Dom Pedro II - créditos: divulgação
26-10-2025 às 10h24
Julliana Garcia Neves*
No acervo da Fundação Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora – MG), um curioso retrato a óleo de D. Pedro II chama atenção do público. Por ocasião da Proclamação da República, a tela sofreu um tiro. Mas como, por que e onde isso aconteceu? Há registros de outros casos ocorridos no Brasil nesse contexto? Como a tela foi parar no Museu Mariano Procópio? Posteriormente, o que fizeram os restauradores com essas marcas de violência: ocultaram-nas ou as deixaram em evidência? Qual é o significado dessa tela nos dias de hoje? É sobre esse assunto que a autora discorrerá nesse artigo, que é resultado de sua pesquisa de mestrado em História na UFJF.
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Quando tratamos de museus históricos brasileiros, como o Museu Mariano Procópio, é dificilmente ignorada a recorrência de um específico gênero artístico em suas reservas técnicas e circuitos expositivos. Essas instituições possuem em seus respectivos acervos incontáveis retratos a óleo do imperador D. Pedro II, os quais apresentam diferentes escolhas compositivas. Nessas pinturas, de diferentes temporalidades, o monarca aparece representado em trajes majestáticos, fardas militares ou com sua característica casaca, que desmobilizava a concepção de um poder absoluto.
A história do reinado de Pedro II, desde a sua gênese, apresenta vínculo intrínseco e primordial com as artes e os artistas da Academia Imperial de Belas Artes. O “imperador menino” cresceu de forma pública, como Lilia Schwarcz demonstra em “As Barbas do Imperador”. Nesse contexto, a importância do gênero de retratos se estabelece antes mesmo do monarca tomar posse do poder que herdara de seu pai, D. Pedro I.
A trajetória de produção retratística de Pedro II é marcada por artistas renomados, como Jean Baptiste Debret (1768-1748), que se distancia dos cânones comuns do gênero artístico para produzir o primeiro retrato publicizado do futuro imperador, com um ano de idade. Para esse texto, entretanto, a atuação de Félix Émile Taunay (1795 – 1881) enquanto diretor da Academia Imperial de Belas Artes é de importância singular.
Segundo a historiadora Elaine Dias, no período em que esteve à frente da referida instituição, Taunay se mostraria atento ao contexto histórico propício à produção de retratos e se valeria desse gênero para garantir prestígio à Academia e seus artistas. Seria confiada ao artista a tarefa de compor um retrato do jovem monarca a ser reproduzido pelos alunos da Academia Imperial de Belas Artes, a fim de que essas reproduções fossem enviadas às longínquas províncias do Império para figurar em repartições públicas ou em cerimônias cívicas oficiais. Cerca de trinta e seis solicitações de retratos foram encaminhadas para a Academia artística pelos presidentes de província. O retrato oficial produzido por Taunay integra o acervo do Museu Imperial, enquanto as reproduções, de dimensões reduzidas, focadas apenas no busto do Imperador, são parte do acervo pictórico de diversas instituições em diferentes regiões do país. Desta forma constitui-se o vínculo entre arte, cultura e poder para a consolidação de regimes políticos e construção simbólica da nação.

Cabe destacar que, durante o período monárquico brasileiro, os retratos eram tratados como extensões do corpo físico dos imperadores e, portanto, deveriam receber o mesmo tratamento, rituais e liturgia tradicionais, como se o imperador estivesse presente. Nessa oportunidade, apresentaremos a trajetória singular do “Retrato de Pedro II”, que, atualmente, integra a exposição “Rememorar o Brasil: a Independência e a construção do Estado-nação”, na Fundação Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora – MG).
O retrato, o decreto e os festejos cívicos

À primeira vista, não há meios do observador ignorar as dimensões do “Retrato de Pedro II”. Nessa tela, o imperador foi representado em tamanho natural, com a farda da Marinha, cabelos escuros e feições joviais. Atribuído ao artista Joaquim da Rocha Fragoso (? 1893), vinculado à Academia Imperial de Belas Artes, o retrato possui uma composição pictórica bastante similar às pinturas contemporâneas do mesmo gênero. Há nele, porém, uma importante especificidade: a referência textual a um significativo fato histórico do Segundo Reinado. O Monarca foi representado com a mão direita, sem luva, sobre o Decreto n .3749, homologado no dia de 7 de dezembro de 1866, que ampliava a navegação do Rio Amazonas às nações que mantinham relações amistosas com o Brasil. Este retrato pertencia, originalmente, à coleção de pinturas do Palácio Lauro Sodré (então sede do governo do Grão-Pará), figurando na sala do presidente da província até o dia 15 de novembro de 1889.
