
O combate à desinformação, a regulação da inteligência artificial (IA) e, principalmente, a disputa pelo controle dos fluxos de dados nacionais. CRÉDITOS: Reprodução
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08-05-2025 às 09h40
Alice Castelani de Oliveira*
O Marco Civil da Internet (MCI), Lei n º12.965/2014, estabeleceu os alicerces para a governança digital no Brasil, consagrando princípios fundamentais como neutralidade da rede, privacidade dos usuários e liberdade de expressão online. Considerado pioneiro à época, essa norma surgiu como resposta à necessidade de regulamentar o ambiente digital sem cercear a inovação. Esse arcabouço jurídico foi complementado pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei nº 13.709 de 2018, que introduziu mecanismos para a proteção de informações pessoais e responsabilizou agentes pelo tratamento inadequado de dados. Apesar desse avanço normativo, o Brasil ainda ocupa o segundo lugar no ranking global de ataques cibernéticos.
Esse cenário revela uma contradição alarmante: apesar do avanço na construção de normas legais em matéria de governança digital, na prática o Brasil enfrenta fragilidades operacionais críticas na proteção de sistemas e dados.
Essa contradição se torna ainda mais complexa quando consideramos os novos fronts de batalha digital: o combate à desinformação, a regulação da inteligência artificial (IA) e, principalmente, a disputa pelo controle dos fluxos de dados nacionais.
Nesse contexto, o Brasil está no centro de uma guerra silenciosa pela sua soberania digital, em que está em jogo não apenas a proteção de informações, mas a capacidade de determinar autonomamente como esses ativos estratégicos são utilizados e por quem.
Os dados produzidos em plataformas digitais são a nova moeda global, com importância estratégica tanto para Estados quanto para empresas. No caso dos Estados, em todas as esferas de poder (Federal, Estadual e Municipal), podemos aproveitar o acesso a diferentes bancos de dados para reduzir custos operacionais, melhorar a prestação de serviços públicos, combater fraudes e tomar decisões baseadas em evidências de modo a tornar mais eficiente a gestão pública.
Mecanismos brasileiros como o Cadastro Único (CadÚnico), o DataSUS e o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (SINESP) são alguns exemplos de bancos de dados que ajudam a melhorar a formulação de políticas públicas no país atualmente. No caso das Empresas, os bancos de dados são utilizados para mapeamento de mercado, direcionamento de vendas, treinamento de IA, desenvolvimento de produtos e inovação tecnológica.
Atualmente, um dos grandes desafios dos Estados, sobretudo do Brasil, é assegurar a segurança cibernética e a soberania dos dados nacionais, impedindo que informações sensíveis sejam acessadas por ações de espionagem estatal, que visam frequentemente intervenção em políticas internas e desestabilização institucional dos países.
Outro desafio, que se destaca nos noticiários hoje, é a disputa entre corporações que dominam os ramos de tecnologia (ex.: Amazon, Apple, Google, Meta e Microsoft) por acesso a largos mercados consumidores – uma batalha que frequentemente coloca essas gigantes em rota de colisão com os Estados nacionais.
Como acompanhamos no caso do X (antigo Twitter) no Brasil e da Meta na Europa, as big techs têm resistido a qualquer tentativa de regulação estatal sobre o funcionamento de plataformas de mídias sociais e serviços digitais, utilizando estratégias que vão desde intensos lobbies políticos até ameaças de interrupção dos serviços prestados.
Entretanto, a regulação dessas plataformas é fundamental para que os Estados nacionais sejam capazes de garantir a segurança dos dados produzidos pela população nacional, de madeira a garantir que esses largos bancos de dados não sejam manipulados contra os interesses nacionais ou de modo que prejudique as empresas nacionais criando um contexto de competição injusta.
Observamos que a resistência das big techs à regulação cria um falso paradoxo ao opor a proteção de cidadãos e empresas nacionais à defesa do livre mercado e da liberdade de expressão. Na realidade, esses objetivos não são excludentes, desde que estabelecidos sob parâmetros claros que equilibrem inovação, segurança digital e direitos fundamentais.
O que esse paradoxo procura encobrir é a disputa geopolítica por dados e o objetivo de manutenção do oligopólio digital que concentra dados, inovação e poder econômico em poucas corporações estrangeiras, muitas vezes em detrimento do desenvolvimento tecnológico soberano dos países. O caso brasileiro torna-se emblemático nesse cenário, em que a disputa por regulação equilibrada esbarra tanto nos interesses desses gigantes globais quanto na necessidade de proteger a privacidade dos cidadãos e fomentar uma economia digital nacional competitiva.
Para garantir segurança cibernética e soberania dos dados, alguns países decidem por políticas nacionais de bloqueio completo do uso de algumas plataformas em território nacional.
Esse é o caso da China, que bloqueia o uso de WhatsApp, Instagram e Facebook, e da Índia, que bloqueia o uso do WeChat. Essas políticas adotam uma estratégia dupla: por um lado, procuram proteger os lucrativos mercados de dados das empresas nacionais contra concorrentes externos; por outro, serve como instrumento de pressão geopolítica, em que o acesso ao mercado de dados interno se torna moeda de troca em negociações comerciais e políticas.
O Brasil não precisa necessariamente seguir esse mesmo modelo de política, mas é fundamental que o país fortaleça suas políticas de segurança cibernética para proteger os dados nacionais de modo a garantir sua soberania. Isso tornar-se mais relevante uma vez que a população brasileira está entre as dez maiores do mundo, o que consolida o território nacional como um mercado de alto valor geopolítico, tornando-se alvo prioritário na disputa global por influência digital.
* Alice Castelani de Oliveira é doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Mestra em Segurança Internacional e Defesa pela Escola Superior de Guerra (ESG).
Contato: alicecastelani@gmail.com