Loucos por Arte, Equipe Terapia Social e Padre Prim, numa roda de conversa sobre Desabrigados. Créditos: Divulgação
12-12-2025 às 10h29
Marcos de Noronha*
No “Loucos por Arte” deste ano, realizamos um debate sobre os desabrigados. Antes dele, às 14 h, fizemos uma reunião no local do evento com representantes do Recanto Silvestre — clínica de reabilitação dirigida pelo experiente padre Prim — e com a equipe de Terapia Social. A conversa concentrou-se nos casos de dependência química. Entre os usuários da clínica, alguns já haviam vivido em situação de rua, e foi gratificante ouvir seus depoimentos.
Meses antes, durante uma sessão de Terapia Social no Recanto, impressionei-me com relatos sobre a vida nas ruas: em um grupo de 15 pessoas, seis haviam passado longos períodos nessas condições. Um deles destacou a “liberdade” e os recursos de que dispunha:
“Lá eu tinha tudo: liberdade, droga, chuveiro para tomar banho, comida e, sobretudo, nenhuma pressão sobre mim.”
Perguntado por que saíra das ruas para se tratar, respondeu:
“Se continuasse lá, eu morreria.”
Quando discutimos a internação involuntária (sem consentimento do paciente), um usuário afirmou que, no grau de dependência em que se encontrava, apenas essa medida interromperia o ciclo autodestrutivo. Disse que, em determinado estágio do uso de drogas, o indivíduo se torna incontrolável e ninguém na rua o consegue salvar. Muitos colegas concordaram. No Recanto Silvestre, onde também trabalham dependentes em recuperação, a internação é negociada: como não há muros de confinamento, o paciente permanece apenas se optar pela internação voluntária.
Organizamos o debate no novo cinema do Centro Integrado de Cultura (CIC) exibindo vídeos da campanha da Prefeitura de Florianópolis. Além dos filantropos padre Prim e padre Wilson Groh (que não pôde comparecer), convidamos o secretário da Saúde, Almir Gentil, e o secretário-adjunto de Assistência Social, Aníbal Julian Gonzales, acompanhado da secretária Luciane dos Passos. A campanha municipal segue estratégia semelhante à de Curitiba, Balneário Camboriú e Chapecó. Essas ações geram polêmica: de um lado, quem admira os resultados; de outro, quem as chama de “higienização da cidade”.
Cidades do mundo inteiro viram aumentar o número de pessoas em situação de rua; o tema tornou-se um desafio. No Brasil, contudo, a discussão mergulhou na polarização: ações federais ineficazes, em nome do “politicamente correto”, contrastam com iniciativas municipais do sul do país que vêm obtendo resultados — tema central do debate. Curiosamente, reportagem da Rede Globo veiculada no fim de semana seguinte tentou mostrar o contrário. Contrariando a ética jornalística, escolheu entrevistados sem checar informações e sequer apresentou o trabalho desenvolvido na Passarela Nego Querido, defendendo a tese de “higienização social”.
O viés militante da matéria ignorou fatores que levam à situação de rua — falta de moradia, desemprego, pendências judiciais e, sobretudo, transtornos mentais. A dependência química é predominante nessa população, rompendo vínculos familiares e levando ao abandono. O que fazer diante desse quadro? Serviços efetivos, como o da prefeitura de Florianópolis, apostam em ações personalizadas — que eu e minha equipe conhecemos de perto na semana seguinte.
Na Passarela Nego Querido, constatamos: das 660 pessoas atendidas, apenas 3 foram internadas involuntariamente; 120 foram inseridas no mercado de trabalho; todas recuperaram a dignidade, com local para dormir e se alimentar. E quando o morador, acometido por transtorno psiquiátrico, rejeita tratamento, opta pela adicção ou pela delinquência? E quando se trata de idoso em cadeira de rodas, abandonado pela família?
Leandro Lima, coordenador do programa Rumo Certo, elogiou o secretário Almir Gentil e explicou a estratégia personalizada, fundamentada em disciplina: sabem quem entra e sai, quem se alimenta, pernoita ou participa das oficinas de capacitação profissional. Há cursos de barbearia, garçom, pet shop, limpeza, marcenaria e até a EJA.
Narrativas da desacreditada Rede Globo, reproduzidas por outros veículos e por pessoas contaminadas pelo “vírus da polarização” (tese que desenvolvo em Polarização – Sintoma de uma Doença Social, no prelo), omitem a realidade para impor versões. Naquele dia, 14 frequentadores foram entrevistados pelo Grupo Koerich, onde já trabalham ex-usuários em vias de conquistar moradia fora da Passarela.
A sociedade local apoia o projeto por meio da Aliança Floripa e do CDL: repasses financeiros permitem contratar recuperandos para “despichar” a cidade. Eles próprios se tornam embaixadores da ordem, convencendo pichadores a mudar de vida. Todos têm carteira assinada e direitos garantidos.
O desafio é respeitar a liberdade individual e, simultaneamente, tutelar o direito dos cidadãos. Florianópolis acertou — como outras cidades do sul — ao adotar ações personalizadas. Na Cracolândia, em São Paulo, a estratégia recente também se baseou na identificação individual dos usuários e no combate ao crime organizado e à especulação imobiliária.
Mesmo em países desenvolvidos, que dispõem de redes de proteção robustas, o problema persiste, lembrou Almir Gentil. Nossa equipe trabalha focada em laços comunitários: cria ambientes “continentes” — como no Hospital da Polícia Militar há 25 anos. Abordagens fragmentadas geram soluções temporárias; abordagens humanizadas, conectivas e reparadoras produzem resultados duradouros.
É crucial encontrar espaço nas famílias e comunidades para prosseguir o tratamento após a internação, pois recaídas são frequentes. Esclarecer a sociedade, trazendo a visão médico-psicológica, é essencial. A psiquiatria cultural ajuda a compreender tanto o fenômeno quanto a polarização que obscurece o bom senso: defender a permanência nas ruas como “respeito à liberdade” é, na verdade, desconhecimento.
A desonestidade de veículos militantes, que manipulam narrativas, mina sua credibilidade — a exemplo do Fantástico — e reforça sentimentos negativos na população. No debate do CIC discutimos conceitos como “amor exigente”: acolher, mas exigir contrapartida de quem busca recuperação.
Se direitos coletivos não podem ser esmagados por direitos individuais, quais gestões já alcançaram equilíbrio e resultados concretos? Convido leitores a enviar exemplos ao jornal. Nos anos 1980, em Ferrara (Itália), a Psiquiatria Democrática atraía desabrigados a centros comunitários, identificava-os individualmente e promovia reinserção — prática que já se aproxima do meio século.
Desafio-nos, pois, a combinar honestidade intelectual, ações personalizadas e políticas públicas eficazes, devolvendo dignidade a quem vive nas ruas e segurança a quem circula pela cidade.
*Marcos de Noronha é médico psiquiatra titulado pela Associação Brasileira de Psiquiatria e Conselho Federal de Medicina

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