O decreto citado no “Retrato de Pedro II”, do Museu Mariano Procópio, é resultado de um longo debate sobre a possibilidade do Império brasileiro pactuar a navegação do Rio Amazonas com as nações que mantinham relações amistosas com a monarquia. No dia 7 de dezembro de 1866, os liberais, esperançosos com a possibilidade de navegação do Amazonas, cobiçado ao longo de muitos anos por outros países, visto como “mãe de todas as águas”, dada a importância de sua extensão e alcance de diversas localidades, somaram-se às esperanças de desenvolvimento da população da longínqua região do Império brasileiro. Dessa forma, o protecionismo das lideranças políticas conservadoras fora derrotado.
O controle da navegação do Rio Amazonas foi confiado a Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá (1831 – 1889). Na prática, o decreto “sagrado” solenemente no Retrato de Pedro II do Museu Mariano Procópio significa a definitiva integração da longínqua região norte do Brasil à tão distante centralidade do poder no Rio de Janeiro, ratificando definitivamente os contornos do território nacional.
Em comemoração ao fato histórico, ansiosamente aguardado pelos habitantes da região norte, o então presidente de província do Grão-Pará ordenou que fossem organizados três dias de festejos um ano após a assinatura do Decreto, com início no emblemático dia 7 de setembro de 1867. Muitos adornos foram encomendados da Corte para a missa, procissão e jantar meticulosamente planejados. Dentre as encomendas documentadas, registra-se a composição de efígies das majestades imperiais para figurarem nas cerimônias oficiais. Os três dias de comemoração, narrados no principal jornal do então Grão-Pará, foram também registrados pelas lentes do fotógrafo Henrique Fidanza (? – 1903).


São diversos os documentos que afirmam que havia um grande retrato de D. Pedro II, de destacada importância histórica, na sede do governo da província. Nos dias de festejo cívico na capital da província (Belém – Pará), destaca-se um momento narrado como “encerramento apoteótico”, em que “um retrato do Imperador Pedro II foi exposto em uma das janelas do Palácio Lauro Sodré, enquanto a população assistia aos fogos de artifício no porto do Ver-o-peso”. Apesar da ausência de documentos sobre a encomenda e produção de retrato para essa ocasião, algumas evidências nos levam a atrelar o retrato hoje pertencente ao Museu Mariano Procópio à festa cívica organizada para festejar a esperança da população da região norte pela abertura do Rio Amazonas.
Nesse período, o Império passava por forte turbulência, tendo em vista a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864–1870). A Academia Imperial de Belas Artes e seus artistas passavam por dificuldades financeiras – o que talvez explique uma suposta finalização apressada da tela, como se nota nos contornos e preenchimentos um tanto questionáveis, sobretudo na execução do trono situado ao lado da representação do monarca.
“Viva a República!” Ao Imperador: exílio, tiros, cortes e bengaladas
“O povo assistiu bestializado”. Durante um tempo considerável, essa afirmação no texto de Aristides Lobo foi evocada para afirmar a distância com que a população teria assistido aos eventos do dia 15 de novembro de 1889, como se não houvesse participação popular na Proclamação da República. Essa interpretação, entretanto, já foi revisitada e revista pela historiografia. Do processo de pesquisa que originou esse texto até os dias atuais, verificamos diversos casos de retratos de D. Pedro II vandalizados no dia 15 de novembro de 1889. Em sua maioria, esses retratos ficavam expostos em lugares públicos durante o Segundo Reinado. Periódicos do Rio de Janeiro e das províncias nos dão conta de informar que retratos do monarca foram danificados com instrumentos de militares e civis, atirados nas ruas, recebendo tiros, cortes de espada e até golpes de bengala, como narra Artur Azevedo sobre os eventos ocorridos na Câmara do Rio de Janeiro.
