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Odete Almeida Roitman

Nada mais fantasioso nem ilusório, embora os mortais comuns tenham imensa dificuldade de entender como a Política se processa e o quanto de desprendimento e generosidade, tolerância e abertura, ela exige daqueles que exercem mandatos políticos

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17-07-2024 às 09h:45

José Luiz Borges Horta*

É curioso ver que entre o mundo da vida e o mundo acadêmico muitas vezes existem inúmeras diferenças. No campo da Política, essas diferenças costumam tornar particularmente divertido acompanhar a reação dos cientistas e analistas políticos face à realidade da Política, que muitas vezes não combina com as metodologias laboratoriais induzidas pelas estruturas de pensamento escolhidas como “marco teórico”.

É assim que podemos divisar uma intensa e clássica separação entre o que dizem os experts em “politologia” e o que sabem as velhas raposas políticas – e muitas vezes ensinam por ditados e provérbios, parábolas ou ações exemplares.

Na Política, é consagrado o entendimento de que não pode haver ninguém tão amigo que não possa vir a ser adversário, nem ninguém tão inimigo que não possa vir a ser aliado, pressuposto aliás da democracia, que não consegue sobreviver fora do universo do livre debate das diferentes ideologias.

Boa parte dos cientistas, no entanto, permanecem alienados da Política real, ou “realpolitik”, iludidos por um mundo de “amigos e inimigos” (fantasia teórica atribuída a um festejado jurista do Terceiro Reich nazista, Carl Schmitt), que em sendo marcado pelo afeto ou desafeto entre as lideranças políticas e também entre suas bases, torna-se um jogo ou batalha de vida e morte entre o bem e o mal.

Nada mais fantasioso nem ilusório, embora os mortais comuns tenham imensa dificuldade de entender como a Política se processa e o quanto de desprendimento e generosidade, tolerância e abertura, ela exige daqueles que exercem mandatos políticos: conta-se que a sempre querida Dona Mora, esposa do grande timoneiro da democracia, Ulysses Guimarães, costumava admoestá-lo reclamando pela presença eventual de adversários políticos em sua casa ou em suas reuniões. E Doutor Ulysses sempre respondia: “em Política, ódio, só fingido”.

Ciro Gomes, nas recentes e odiosas eleições presidenciais de 2022, em debate televisivo, foi bastante claro quanto ao ódio político vazio, oco, desnecessário e sem sentido, que não tem espaço e não pode ter espaço na vida pública. Odiar sem quê nem para quê não faz sentido, ódio pelo ódio não é uma postura política nem ideológica. É, como sempre dizemos, uma mera e ridícula postura moralista.

Carlos Lacerda, político de verve vibrante e oratória retumbante, que participou do Movimento de 1964, insurgiu-se contra os descaminhos representados já pelo abominável Ato Institucional n. 2, de 27.10.1965, que, em seu art. 18, extinguiu os partidos políticos brasileiros, inclusive a gloriosa União Democrática Nacional — algo inaceitável para Lacerda. Como Lacerda considerava que toda briga política era motivada pelos interesses populares, também em nome do povo buscava reconciliar-se, e, em 28.10.1966, lançou a Frente Ampla pela Redemocratização do Brasil, indo na sequência visitar Juscelino Kubitschek no seu exílio em Portugal e João Goulart no seu exílio no Uruguai — Lacerda, JK e Jango se uniram contra o regime, o que de imediato gerou a cassação de Lacerda e, logo antes da Anistia, as mortes suspeitas de todos os três em um espaço de poucos meses.

Sabemos que, nos piores momentos do Regime, dois políticos se assentavam em um setor reservado da sala dos professores da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie de São Paulo, onde lecionavam tanto o Presidente do MDB, Ulysses Guimarães, professor de direito internacional público, quanto o então presidente da Arena — e o intervalo das aulas era o momento discreto e relevantíssimo para o Brasil, no qual os presidentes dos dois partidos políticos existentes dialogavam a sós e longe das vistas políticas e públicas.

