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17-09-2025 às 08h54
Gisele Bicalho*
Os dedos das mãos não são iguais. Minha avó dizia isso; minha mãe também. Recentemente ouvi de um amigo querido. Ele se referia à escolha da mulher que é sua parceira de uma vida toda. Daqui a alguns dias o casal vai comemorar Bodas de Ouro. Mas a festa vai ter que ser adiada. A data coincide com outro compromisso inadiável.
• A comemoração vai acontecer em outro dia qualquer, me disse ele.
Calma! Essa fala dele não é motivo para cancelamento. A metade da laranja só quis dizer que o amor não precisa de calendário. Além de romântico, ele demonstrou ser também muito criativo. A ideia para a festança surgiu durante uma visita à Igrejinha da Pampulha. Aquela curva modernista da lavra de Oscar Niemayer inspirou outra: a de recasar com a mesma mulher, com a mesma roupa, meio século depois. Uma calça clara e uma camisa vermelha de manga curta, porque, na época, não havia dinheiro nem para um terno. E a esposa, com seu vestido azul, claro como o céu de setembro.
• Mas, e os dedos das mãos?
Tem a ver com o que ele me confidenciou: antes do namoro, se pudesse escolher entre as irmãs de esposa, teria casado com a mais velha. Não por paixão, mas por compatibilidade de gênios. A primogênita (ops!) era aérea, leve, sem picuinhas. Uma mulher que vivia em paralelo, sem cobrar, sem corrigir, sem amolar. Um dedo que não cutuca, só acompanha.
Para meu espanto, lá veio ele com a novidade: essa história é famosa na família e a cada vez que é contada a esposa apenas sorri. No máximo, o chama de cara de pau. Sabe que se trata de uma “avaliação técnica, porque, no fundo, ela sabe o dedo que ele escolheu, ou que o escolheu, era aquele que, mesmo sendo diferente, encaixava. Era cúmplice. Era parceria. Era o dedo que, junto ao seu, formava o gesto mais bonito: o de seguir em frente.
E a partir dessa história de família a caixa da memória foi destampada e ele passou a citar as primas, as irmãs, mulheres que ao longo da vida cruzaram o seu caminho. Uma, sempre rindo, sempre achando graça do mundo pela janela. A outra que via a vida como um espetáculo cômico. E outras, mais sisudas, mais cheias de verdades e cobranças. Cada uma, um dedo. Cada uma, uma função.
No fim, ele percebeu que o segredo não era escolher o dedo mais bonito, mais forte ou mais leve. Era aceitar que, para segurar o copo da vida, todos são necessários. E que, mesmo com diferenças, é possível brindar meio século de convivência com uma camisa vermelha, um vestido azul e uma história que não cabe em nenhuma data qualquer.
Na minha família grande e barulhenta essa sabedoria ancestral (ou seria verdade universal?), salta aos olhos. É como se fosse uma colcha de retalhos feita de pedaços que, à primeira vista, parecem não combinar, mas que juntos formam um tecido cheio de história, afeto e identidade. Os laços de sangue podem unir, mas são as diferenças que tornam cada convivência única e, muitas vezes, divertida.
Nessa colcha os sonhadores contrastam com os pragmáticos. Se há quem viva com a cabeça nas nuvens (ou seria nos doramas?) sonhando com viagens à Ásia, com cafeterias que pretende abrir, com aquele curso de gastronomia sempre adiado, há quem calcule tudo: quanto custa, quanto rende, quanto tempo leva, e vale mesmo a pena? É aquele que sabe aonde lhe aperta o calo.
Há ainda os extrovertidos e os mais reservados. Se tem o que chega fazendo festa e colecionando amigos, há quem observe o cenário em silêncio, que fala pouco, mas que quando fala é certeiro.
E se você quer intelectuais e mais práticos, temos. Uns vivem cercados de livros, discutem filosofia no café da manhã e têm opinião sobre tudo, até sobre o uso da vírgula. Esse é aquele que desconhece a tal “pedagogia do amor”. Outros resolvem problemas com uma chave de fenda, sabem consertar o chuveiro, fazer um arroz soltinho e não têm tempo pra abstrações.
Tem quem abrace, chora, manda mensagem dizendo “te amo” sem motivo. E tem o que demonstra amor lavando a louça, resolvendo pepinos, estando presente sem precisar dizer nada. Um é coração na boca, o outro é coração nas ações.
Ah, não acabou. Nessa família cabe mais. Há uns que reinventam receitas, decoram a casa com objetos inusitados, têm ideias fora da curva. Outros mantêm as tradições, seguem receitas da avó à risca e acreditam que “em time que está ganhando não se mexe”.
Por fim, tem quem é mais impulsivo. Aquele que decide tudo no calor da emoção. Compra passagem de avião sem pensar duas vezes, é capaz até de mudar de cidade por um amor. E tem quem analise, planeje, consulte três planilhas antes de dar um passo.
Isso é ruim? De jeito nenhum. Essas diferenças convivem em harmonia, o que não quer dizer que não existam atritos. Não se assuste. Não é nada bélico. Estou falando do atrito que ensina, que molda, que faz crescer. Porque numa família grande ninguém é igual, mas todos são parte do mesmo quebra-cabeça. E é justamente essa mistura que faz com que, mesmo com brigas, picuinhas e opiniões divergentes, a mesa do almoço de domingo continue sendo o lugar mais cheio de vida. Servidos?
* Gisele Bicalho é jornalista