
O saber vem pelo ouvir com interesse e paciência - créditos: divulgação
23-08-2025 às 09h09
Prof. Marcelo Galuppo[1]
Suponha que você precise contratar um motorista particular. É possível que busque sugestões de amigos, ou que peça a uma empresa de recrutamento para indicar alguém. Suponha que haja quatro pessoas interessadas. É provável que as entreviste, e que, ao final, prefira uma delas. Mas você não irá contratá-la imediatamente: para avaliar suas habilidades técnicas, você lhe pediria para conduzí-lo por uma rua de trânsito intenso, para estacionar o carro em uma vaga apertada e para levá-lo de casa a um lugar qualquer. Nossas opiniões são referências importantes para nossas escolhas e, na maioria das vezes, têm a palavra final na direção da vida.
Mas suponha que você não apenas pense ser rico, mas que o seja realmente. Você irá contratar um piloto para seu novo Embraer Lineage 1000E. É possível que também recorra a recomendações de amigos ou a empresas de recrutamento, e que entreviste alguns candidatos. Mas isso avalia muito mais habilidades sociais do que habilidades técnicas de seu futuro empregado, e você não tem como pedir para ele fazer um test drive por duas razões. A primeira é que você não possui conhecimento técnico suficiente para discriminar o bom do mal piloto. A segunda é que, se situações corriqueiras são boas para avaliar o motorista, são as excepcionais que avaliam o bom piloto (o bom piloto não é apenas o que evita a turbulência, mas o que consegue minimizar suas consequências).
O mesmo ocorre com médicos. Para a maioria de nós, é difícil avaliar suas habilidades e conhecimento. Quando se trata de conhecimentos técnicos de campos cada vez mais complexos, é impossível decidir sobre a qualidade do saber de alguém com base em nossa opinião ou na de nossos conhecidos. O fato de um médico ter curado a pneumonia de alguém não garante que vá curar a colite de outro, e a correção do diagnóstico em um caso não garante acerto futuro. Seria um erro grave basearmo-nos apenas no desempenho passado. Como, então, escolher um bom piloto ou um bom médico? É aí que entram em cena as instituições.
A ANAC certifica a capacidade de alguém pilotar adequadamente uma aeronave, e associações médicas certificam quem está mais apto a curar determinada doença. Às vezes, as instituições cooperam entre si para avaliar aquilo que não podemos avaliar por nós mesmos (por exemplo, o título de bacharel em Direito conferido pela instituição universidade soma-se ao controle exercido pela instituição OAB através do exame de ordem e depois por suas comissões), agregando a função controladora à função certificadora que lhes é inerente. É um bom flautista que pode dizer quem é um bom flautista.
Isso quer dizer que devemos silenciar nossas próprias opiniões para ouvir apenas a opinião de especialistas em todos assuntos? Há duas respostas para isso, a tecnocrática e a democrática.
A tecnocrática afirma que nossas escolhas devem sempre ser orientadas pelo saber de um especialista. Essa era a opinião aristocrática de Platão, que se perguntava porque não confiamos em nosso saber quando quando estamos doentes mas nos deixamos governar pela massa de seres humanos ignorantes que formam as maiorias na política. Essa era também a opinião de David Ricardo. A diferença entre eles é que Platão pensava em sociedades governadas por sábios, excluindo outros indivíduos do poder decisório, enquanto Ricardo pensava que as sociedades modernas não são formadas de poucos sábios (que conhecem todos os assuntos), mas de inúmeros especialistas (que conhecem uma pequena extensão da vastidão do que sabemos, mas em profundidade) que cooperam entre si através da complementaridade de seus saberes. A concepção tecnocrática pressupõe que haja algo de misterioso no conhecimento, e que aqueles que não foram iniciados não devem opinar: deixe aos economistas regularem a economia.
A democrática é, por outro lado, a de Aristóteles, mas também de Thomas Jefferson e de Mortimer Adler. Aristóteles pensava que era preciso diferenciar conhecimentos técnicos, como a medicina, dos conhecimentos da ordem da ação humana, integrados pela ética e pela política, partilhados por todos os seres racionais capazes de prever as consequências de suas ações e de escolher meios adequados para alcançá-los, estabelecendo um projeto para isso. Jefferson e Adler compartilhavam a convicção de que, em uma sociedade democrática, escolhas políticas devem ser realizadas por aqueles que são afetados por elas, ou seja, pelo próprio povo (e por isso uma ampla extensão de conhecimentos deveria estar acessível ao povo para que escolhesse bem seu próprio futuro). Inclino-me para essa posição, porque não gosto que ninguém escolha por mim como devo viver, mas ela só é possível se houver uma ampla liberdade de expressão, entendida ao mesmo tempo como liberdade de ouvir o que se quer e de falar o que se deseja.
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG, autor de Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, pela editora Citadel. (Para adquirir este e outros livros, acesse www.marcelogaluppo.com.br).