Na Era Pós-Ideologias e, especialmente em decorrência da subversão do fim da História e da falácia do fim do Estado, no entanto, o fazer da política vem sendo progressivamente envenenado pelos reiterados processos de “demonização” ou “vilanização” dos adversários que se são nossos adversários é por que são “moralmente inferiores”. Se o discurso político deixa de ser ideológico e passa a ser moral, não se pode fazer Política, mas apenas montar cenas artificiais para fingir que se está fazendo política.

Mesmo a arte, no nosso tempo, como a religião ou até a filosofia recebem os ecos do moralismo censurante, alienante e, como se diz, “cancelante”. Cada palavra que dizemos, escrevemos, pensamos, rogamos, cada peça artística produzida pode, do absolutamente nada, gerar uma reação odiosa nos espaços privados das redes “sociais” e, portanto, produzir efeitos os mais negativos possíveis na vida de qualquer pessoa.

Os intelectuais mais instigantes costumam não se conter em áreas estritamente disciplinares, desenvolvendo muitas vezes olhares de fronteira, que ultrapassam limites epistemológicos e alcançam a cultura, especialmente a que nos é fundante, muitas vezes se inspirando na arte ou na literatura para encontrar inspiração para tratar das questões que se colocam em debate. José Alfredo de Oliveira Baracho, um dos maiores intelectuais da de toda a história da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, tinha essa característica muito evidente: as Ciências do Direito e do Estado jamais o contiveram, uma vez que sua condição de cinéfilo e Filósofo da Cultura era amplamente compartilhada com todos e todas que com ele conviveram — a paixão pela Academia, pelo Direito e pelo Cinema também foram herdadas pelo professor José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, aliás.

Não só o cinema permite acesso simbólico a inúmeras dimensões da vida humana como, muito especialmente no caso brasileiro, as novelas produzidas pela nossa Rede Globo, que sempre foram um instigante espelho e um provocante temário para o nosso país. É possível contar a história do Brasil contemporâneo através das mais importantes novelas produzidas, que muitas vezes conseguem capturar o “Espírito do Tempo” (Zeitgeist) e elaborá-lo em dimensão esteticamente mais agradável do que certas cenas protocolares de uma vida política emasculada.

Por coincidência, para quem nelas acredita, os Estúdios Globo produziram duas telenovelas que marcaram os anos 1980 de modo muito especial: Dias Gomes nos ofereceu em “Roque Santeiro” uma releitura muito sagaz da brasilidade e Gilberto Braga propôs uma crítica radical ao país com “Vale Tudo”. Quem viveu nos anos 1980 brasileiros sabe a importância cultural das duas novelas, dos dois autores e dos elencos fabulosos que construíram as obras primas daquela década.

A mídia vem especulando reiteradamente sobre a preparação de uma nova versão de Vale Tudo em comemoração aos sessenta anos da Globo, com o protesto de muitos e a expectativa de milhões. Não é prática nova retorna às novelas muito bem construídas em suas tramas e reelaborá-las, como se fez com novelas notáveis como “A Viagem” ou “Éramos Seis” e muito antes com a novela que terá sido a mais impactante da história, porquanto sucesso primeiro como radionovela e depois telenovela: “O Direito de Nascer”.

Vale Tudo foi um espetáculo de proporções gigantescas com uma crítica duríssima à ausência de autoconsciência na brasilidade. Indiscutivelmente, a personagem icônica da novela coube a Beatriz Segall, quem enfeitiçou o Brasil com a vilania debochada e invencível de sua Odete Roitman. É imensamente difícil imaginar as falas de Odete sendo repetidas nos dias de hoje, uma vez que todas elas eram eivadas de preconceitos, sobretudo de natureza econômica. Uma de suas primeiras falas, ainda sou capaz de me lembrar, era para afirmar que o local mais ao sul do mundo onde se podia estar com razoável decência seria a sereníssima Veneza. Como é que este mundo todo cheio de “não me toques” vai conseguir ouvir Odete Roitman? Que atriz poderá ser suficientemente madura e forte para suportar o ódio que inevitavelmente será dirigido à personagem e à atriz que a interprete pelos canceladores a isso treinados pelas mídias “sociais”.

