
Colônia de Epaminondas Otoni, Carlos Chagas, Mg - créditos: divulgação
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30-03-2025 às 11h11
Por Adalberto Vargas (*) A execução
“A história começa em 1934, na Colônia, pertencente a Carlos Chagas, no Vale do Mucuri, em Minas Gerais. O lugar era chamado de Colônia de Ourucu, Urucu é o nome indígena da semente usada como corante e condimento alimentar o urucum. Hoje, a colônia tem o nome de Epaminondas Otoni e é um distrito de Carlos Chagas.
“Urucum eu conheço. Quem foi Epaminondas Otoni? Não sei.
“Seria bom que eu começasse a história no dia em que nasci. É preciso que eu nasça para que comecemos a história. É ou não é?
“No dia em que eu nasci meu pai deu seis tiros para cima. Seis tiros pausados. Bem pausados. Pausas longas. Um tiro, um bom tempo. Aí, o outro tiro, o segundo. Todos os outros quatro tiros disparados muito devagar até completar os seis tiros. Um costume da época. Meu pai estava feliz e anunciava que nasceu um filho. Quando nascia uma mulher, davam dois tiros. Homem, três tiros. Homem valente seis tiros bem pausados.
“Meu pai sabia quem nascia naquela hora.
“Não foi preciso que eu chorasse para que soubessem que eu estava vivo. Nasci sem chorar. Era o primeiro filho naquela casa. Os tiros eram dados na hora do nascimento da criança, eu não havia ainda terminado de encher os pulmões e já fora saudado por meu pai com os seis tiros no ar.
“Era o dia 1º de abril de 1934, pois é! Primeiro de abril de mil novecentos e trinta e quatro. Dia consagrado à mentira, Dia da Mentira. No Dia da Mentiras nascera um Homem de Verdade. Pode escrever homem com h maiúsculo e a palavra verdade também. É para não esquecer.
“Comércio é a palavra que se usava, então, para definir um lugar com uma atividade econômica dinâmica. A Colônia, naquela época, tinha umas trezentas casas. Esse lugar quem criou foi Teófilo Otoni. A Colônia era o lugar mais adiantado da região. Na Colônia havia batalhão, contingente militar e ficava entre Ataléia e Carlos Chagas, dentro de uma região de pedras semipreciosas, de crimes e de muitas histórias.
“Minha história vai demorar, porque é uma história. É a história de uma vida intensa e de muitos conflitos. E esta vida é longa. Ainda tenho que lembrar o primeiro baile. Vou falar também do meio para diante de uma outra parte da minha vida bem mais movimentada. Primeiro, vamos ficar na infância. De algumas passagens da minha vida, eu guardei uma fotografia. Tenho que falar de meu pai, de minha mãe.
De calça curta vou passar para a calça comprida.
Tenho que falar de meu pai. Meu pai era um homem baixo, moreno. Minha mãe era clara, bastante branca, descendente de austríacos, seus cabelos eram louros, minha mãe conhecia a vida, ela era filha de um próspero comerciante e fazendeiro de Bias Fortes, Crispim Jaques.
Meu pai era um aventureiro e começou do nada. Ele possuía a maior virtude que eu acho que possa existir em um homem: a coragem, a coragem para tudo. Pois, para mim, eu creio que até para a covardia e o mal é preciso coragem, até muito mais coragem. Quando eu tinha seis anos de idade…
De Bias Forte à Colônia são quatro léguas e meia. Naquele tempo viajávamos a cavalo e até esta idade de seis anos eu fui criado por minha avó materna. Eu era muito fraquinho e doente. Meus cabelos eram louros e, quando menino, usava-os longos e anelados. Tenho uma fotografia desta época, um dia vou mostrá-la a você. Eu de sapato branco e preto, os cabelos correndo em anéis sobre os ombros. Na ocasião da foto, eu já era um garoto robusto.
Aos seis anos, saí para estudar, larguei a casa de meus avós. Mandaram-me para Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri. Iria estudar e morar na casa de minha tia. Ela lecionava no Grupo Escolar Teófilo Otoni. Foi professora dos maiores vultos da cidade, ensinou Petrônio, Barachim, Antônio Lins e outras gentes do Vale do Mucuri e do Jequitinhonha.
