Reflexões de morte e vida - créditos: A mente é maravilhosa
02-11-2025 às 10h46
Raphael Silva Rodrigues
A questão da morte é um fio condutor que atravessa toda a tradição filosófica, conectando pensadores de Platão a Heidegger. É um tema que, paradoxalmente, nos assusta e nos cativa. Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do século XIX, foi categórico ao afirmar que a filosofia tem na morte sua principal fonte de inspiração. De certa maneira, é a nossa finitude que nos impulsiona a buscar o saber.
Nesse sentido, faço um convite: feche os olhos por um instante. Tente resgatar a memória mais nítida de sua infância. O cheiro da grama molhada depois da chuva, o toque áspero da mão do seu avô, o som distante de uma canção que marcava os domingos. Onde está esse momento agora? Ele existe, vívido, em sua mente, mas é intocável, como fumaça. Ele foi um sopro. E, no entanto, ele o constitui.
Vivemos sob a tirania de uma ilusão coletiva: a de que a vida é uma construção sólida, um projeto a ser erguido tijolo por tijolo, com a promessa de um pináculo de realização em algum futuro distante. Somos ensinados a ser arquitetos de nossas próprias catedrais (de carreiras, de patrimônios, de legados, e etc.). Mapeamos cada passo, calculamos cada investimento e adiamos a alegria para o dia em que a obra estiver, finalmente, completa.
Mas a vida, em sua verdade mais crua e poética, não é uma catedral. A vida é um sopro.
Essa metáfora, tão antiga quanto a própria consciência humana, é frequentemente relegada a discursos fúnebres ou a momentos de crise existencial. No entanto, ignorá-la no cotidiano é o nosso maior equívoco. Um sopro é breve, intangível e irrepetível. Não pode ser engarrafado, acumulado ou guardado para depois. Sua força não está na permanência, mas na sua própria e fugaz existência. Ele simplesmente é, e então, se dissipa no ar.
Nossa sociedade moderna declarou guerra à essa efemeridade. A corrida incessante por produtividade, a obsessão pela juventude eterna, o acúmulo de bens que prometem preencher vazios e a curadoria de uma vida perfeita nas redes sociais são sintomas de uma mesma doença: o medo pânico da transitoriedade. Tentamos, desesperadamente, transformar o sopro em pedra. E, nesse processo, esquecemos de respirar.
Passamos os dias gerenciando o futuro e catalogando o passado, enquanto o presente (o único lugar onde a vida de fato acontece) nos escapa como areia fina entre os dedos. Estamos tão ocupados construindo nossa catedral que não percebemos as fundações ruindo, corroídas pela ausência. A ausência de presença, de conexão, de sentido.
A questão que se impõe, portanto, não é como podemos evitar que o sopro termine, mas como podemos honrá-lo enquanto ele dura. Como podemos viver de uma forma que a intensidade de cada instante prevaleça sobre a ansiedade de sua duração?
Reconhecer a vida como um sopro não é um convite ao niilismo ou à imprudência. Pelo contrário, é o mais poderoso chamado à responsabilidade que existe. Se nosso tempo é finito e precioso, cada escolha, cada palavra e cada silêncio ganham um peso monumental. A pergunta “o que farei com este dia?” deixa de ser uma questão de logística e torna-se uma questão de essência.
O paradoxo é que nossa busca por imortalidade nos distrai do que verdadeiramente nos eterniza. Não são os cargos que ocupamos, as contas bancárias que possuímos ou os monumentos que erguemos em nosso nome. A verdadeira imortalidade reside nos traços que deixamos nos outros. É o eco de uma risada, a memória de um conselho sábio, o conforto de um abraço em um momento de dor. É a forma como o nosso sopro se entrelaça com o sopro de outras pessoas, criando uma melodia que perdura muito depois que o silêncio se instala.
Observemos a nossa rotina. Estamos trocando moedas de tempo (um recurso não renovável) por qual tipo de riqueza? A validação de um “like” em uma foto cuidadosamente encenada? A satisfação fugaz de superar um colega de trabalho? A compra de um objeto que perderá seu brilho em semanas?
Estamos nos tornando especialistas em “estar ocupados”, mas amadores na arte de “estar presentes”. Conversamos com nossos filhos enquanto a mente planeja a reunião de amanhã. Jantamos com nossos parceiros enquanto a tela do celular nos rouba o olhar. Caminhamos por uma rua bonita, mas nossa atenção está sequestrada por um podcast sobre como otimizar ainda mais nosso tempo. Vivemos uma vida em segundo plano.
A inversão necessária é radical e, ao mesmo tempo, simples. Trata-se de desviar o foco da construção da catedral para a apreciação do ar que a preenche. Significa encontrar o sagrado no ordinário: na pausa para um café sem pressa, na conversa em que se ouve mais do que se fala, no ato de perdoar uma ofensa antiga, na coragem de dizer “eu te amo” sem esperar uma ocasião especial.
Esses momentos não rendem certificados nem promoções. Eles não podem ser exibidos como troféus. São invisíveis, silenciosos e, ainda assim, são a matéria-prima de uma vida bem vivida. São os instantes em que, de fato, sentimos o sopro em vez de apenas teorizar sobre ele. Então, como começar essa revolução silenciosa? Não com grandes gestos, mas com pequenas ancoragens no agora.
Comece por questionar a urgência. Pratique a escuta plena. Na sua próxima conversa, proponha-se a não pensar no que vai dizer a seguir. Apenas ouça. Absorva as palavras, as pausas, a linguagem corporal do outro. Você descobrirá universos inteiros que antes passavam despercebidos.
Colecione sensações, não coisas. Guarde na memória o sabor daquela refeição, o calor do sol na pele, a textura da página de um livro. Crie um inventário de experiências sensoriais. Elas são o seu patrimônio mais autêntico, imune à inflação e ao tempo.
Seja vulnerável. A catedral que construímos ao nosso redor serve, muitas vezes, como uma fortaleza. Temos medo de mostrar nossas rachaduras, nossas falhas, nossas dúvidas. Mas é justamente nas frestas que a luz entra e que a verdadeira conexão acontece. Amar e ser amado “enquanto é possível” exige a coragem de desarmar-se.
A vida ser como um sopro não é uma tragédia. A tragédia é passar por ela de pulmões vazios, com medo de inalar profundamente a beleza e a dor, a alegria e a incerteza. A beleza da catedral não está apenas em sua estrutura imponente, mas no espaço vazio que ela abriga, no eco que permite, na luz que filtra por seus vitrais. Da mesma forma, a beleza da vida não está no que acumulamos, mas no espaço que criamos para o amor, para a admiração e para a conexão genuína florescerem.
Quando foi a última vez que você parou, em silêncio, e apenas sentiu o ar encher seus pulmões? Esse movimento simples, automático, é a vida acontecendo. É o sopro. Não espere a catedral desmoronar para perceber que a verdadeira maravilha sempre esteve no ar que você respira. Essa é a única eternidade que nos foi prometida. O resto é finitude…
Raphael Silva Rodrigues: Doutor e Mestre em Direito (UFMG), com pesquisa Pós-doutoral pela Universitat de Barcelona, na Espanha. Especialista em Direito Tributário e Financeiro (PUC/MG). Professor do PPGA/Unihorizontes. Professor de cursos de Graduação e de Especialização (Unihorizontes e PUC/MG). Advogado e Consultor tributário.