Segundo Azevedo, lamentavelmente, várias obras artísticas representando o imperador foram vandalizadas por entusiastas do regime republicano. Um desses retratos integra o acervo do Museu Imperial. No registro anterior ao processo de restauração total deste grande retrato do Imperador em trajes majestáticos, é possível ler a inscrição “Viva a República”. Já no gabinete do Ministro da Guerra, a representação do rosto do monarca foi alvo de cortes de espada. Atualmente, esse retrato compõe o acervo do Museu Histórico Nacional. Em ambos os casos, os danos atribuídos a militares durante a Proclamação da República foram integralmente preservados.
Na capital da província do longínquo Grão-Pará, os ecos da mudança de regime chegaram no dia 16 de novembro, provocando significativa mobilização dos militares e civis do tradicional clube republicano ativo na região. Durante intensa movimentação, um exaltado simpatizante do movimento republicano “invadiu” o Palácio Lauro Sodré, dirigiu-se à sala do presidente, sacou uma arma e desferiu um tiro na tela do imperador. O monarca “de carne e osso” não foi atingido, mas anunciava-se a morte da monarquia através de seu corpo simbólico.
Integrando o acervo do Museu Mariano Procópio, esse retrato do segundo imperador brasileiro se soma a todos os outros envolvidos em episódios de ataques à representação imagética do imperador. Todos eles nos servem de indícios materiais de que os dias que marcaram a Proclamação da República foram repletos de exaltação e dramaticidade.
Monarquistas, republicanos e o resgate da Memória Imperial
Com o regime republicano instaurado, Justo Leite Chermont (1857-1926), ex-deputado provincial e membro destacado do clube republicano paraense, foi eleito para governar o Grão-Pará. Atendendo à determinação do novo regime liderado por militares, os novos líderes provinciais deveriam retirar os símbolos do Império e encaminhá-los, prioritariamente, para a Escola Nacional de Belas Artes para “tratamento adequado”. Assim se iniciava a dissolução simbólica da monarquia para que, em seu lugar, se construísse o imaginário do regime republicano.
Todo esse processo de apagamento e silenciamento, contudo, não se deu sem resistências. Segundo Ângela Alonso, havia dois grupos em defesa da monarquia na primeira década de regime republicano: os “monarquistas de espada” e os “monarquistas de pena”. Estes últimos, constituídos dos “filhos da elite imperial em preparação para assumir o país”, receberam “educação de Corte”, mostravam-se avessos ao belicismo e viam na palavra seu espaço de atuação.
Nesse contexto, Alfredo Ferreira Lage (1865-1944) apresenta um projeto de resgate de memória singular: esforçou-se para integrar às suas coleções, iniciadas ainda na infância, ícones de importante valor histórico, artístico e narrativo sobre o período imperial. Tal projeto resultou, em 1921, na inauguração oficial do Museu Mariano Procópio e, em 1936, na doação do equipamento cultural ao município de Juiz de Fora.
Quando a memória da monarquia brasileira já não ameaçava a consolidação do regime republicano, o fundador do Museu Mariano Procópio recebeu diversas autoridades políticas para apreciar suas coleções. Em 1941, por exemplo, recebeu a visita de Abelardo Leão Cunduru (1889-1977), então prefeito de Belém do Pará. É certo que o prefeito teria interesse pelos fardões do Imperador e pelas realizações dos grandes nomes da pintura nacional e internacional que figuravam na instituição. É ainda mais certo que Cunduru fora apresentado ao retrato de Pedro II. Afinal, essa peça é um documento singular dos atos inaugurais da República, na cidade que governava à época.
A relevância desse retrato para o fundador do Museu é evidenciada na publicação do “Diário Mercantil”. No dia 12 de junho de 1942, o periódico informava que, dentre as relíquias da instituição, havia “um grande retrato do S.M. Imperial D. Pedro II”. Entre os depoimentos de Alfredo Lage, consta que “Esta tela acha-se danificada pelo populacho, quando na Proclamação da República, ele se encontrava no Palácio Presidencial do Pará, tendo sido salva, em boa hora, pelo deputado Chermont.”