Dona Celuta Silva era a minha tia. Sua casa hoje é um lugar onde as pessoas mais respeitáveis se reúnem para jogar um buraco e falar. O quê? Ora o que se fala entre uma canastra e outra, durante a canastra…
Meu Pai era da família Dantas, tinha Dantas também no nome, um dia talvez por nada, talvez por fortes razões de moral, ele rasgou este sobrenome.
– Rasguei o Dantas, tirei o Dantas do meu nome. Minha família deixa de ser da família Dantas.
Assim rompemos um laço ou uma ramificação familiar. Em meu nome restou o Pereira da Silva.
*
Na hora em que o trem partiu de Bias Fortes para me levar a Teófilo Otoni, vi meu avô entrar na sua casa de comércio. Era perto da estação.
Aquela dor que eu nunca havia sentido e jamais esqueceria
Acontece algo interessante…
Eu volto atrás em minha vida.
Espere um pouco.
Tenho uma passagem muito interessante.
Muito bonita.
Eu lembro assim.
Uma passagem assim.
Eu era menino,
na casa do meu avô,
(voltando atrás na história)
Eu estava no balcão, em um dia de movimento.
Minha avó para me meter medo
apontou para um homem mau encarado,
um homem sério, boca fechada.
– Esse homem aí meu filho é um criminoso. Ele matou um outro homem.
Olhei para o homem.
E durante muitos dias admirei aquela imagem de homem perigoso.
*
Cheguei a Teófilo Otoni na época da guerra, anos 40, uma guerra que chamaram, então, de segunda grande guerra. Matricularam-me no primeiro ano primário. Nós, os meninos, daquela época, divertíamo-nos com tanques de guerra de brinquedo, fazendo guerra. Nossa área militar era o Cine Vitória; seus arredores; nossas trincheiras eram os adultos, qualquer coisa parada. Pelos brinquedos, eles nos queriam ensinar a filosofia da guerra, por essa época mais ou menos ouvi falar em um homem chamado Lenine e ouvi falar na luta dos homens humildes.
Minha primeira professora foi justamente a minha tia Celuta que era casada com Mário Moreira, um jogador profissional, jogava todos os jogos de cartas, era o homem que se vestia melhor em Teófilo Otoni, pertencia a alta sociedade, era querido nesta roda, dançava tango muito bem, um homem para qualquer parada. Ele morreu com várias balas no corpo. Em sua vida teve muitas disputas fora da mesa de jogo. Era um homem elegante, o homem mais pintoso que as mulheres já viram em Teófilo Otoni. Era assim com o Dr. Lourenço e com o Dr. Glicério Pinto. Esse meu tio de quem eu estou falando era um homem que as mulheres mijavam atrás dele, era um aloirado de olhos verdes. Era meu padrinho e eu adorava-o.
*
Eu assisti à primeira missa celebrada no local onde hoje é o Colégio São José. Era um morro. Só o morro. A missa foi celebrada por D José Arns, bispo de Araçuaí. Poucas as pessoas presentes, não mais de cinquenta, se não me falha a memória.
Coloque aí: “se não me falha a memória”, é uma expressão bonita. Estava acompanhado de minha tia, uma mulher elegante. Tia Celuta vivia muito bem com o meu tio. Ela não tinha ciúmes, um compreendia o outro. Eu achava que ela compreendia muito mais ele do que ele a ela. Nunca vi uma briga entre os dois, sei que você não acredita nisto, sei que isto parece impossível, mas eu confesso, vivi muito tempo com os dois e nunca os vi de cara fechada.
Na época da guerra, os estudantes do ginásio mineiro depredaram a Igreja dos Alemães, arrebentaram aquilo tudo e o caralho. Vi quando foram destruir e vi também a destruição da casa de Chico Esperança, outro alemão.
