Créditos: Divulgação
08-12-2025 às 10h45
Gisele Bicalho*
Como a minha meia dúzia de seguidores já sabe, sou a louca das palavras. Amo especialmente aquelas que carregam consigo sonoridade. O que dizer de “subliminar”? E de “ensimesmado”, a minha queridinha? Já parou para refletir sobre a palavra sombrinha? Mais que proteger da chuva ou do sol, é uma sombra pequena que se oferece como abrigo. Sou uma entusiasta. Saboreio cada sílaba.
Essa minha paixão desenfreada já me conduziu a longas e produtivas conversas em torno de uma mesa. Nesse caso, de bar. Eventualmente acontecem em casa, naqueles almoços preguiçosos que se arrastam tarde adentro. Aliás, amo “adentro”. Tem profundidade.
Tem aquelas palavras que cantam? E se cantam é aí que me apaixono de vez. Quer ver? Que tal “saudade”? Linda, né? Tem mais: luar, entardecer, nostalgia, sabonete … A língua portuguesa é um abrigo perfeito para elas. Há muitas outras. Vivo campeando por elas nos dicionários. Sigo essa trilha a conselho do mestre Drummond: “(…) chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres: Trouxeste a chave? (…)”
Há palavras que quando se juntam beiram à perfeição. Não por acaso amor e perfeito são duas delas. Uma palavra completa a outra pra traduzir a flor. Coisa mais linda. Era a preferida da minha mãe. Teve uma vez em Lisboa que vi minha mãe ajoelhada diante de um canteiro de amor perfeito. Repetiu o mesmo gesto em Fátima. Em ambos, agradecia por tanta beleza.
Se nesse jardim de palavras tem amor-perfeito tem também malmequer, orquídea, tulipa., hortênsia, amarillis, camélia, dália, acácia. Muitas até viraram nome próprio. Há Rosas, Margaridas, Iris, Melissas e muitos outros nomes que não me ocorrem agora.
Aguardo sugestões.
Noite dessas, em um reencontro com amigos de longa data e novos afetos, a conversa acabou tomando esse rumo. Para minha surpresa, descobri que o prazer de saborear palavras não era exclusividade minha: outros também cultivam esse afeto. A partir de ensimesmado, foram brotando outras igualmente saborosas.
A conversa seguiu leve e, quase sem perceber, chegamos à conclusão de que algumas palavras da nossa prosa, coincidência ou não, já envelheceram. Sim, meus queridos e minhas queridas, as palavras também envelhecem e caem em desuso. Quem, hoje, ainda usa sujeito para se referir a alguém? Ou fala em tabefe quando a discussão descamba para as vias de fato? E o que dizer de sacripanta?
Curiosa, recorri à IA e descobri que se trata daquele hipócrita, canalha e sem caráter que, não raro, acabava levando uns bons tabefes.
Se essas e outras palavras estão caindo no esquecimento, outras são incorporadas do inglês. Nesse caso há várias. Spoiler, backup, delivery são só uma pequena parcela. A lista é tão extensa que eu poderia me alongar por horas só com esse tema.
Há também os neologismos. Guimarães Rosa e Mia Couto são mestres nessa artimanha (ops!).
Personagens desses dois escritores magníficos são trestriste, sentem sonolentidão, adoraram varandear e esvoa por aí. E são, em geral, sonhadeiros.
Esse gosto peculiar se conecta ao livro O Dicionário das Palavras Perdidas, de Pip Williams, que narra a história de Esme, filha de um lexicógrafo do Scriptorium, onde se compilava o primeiro Dicionário Oxford da Língua Inglesa. Esme cresce colecionando palavras descartadas, questionando exclusões e refletindo sobre desigualdades de gênero, até se envolver com movimentos sociais e vivenciar os impactos da Primeira Guerra Mundial. Já falei desse livro aqui mais de uma vez. Não por acaso, é um dos meus preferidos.
Apesar desse meu amor confesso pelas palavras, lamento que por vezes haja pouca reciprocidade por parte delas. A maioria foge de mim como o diabo foge da cruz. Drummond, pela sua grandeza e sabedoria, não entrou nesse jogo. Matou a charada e apontou aonde as danadinhas se escondem: “(…) ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.”
Comigo é bem assim. Há dias que aquela regrinha de juntar sujeito, verbo e predicado é tarefa de milhões. E o que dizer dos adjetivos, substantivos e afins? Escorregam pelos dedos. E nada do texto fluir. Já ouviu falar em inveja? Pois, então! Haja aperreio (ops de novo!).
Mas sigo tentando, porque cada palavra que me escapa é também convite para outra que chega. E, no fim, é nesse vaivém que descubro o sabor secreto das palavras. Sigo atrás delas, mesmo quando se escondem. Porque, no fundo, sei que as palavras, como nós, nunca estão prontas: afinam, desafinam, se reinventam. A língua é viva, política e profundamente humana.
*Gisele Bicalho é jornalista