A coincidência é que duas excepcionais atrizes estiveram em papéis de destaque nas duas novelas mais importantes dos anos 1980. Em Roque Santeiro, havia uma viúva do personagem título, que era sem ter sido, a Viúva Porcina, certamente a personagem feminina mais importante da novela, assim como havia uma jovem senhora que teria sido curada pelo personagem título, daí girando o mito da devoção e do enriquecimento da cidade, Lulu das Medalhas. Em Vale Tudo, a Viúva Porcina seria Rachel Acioli, talvez a maior vítima de Odete Roitman, a consogra de Odete e mãe de Maria de Fátima, que disputou com Odete o papel de grande vilã da novela, enquanto Lulu passaria a ser Leila, a segunda esposa de Marco Aurélio, primeiro marido de Heleninha, a filha mais velha de Odete.

Não há quem não saiba a quem me refiro: Regina Duarte e Cássia Kiss. Uma septuagenária e uma sexagenária, ambas pertencentes a papéis muito importantes no elenco e no enredo original de Vale Tudo. Ambas — Regina Duarte e Cássia Kiss — são mulheres extremamente capacitadas profissionalmente e notavelmente corajosas no trato com perseguições e patrulhas ideológicas e moralistas, o que as permitiria, tanto a uma quanto a outra, lidarem perfeitamente bem com o inevitável sentimento primitivo que parte dos milhões de telespectadores da Globo teria ou tenham contra Odete Roitman e que precisarão de uma atriz tarimbada e talentosa para suportar o peso emocional de uma vilã inigualável.

Marília Pêra, outra gigantesca Diva da televisão, confessou ter sofrido terrivelmente com seu papel na minissérie “O Primo Basílio”, que a levava a um estado profundo de esgotamento emocional e tristeza durante o período das gravações. Atuar, entregar-se a uma personagem, é um gesto de extrema coragem e nem sempre há preparo profundo para lidar com a rejeição, com o ódio, com a agressividade, com a vilanização feita contra tudo aquilo que pareça ou seja diferente daquilo que o rebanho, como dizia Nietzsche, com sua moral depravada, suponha ser o “certo”.

Na vida real, não existem vilões — ao menos não tão verdadeiros quanto os vilões literários e novelescos. Se admitirmos a Liberdade e a democracia como fundamentos para a vida humana, temos de aceitar o “direito à política” de todo e qualquer homem e mulher viventes, o que inclui aqueles que nos parecem os mais repulsivos ou odientos. Vilanizar ou demonizar adversários é uma estratégia abominável, típica de quem não sabe argumentar e prefere valer-se da falácia argumentativa “ad hominem”: se vem daquele ser, é necessariamente ruim.

A verdade é que a voz e o pensamento de cada um e de cada uma de nós tem muito valor e nenhum de nós tem o direito de julgar e muito menos condenar aos demais. Se não fôssemos humanos, seríamos perfeitos; mas somos demasiado humanos, logo somos todos e todas repletos de virtudes e de vícios, porque temos em nós luzes e sombras.

Eu e a minha geração, que assistiu Vale Tudo ao vivo — e debatíamos cada fala e cada crítica, como bem se lembra o também cinéfilo e jurista Bruno Resende Rabello, a quem dedico este texto e com quem pretendo assistir ao primeiro capítulo da nova Vale Tudo — aguardamos imensamente para ver Odete Roitman mostrar novamente ao mundo o que é e como é um vilão de verdade.

*José Luiz Borges Horta, 53, é Professor Titular de Teoria do Estado na Universidade Federal de Minas Gerais e professor visitante sênior PrInt-CAPES na Facultat de Filosofia da Universitat de Barcelona.  Noveleiro desde a primeira versão de “A Viagem”, em 1975-6. Contato: zeluiz@ufmg.br

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