Um domingo, um avião colidiu com a torre, um pouco abaixo da cruz, da Igreja Matriz. Acompanhei todos os movimentos das pessoas em torno do acidente. Vi os homens carbonizados, o fogo em pequenas faíscas, consumindo o pouco do que ainda restava. No chão não havia sangue. Só lama, muita lama. Quando aconteceu tudo isto naquela cidade eu era uma criança. “Chô vê” o que tem mais de Teófilo Otoni? Desta época para cá, estudei no Ginásio São José, o ginásio acabara de ser construído, fui um dos seus primeiros alunos, do terceiro ano primário em diante, até o fim do colégio interno. No ginásio, eu gostava de jogar bola, futebol, jogo de botão, bolinha de gude. Neste momento me lembro da música de Ataulfo Alves, Tempo de Criança. Veja o que é ser poeta…
Jogo de botão pela calçada.
Eu era feliz e não sabia
Passava as férias na fazenda de meu pai na Colônia, montado em animal, atrás de boi, de meninas e do diabo. Minha mãe tinha uma sanfona de oito baixos, ela tocava valsas e seu compasso era perfeito. Treinei sanfona. Isto com oito anos.
Chegamos no momento em que surgiu o meu primeiro amor. Eu, garoto de calça curta, hem! Fui a um baile no Comércio, na casa de Neneca. O pessoal grande dançava na sala e os meninos num quarto. Tirei uma menina para dançar e passei a amar esta menina desde este dia, foi a minha primeira namorada. Com essa menina vamos ter muita encrenca. Veja, meu amigo, eu gosto desta menina até hoje. Os pais dela eram inimigos de meu pai. Meu pai não deixava por menos em questão de amizade e de inimizade. Ele sabia o instante exato de apertar o gatilho.
Aí entramos nos pontos delicados, delicados por isso, embora nossos pais fossem inimigos inesquecíveis, de longa data, por aí a fora, os filhos não tinham nada a ver com isso, os filhos destas famílias selvagens se encontravam e até amavam, muitas vezes acabando tudo com a ignorância da violência, outras vezes piorando as coisas. Naquele tempo era o tempo de intrigas. Tempo que jamais acaba, sempre foi o tempo real.
Sou mais conhecido em Teófilo Otoni do que cachaça, por causa do meu gênio, eu sou o Lampião da cidade. Vou falar da família… Opa! Cara, isto é um livro… Hesito, sou muito conhecido. Põe lá, põe lá, a menina se chamava Ivenita Tomich. Ela não se casou até hoje. Nós namorávamos de longe e de vez em quando encontrávamos na casa de uma costureira muito amiga das duas famílias. Em casa de Joaninha de Adailo. Era um tipo de moça velha, encontradiça naquela região, como pedra. Mesmo na casa de Joaninha os papos eram silenciosos e a nossa aproximação imperfeita. Tudo de longe. Por que não nos aproximávamos?
*
Eu montava bem a cavalo, vaquejava bem. De Teófilo Otoni, sai para estudar no sul de Minas, em Passa Quatro. Fomos, eu e meu irmão, internados no Colégio São Miguel. Colégio reservado para filhos de fazendeiros e de pessoas com condições. Ali estudei o primeiro ano ginasial, lá estávamos eu, meu irmão e o filho de um fazendeiro amigo de meu pai, este nosso companheiro era filho de José Barbosa Lima. Eu jogava futebol de ponta esquerda. Houve vários campeonatos. Padre Raul, argentino, que dirigia o esporte, jogava bola de batina, e, até hoje, eu ainda não vi, em um campo, jogador que tivesse o domínio de bola como ele, sem ser profissional. Ele era professor de línguas. Missa de manhã e missa de noite. Toda hora rezando, todo dia, missa na hora em que levantávamos, missa na hora em que íamos deitar. Eu chegava no dormitório quase morto de sono.
Como é esse negócio de ginásio, um gostava de fazer discurso, outro de brincadeiras e todas as brincadeiras fazíamos no pátio. Outros gostavam de escrever no quadro negro. Fazíamos um mural sobre o esporte, cada um assinava um nome tipo o Aranha Negra, o Sombra. Eu assinava o Vingador. Bom, mas você tem que por o nome do filho do fazendeiro, amigo de meu pai, amicíssimo, ele se chamava Firmino. Era eu, Firmino Barbosa Lima e meu irmão, os três de Teófilo Otoni, unidos no colégio de Passa Quatro. Naquele tempo o colégio expulsava por qualquer coisa. Excursionávamos na Serra da Mantiqueira, visitávamos os locais onde ocorreram as batalhas entre mineiro e paulistas. Por aí estou com 15/16 anos.
