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"Wilson Cid, o homem que guarda papel e as memórias de uma cidade" - créditos: arquivo pessoal
09-02-2025 às 09h09
Wilson Cid*
Perguntei, certa vez, ao prefeito Mello Reis sobre as dificuldades mais desafiadoras que havia enfrentado durante o período em que esteve à frente da Administração Municipal, e ele confessou que nada havia suplantado o problema da baixa estima da população. Persistia aqui a convicção de que nada dava certo, nada valia a pena, tudo muito difícil; e isso acabava sendo fator de desestímulo para projetos mais audaciosos. Este é um sentimento que paira no ar, ainda que com presença reduzida, com maior ou menor intensidade; mas sem explicação histórica. Foi também daqueles dias um fato pitoresco, que iria confirmar o pessimismo endêmico: certa madrugada, em tradicional salão de jogos da cidade, veteranos companheiros do baralho foram interrompidos por alguém gritando “incêndio na Fonseca Hermes”. E logo surgiu a voz tranquilizadora de um comerciante e jogador bem-sucedido: “Calma, que em Juiz de Fora nem incêndio vai pra frente”…
Não se sabe quem inventou esse clima de abatimento. Quatro décadas antes de Mello Reis, 1942, em carta a seu amigo Alceu de Amoroso Lima, o professor Henrique Hargreaves, que se tornaria um dos principais pensadores católicos do Brasil, queixava-se, intrigado, de que “aqui ninguém está contente com a situação, e ninguém sabe por que não está contente”. Diríamos então: quase um jeito de ser.
Vê-se que esse clima de desencanto, que em algumas vezes se revelaria contagiante, vem de longe; muito longe mesmo. Em fevereiro de 1889, totalmente envolvido com os equipamentos que o tornariam pioneiro da eletricidade, Bernardo Mascarenhas enfrentava rumores de que a prometida energia oferecia insegurança à população. E quando vieram os telefones, o primeiro deles instalado na Mecânica de George Grande, espalhou-se o temor: “esse troço vai dar choque no ouvido em dia de tempestade”. Só o tempo se encarregaria de destruir o medo.
Sorte diferente não teria seu contemporâneo Barbosa Lima, que conseguiu construir o Fórum apenas com subscrições públicas. Em novembro de 1877, um temporal destruiu parcialmente uma das paredes em construção, logo se apregoou que tudo estava caindo, e a população era chamada para ver as ruínas que não aconteceram. E quando foi inaugurado, com a presença do Imperador, a recomendação era ter cuidado. Suspeitava-se do pinho de Riga empregado no piso. Barbosa Lima acabou se irritando com a maledicência e foi-se embora daqui.
Via-se uma certa tendência a considerar que as coisas nossas são pequenas, pobres e feias. Nem o grande poeta Murilo Mendes escaparia, ao confessar num epigrama: “eu tenho muita pena do Rio Paraibuna”… Mais cruel teria sido depois o grande Carlos Drummond de Andrade: feliz em Juiz de Fora é o Paraibuna, que passa de passagem, embora tenha morrido garantindo que nunca havia dito tal coisa. Mas não pôde negar que certa vez cumprimentou Pedro Nava, quando o médico e futuro memorialista decidiu-se mudar daqui.
Houve muita gente que nutriu especial antipatia pelo fotógrafo Henry Klumb, que, em 1861, aqui acompanhava a Família Imperial, por referir-se a Juiz de Fora como “esse lugarzinho”, embora reconhecesse ao mesmo tempo que nesse “lugarzinho” estava o principal empório de Minas e um pouco de Goiás.
Outro poeta dos maiores, que não escapou da língua mordaz dos pessimistas municipais, foi Belmiro Braga. Quando uma revista da Bélgica, “La Source” publicou traduzidas algumas poesias suas, em Vargem Grande, onde nasceu, e nos cafés da Rua Halfeld, não faltou quem suspeitasse que as poesias não eram dele, mas de um xará dele. Imaginem! Na Bélgica, alguém com o nome de Belmiro Belarmino Braga! Mas o poeta fez pouco caso da maldade, lembrando que os homens são como os rios, sempre desprezados no lugar onde nascem.
Dia-se-ia que há uma tradição de lamúrias e complexos suficiente para deitar a cidade no divã de um discípulo de Freud. E tentar desvendar o inconsciente coletivo de onde nascem tão longos desencantos, que, aliás, ganhavam dimensão e se ampliaram por causa do nome horrível da cidade. Nem de dentro somos; somos de fora, excludentes; e graças a um juiz despreparado, aventureiro, enroladíssimo com a polícia, expulso da província de Minas, degredado, traidor de interesses da pátria nas negociações com os invasores franceses. Luiz Forte Bustamante Sá, eis o nosso patrono. Quem sabe se, em parte, não nasceram desse aventureiro, que chegou aqui fugido, nossos complexos acumulados? Já em 1886, muita gente desconfiava disso, tanto que a Câmara pensou propor à Assembleia outro nome para a cidade. Seria Cidade da Independência.
