolo de Status e Poder
A presença de órgãos de tubos nas igrejas mineiras não era apenas uma questão litúrgica; esses
instrumentos também eram símbolos de prestígio social. A elite mineira, enriquecida pela exploração
de ouro e diamantes, via na construção e manutenção desses instrumentos uma forma de demonstrar
poder e distinção. O patrocínio de um órgão de tubos, assim como o financiamento de obras de arte
sacra, era uma maneira de assegurar um lugar de destaque na sociedade colonial.
Os órgãos mais sofisticados, como o da Igreja do Carmo de Diamantina, eram construídos a custos
elevados e exigiam um alto grau de habilidade técnica. Esses instrumentos, além de sua imponência
visual, ofereciam uma experiência sonora majestosa, que encantava não apenas os fiéis, mas também
os visitantes e viajantes que passavam pela região (CECILIO, 2006).
A Música Sacra e a Vida Social em Minas Gerais
Os órgãos de tubos desempenhavam um papel central nas cerimônias religiosas, elevando a experiência
espiritual dos fiéis. As missas eram acompanhadas por música de órgão, que criava uma atmosfera de
reverência e solenidade. Nas procissões, quando disponíveis, eram utilizados órgãos portativos ou
positivos, mas, na maioria das vezes, eram acompanhadas por bandas marciais. Relatos documentais
registram o uso de órgãos positivos e portativos em igrejas com menos recursos; algumas vezes, esses
instrumentos eram alugados de outras paróquias. Dois registros históricos do uso/aluguel de órgãos
positivos foram encontrados em Ouro Preto (Vila Rica) e em Diamantina (Arraial do Tejuco).
Em Ouro Preto, na Igreja de Santa Efigênia (Capela de Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz),
encontram-se no Livro das despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da
Cruz do Padre Faria (1784-1861) dois registros de aluguéis de um órgão por 6 oitavas de ouro a Antonio
Bento e um pagamento ao organista Caetano Rodrigues da Silva. Em Diamantina, verifica-se no Livro
de Receitas e Despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Terço o registro do aluguel de um órgão no
ano de 1786: “Despendeu e pagou ao fabriqueiro o aluguer (aluguel) do dito órgão”.
José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, um dos principais compositores e organistas de Minas Gerais,
atuou como o primeiro organista do órgão da Igreja do Carmo de Diamantina. Suas composições e
performances ajudaram a definir o estilo musical da região e estabeleceram um legado duradouro para
a música sacra brasileira (CECILIO, 2006).
Além de sua função religiosa, a partir do século XX, os concertos realizados nesses órgãos históricos
tornaram-se eventos sociais importantes, atraindo um público variado, consolidando a reputação dos
músicos e organistas brasileiros e trazendo artistas do exterior.
Organeiros e Organistas: Mestres da Arte
Ao longo do século XVIII, a Capitania de Minas Gerais viu surgir uma rica tradição de construção e
execução de órgãos de tubos. Organeiros como Athanazio Fernandez da Silva e Manuel de Almeida e
Silva tornaram-se figuras essenciais para a manutenção e construção de instrumentos nas igrejas locais
(CECILIO, 2007). Esses mestres artesãos não apenas construíam os órgãos, mas também
desempenhavam funções de manutenção, garantindo que os instrumentos continuassem a funcionar
adequadamente em meio às adversidades climáticas da região.
São atribuídos ao Padre Manuel de Almeida e Silva a construção dos órgãos da Igreja da Ordem Terceira
do Carmo (contratado em 1782) e o órgão da Igreja Matriz de Santo Antonio, Irmandade do Santíssimo
Sacramento (antes de 1778), ambos em Diamantina. Até o presente momento, o órgão da Matriz de
Santo Antonio é considerado o primeiro órgão construído pelo Padre Manuel de Almeida e Silva. Esse
órgão não existe mais, pois foi desmontado quando a antiga Matriz foi demolida em 1930.
Por outro lado, organistas como José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, o mais renomado da época,
desempenharam um papel central na disseminação da música sacra em Minas Gerais. Lobo de
Mesquita foi o primeiro organista do órgão do Carmo de Diamantina e nele compôs grande parte de
sua obra sacra, contribuindo para o enriquecimento da tradição musical local. Ele também atuou em
diversas outras igrejas da região, deixando um legado que ecoa até hoje (CECILIO, 2006).
Desafios e Adaptações na Construção de Órgãos Locais
A construção de órgãos de tubos em Minas Gerais exigiu uma série de adaptações. O clima tropical
impôs desafios significativos, especialmente em relação à durabilidade dos materiais. Os organeiros
locais passaram a utilizar madeiras nativas, como o cedro, que resistiam melhor à umidade e aos insetos.
Além disso, as técnicas europeias de construção de órgãos foram adaptadas para atender às necessidades locais, resultando em instrumentos únicos, que combinavam características ibéricas com soluções
criativas desenvolvidas pelos artesãos mineiros (CECILIO, 2007).
Um exemplo notável dessas adaptações é o órgão da Igreja de Nossa Senhora da Conceição Aparecida,
no distrito de Córregos. Esse instrumento, construído com materiais locais e técnicas adaptadas,
permaneceu em uso até o século XIX e, ao ser estudado pelo organista Handel Cecilio, revelou aspectos
até então desconhecidos da organaria brasileira do século XVIII. (CECILIO, 2007).
A Importância dos Órgãos de Tubos na Cultura Mineira
Os órgãos de tubos não eram apenas instrumentos musicais; eles eram parte integrante da cultura e
identidade da Capitania de Minas Gerais. A música sacra, amplificada por esses instrumentos,
desempenhava um papel central na vida religiosa e social da região. Além de sua função nas cerimônias
religiosas, os órgãos tornaram-se símbolos de prestígio e poder, refletindo a riqueza e a sofisticação da
elite mineira.
A tradição organística desenvolvida em Minas Gerais no século XVIII foi única no contexto colonial
brasileiro. Enquanto outras regiões do Brasil dependiam de importações europeias, Minas Gerais
conseguiu desenvolver uma escola de organaria própria, que combinava influências ibéricas com
inovações locais. Essa tradição não apenas sobreviveu, mas também floresceu, deixando um legado
duradouro na música sacra brasileira.
Conclusão
A cultura dos órgãos de tubos na Capitania das Minas Gerais até o século XIX é um testemunho do florescimento cultural e religioso da região. Esses instrumentos, além de seu papel litúrgico, tornaram-
se símbolos de status e poder, refletindo a complexa interseção entre religião, sociedade e cultura na Minas Gerais Colonial. A tradição organística mineira, desenvolvida a partir de adaptações locais e
influências europeias, deixou um legado duradouro, que ainda hoje é celebrado como parte essencial da
história cultural do Brasil.
*Doutor em Música pela UNICAMP/Universidade de Coimbra
Organista, Pianista e Cravista – Concertista Internacional – Professor de Música
Músico em Eventos e Cerimônias – www.handelcecilio.com