Em determinado momento da história do Museu Mariano Procópio, a tela esteve exposta na antiga sala onde ficava instalada a sua Biblioteca. Posteriormente, ela foi recolhida para a área de reserva técnica, onde permaneceu praticamente esquecida. Somente em 2007 a peça foi submetida à necessária restauração. Não sem antes mobilizar muitos debates entre os profissionais da instituição quanto à explicitação ou ocultamento das marcas da violência sofrida no passado. Ao final, chegou-se a um denominador comum: optaram por deixar a marca do tiro, situada próxima ao rosto do imperador, sinalizada com um círculo cinza. A finalidade era preservar a relevância histórica da peça e, ao mesmo tempo, a sua narrativa visual do ponto de vista estético, não ocultando por completo a marca da violência, que também faz parte de sua história.

Arte, vandalismo e tempo histórico
As ações de vandalismo fazem parte da História. No Brasil, não é diferente. Desde o Período Joanino, como destaca Gonzaga Duque, elas fazem parte da linguagem de representação política que se pretende revolucionária.
Uma passagem do romance “Esaú e Jacó”, publicado por Machado de Assis (1839-1908) em 1904, é bastante simbólica para refletirmos sobre essa questão no contexto brasileiro. Atento ao tempo histórico em que vivera, Machado trata, com sua grande habilidade narrativa, o debate já colocado entre monarquistas e republicanos através de retratos. No capítulo “A Luta dos Retratos”, o autor narra as divergências políticas entre os irmãos Paulo (republicano) e Pedro (monarquista), que viviam vandalizando os retratos um do outro, colocados sobre as cabeceiras de suas camas: de um lado, a gravura de Robespierre; de outro, a de Luiz XVI. “Eram orelhas de burro, nomes feios, desenhos de animais, até que um dia Paulo rasgou a de Pedro, e Pedro a de Paulo”.
O fato é que, nas ações de vandalismo, os símbolos são atacados com a intenção de questionar ou destruir seu significado. Não cabe aos historiadores, hoje, classificarem essas ações como “expressão de barbárie”, como normalmente se faz no senso comum. Em vez de simplesmente julgar se tais atitudes foram legítimas, válidas ou criminosas, é preciso analisar o contexto histórico na sua complexidade e dinamicidade, compreendendo as ideias/ideais, as mentalidades, as identidades políticas, sociais, étnicas e econômicas que motivaram determinadas posições e comportamentos dos sujeitos históricos.

Saiba Mais!
CHAVES, Mariana Guimarães. O Patronado Imperial e o papel das Artes na formulação dos projetos nacionais (1841-1889). XXVII Simpósio Nacional de História: Conhecimento histórico e diálogo social. Natal, 22 a 26 de julho de 2013.
DIAS, Elaine. Os retratos de D. Pedro II no Acervo do Museu Paulista. Anais do XXXII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: Direções e Sentidos da História da Arte, out. 2012.
FERNANDES, Cybele V. F. A construção simbólica da nação: A pintura e a escultura nas exposições gerais da Academia Imperial de Belas Artes. 1920, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2008. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/cfv_egba.htm.
GIL, José. A Arte do Retrato no Brasil Imperial.: Análise da Obra “Retrato de Sua Magestade O Imperador Dom Pedro II – em 1835 (1837) de Felix-Emile Taunay. Universidade Federal de Juiz de Fora, instituto de Artes e Design, 2014.
“O Retrato de Pedro II de Joaquim da Rocha Fragoso”. Laboratório de História da Arte – LAHA/UFJF Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZhKfwejXmdY
“Que tiro foi esse? Museu de MG guarda retrato de Dom Pedro II que foi alvo de disparo em 1889”. G1- Zona da Mata. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/que-tiro-foi-esse-museu-em-mg-guarda-retrato-de-dom-pedro-ii-que-foi-alvo-de-disparo-em-1889.ghtml
“A pintura de Dom Pedro II que recebeu um tiro após a chegada da República.” Revista Eletrônica Aventuras na História. https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/reportagem/o-retrato-de-dom-pedro-ii-que-foi-alvo-de-um-tiro-apos-a-chegada-da-republica.phtml
* Julliana Garcia Neves é graduada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e cursou mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade. Entre 2010 e 2012, foi estagiária no Departamento de Acervo Técnico (DAT) da Fundação Museu Mariano Procópio (Mapro). Atualmente, é coordenadora de projetos da Rede Itinerante e Técnica do CEAT – Ministério Público de Minas Gerais.