Note-se que em certas épocas sobrevivia um certo desânimo sobre as coisas que dão e deram certo no resto do mundo, mas não aqui, com agravante de que tal abatimento chegou a envolver homens de expressão, sem embargo de alguns, em outras circunstâncias, terem prestado bons serviços. É o caso de Francisco Bernardino, que na sessão da Câmara de 19 de agosto de 1908 insurgiu-se contra a ideia de o município trazer colonos japoneses para trabalhar aqui, alegando que isso seria um grande perigo, pois já tinham provocado “tamanhas perturbações nos Estados Unidos, nos salários e nas relações de trabalho”. Bernardino achava que os japoneses “trabalham com tal superioridade, perfeição e sobriedade, que acabariam conquistando toda a oferta e produção do trabalho”. Pois os japoneses foram para São Paulo, e ajudariam a desviar para lá o eixo cafeeiro, parte do qual estava conosco.
Para confirmar que nem sempre os políticos, quando pessimistas, estão sintonizados com nossos interesses, lembraria o que disse certa vez o general Macedo Soares, quando na presidência da Companhia Siderúrgica Nacional, de Volta Redonda. São palavras textuais dele: “Eu fiz tudo para levar esta usina para Juiz de Fora ou suas imediações. Não encontrei nenhuma receptividade. E tive a tristeza de ouvir de um político que Juiz de Fora já estava saturada de industrias’’.
As resistências ocorreram com essa usina de produção básica, que aqui viria ocupar o espaço deixado pela indústria de transformação, já oferecendo sinais de estagnação. Mas, em relação à tradicional má vontade, vale considerar que dela também se tornaram vítimas grandes eventos. Voltemos a setembro de 1886 para encontrar no Parque Halfeld a Exposição Agrícola e Industrial, cuja importância era confirmada pelo grande número de empresas participantes. Até na Europa houve quem a elogiasse, como um jornal de Milão, onde estavam Múcio Teixeira e José Lino, que compuseram o hino da feira. Mas aqui, queixas. Donas de casa denunciaram a exposição por provocar a poeira que sujava suas toalhas e cortinas, além da chatice da chiadeira dos carros de boi que conduziam as peças expostas. Nem José Cipriano, o organizador da feira, escaparia: foi crucificado por ter esbanjando oito contos de réis das rendas municipais, diziam.
Se refletirmos sobre essa mania de achar que tudo está ruim ou que poderia ser diferente, o melhor é continuar no Parque Halfeld, a principal referência da cidade, com um perfil longe de ser unanimidade. Basta percorrer as crônicas da época. O decreto que o criou fala em Praça Halfeld, mas a população achou melhor tratá-lo como Parque, ainda que ele não seja exatamente isso. Em 1880, a Câmara contratou o arquiteto Miguel Lalleman para ajardiná-lo e colocar gradil. Protestos. A população queria que ali continuasse sendo o lugar de touradas e circos. O gradil ficou quatro anos sob críticas, e, quando a Câmara decidiu removê-lo, também por isso foi criticada. Valadares Pinto, prefeito nomeado, quis derrubar as palmeiras, e quase o devolveram a Belo Horizonte antes do tempo.
A procura de um escudo para confirmar essa história, vou buscar apoio em Jair Lessa no seu “Juiz de Fora e seus pioneiros’’; autor que não pensava diferentemente sobre o já bastante citado pessimismo municipal. Disse ele:
“Reclamar era o nosso forte. Reclamaram contra o engenheiro Fernandes Pinheiro, porque estava fazendo aterros para a via férrea. Reclamaram contra o professor de música, que convocava os alunos trombeteando do alto da janela do coro da igreja. Reclamavam que nesse coro os músicos mais bebiam que tocavam; e, quando tocavam, reclamavam porque tocavam sem parar. Reclamavam das carruagens com cavalos, por causa dos acidentes, como o caso do guri atropelado quando vendia cocadas. Reclamavam dos cocheiros, que paravam no botequim para tomar um gole. Reclamavam da roleta do Hotel Europa, que tomava o dinheiro dos incautos”.
“E reclamavam da lerdeza da carroça de lixo que descia a Rua Santa Rita exalando mal cheiro. Que então passasse a galope. Reclamavam do fiscal da Câmara, que fazia vista grossa para tudo. Enfim, proclamavam os derrotistas de plantão: em Juiz de Fora só funcionava mesmo a lua cheia, que supria a deficiência dos nossos lampiões…”
Houve época, felizmente em parte superada, que a cidade se cercava de pessimismo. Interessante, mesmo com as coisas dando certo, o progresso industrial, as artes e as grandes realizações. Mas isso só se deu porque gente como Halfeld, Vidal, Mariano, Bernardo, Bertioga, Penido, Menezes desconheceu aquilo que insinua, se houvesse, o milagre da transposição das águas do Tejo despejadas no Paraibuna, em cujas margens pairava o espectro do velho do Restelo, arrancado do Canto IV dos Lusíadas, a admoestar os navegantes do nosso progresso. Cuidado! Vocês vão afundar, não vai dar certo. Não façam, não ousem, não tentem, não busquem, não construam, não se aventurem por mares que não conhecem.
O prefeito Custódio Mattos gostava de repetir a história que lhe contamos sobre nossa chegada a Juiz de Fora, vindos de Três Rios. Natal de 1946. O caminhão com os móveis estacionou onde seria a fábrica RS, e meu pai subiu a rua principal daquela Vila Ideal para receber, em um armazém, as chaves da pequena casa que havíamos alugado. O senhorio era dono desse armazém. Pois os dez minutos em que ali permaneceu foram suficientes para meu pai ouvir três coisas que nunca mais deixaria de ouvir nos outros 50 anos em que viveria aqui: esta Câmara é a pior de todas, o Tupi está em crise, o comércio não está vendendo merda nenhuma…
Setembo de 2016
Wison Cid é Jornalista e escritor