*
Onde paramos?
– Você estava com 15/16 anos, montava bem a cavalo.
Certo. Tem que dizer que eu não saía da sela. Montar bem todo mundo monta, o que é difícil é não sair da sela quando o cavalo joga, negaceia ou quando é um cavalo novo, inesperado. Entre os vaqueiros destemidos que eu conheci posso citar três, na verdade eles foram muitos, fiquemos em três, eram muitos, foram muitos os homens que eu conheci.
O vaqueiro Cecílio foi um deles, quando eu tiver este livro pronto, quero mandar imprimir uns quarenta volumes, um pouco por causa do Cecílio, neste livro eu falo de muita gente. Um momento, tenho que ter cuidado no que falo. Essa gente toda tem filhos, netos, muitos parentes, mas entre os homens valentes, mas valentes como homens, posso colocar o Cecílio, João Freitas e chô ver quem mais, uns três ou quatro homens, Lucas Neto e Ramito, ah muitos outros! Ramito é uma história, é um conto, eu quero lembrar algumas histórias dele, Ramito era um vaqueiro sistemático, ele tinha seus animais escolhidos de montar. Dentre os animais de Ramito, havia um burro, chamado Prateado, um burro sistemático como seu vaqueiro. Ramito conhecia o sistema do burro, compreende?
O homem e o burro. O burro tinha um sistema assim, todas as vezes em que Ramito ia montar, ele amarrava o burro no mourão e depois de arriado o burro começava a trotar em volta, aí Ramito gritava o nome do burro e montava. Depois disso, a viagem tinha tudo pra correr tranquila, ninguém tinha mais velocidade e esperteza e inteligência do que os dois cavaleiro e cavalo, burro.
O burro pulava, saltava é melhor, pular é uma coisa, saltar é outra. Ele tacava a espora e uns berros, o animal caminhava normal. Nesta hora podia sair qualquer gado na frente que o burro pegava, nesta hora o burro tinha carreira de cavalo, pegava qualquer tipo de rês. Era um animal treinado no campo, faltava falar. Um animal diferente dos outros animais. Essa é a vida do campo
(2) Epaminondas Ottoni virou nome de rua e de distrito no Estado de Minas Gerais. Antes, Epaminondas Esteves Ottoni (1862-1918) foi político, engenheiro e fazendeiro. Fiscal da estrada de ferro Bahia-Minas. Foi vereador, deputado estadual, senador estadual e deputado federal. Pertenceu ao PRM, Partido Republicano Mineiro.
Registros:
1. Zequinha, José Dantas Pereira da Silva, José Pereira da Silva, cumpriu pena a que foi condenado pelo assassinato de um amigo. Tempos depois, ele foi assassinado a mando dos próprios pais, também condenados pelo crime, mas que não cumpriram a pena pela idade avançada.
2. Conheci Zequinha na Penitenciária Agrícola de Neves, em Ribeirão das Neves, Minas Gerais. Durante algum tempo, conversamos nos intervalos das aulas de música. Ele um saxofonista, dono do próprio sax, que o acompanhava pelas galerias. Eu era aprendiz de clarineta. Jamais atravessei esta etapa do aprendizado, meu interesse era ouvir as histórias do Zequinha e do Mucuri que registrei e que agora publico aqui.
3. O Vale do Mucuri situa-se nos limites entre três Estados brasileiros: Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo. As nascentes dos rios formadores do Mucuri se encontram na serra dos Aimorés, também conhecida como serra das Esmeraldas, onde também estão as nascentes do rio São Mateus, Jucurucu, Itanhém e muitos outros. Esta serra constitui-se o divisor de águas mais importante da região. O rio Mucuri está localizado entre. as bacias do Jequitinhonha, ao norte, e Doce, ao sul.
4. Epaminondas Ottoni virou nome de rua e de distrito no Estado de Minas Gerais. Antes, Epaminondas Esteves Ottoni (1862-1918) foi político, engenheiro e fazendeiro. Fiscal da estrada de ferro Bahia-Minas. Foi vereador, deputado estadual, senador estadual e deputado federal. Pertenceu ao PRM, Partido Republicano Mineiro.
(*) Adalberto Vargas é fazendeiro no Vale do Mucuri