Símbolo Sonoro de Transformação e Devoção; neste artigo, que celebra os 507 anos da Reforma Protestante, foi elaborado a partir da sugestão do estimado amigo Paulo Roberto Cardoso, a quem dedico este trabalho
Dr. Handel Cecilio*
O órgão de tubos não surgiu da forma que conhecemos hoje; ele é o resultado de um longo processo de desenvolvimento das técnicas de construção (organaria) e da ampliação dos recursos do instrumento. Sua origem remonta ao momento em que, ao “conjunto de flautas” (um conjunto de tubos), foram acrescentados o teclado (manual), o mecanismo para acionar os tubos a partir do teclado, o fole (gerador de ar) e o someiro (reservatório de ar). Em períodos posteriores, foram adicionadas outras fileiras de tubos (os registros de vozes), mais teclados (manuais) e a pedaleira (teclado acionado com os pés).
Considerado o mais antigo dos instrumentos de tecla, o órgão é atribuído ao engenheiro Ktesibios de Alexandria, em 246 a.C. Na época, era chamado de órgão hidráulico, pois seu princípio de funcionamento utilizava a água para gerar a pressão de ar necessária aos tubos. As teclas tinham a forma de alavancas, e o teclado não era cromático, não possuindo as “teclas pretas” dos bemóis e sustenidos. Detalhes sobre esse instrumento primitivo, composto de flautas acionadas por teclas, estão presentes nas obras De Arquitetura, de Marcus Vitruvius Pollio (27 a 16 a.C.), e Pneumatica, de Heron de Alexandria, do século I d.C.
A liturgia cristã primitiva, centrada na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações, era provavelmente simples e desprovida de instrumentos musicais. No entanto, o canto e a música ocupavam um papel significativo na edificação espiritual, no louvor e na instrução dos primeiros cristãos. Em Efésios, lemos: “Falando entre vós em salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor no vosso coração.” Da mesma forma, em Colossenses, está escrito: “Louvando a Deus com salmos, hinos e cânticos espirituais, com gratidão em vosso coração.” Em Tiago, encontramos a instrução: “Está alguém alegre? Cante louvores.” Esses textos evidenciam a importância da música na expressão de fé e na vida comunitária dos primeiros cristãos.
Com a oficialização do cristianismo por Constantino em 13 de junho de 313 d.C., o Édito de Milão pôs fim às perseguições, permitiu a construção dos primeiros templos e garantiu que os cristãos pudessem cultuar publicamente. Em 7 de março de 321, Constantino declarou o domingo como o dia oficial de descanso, conhecido como o “Dia do Deus Sol” (Sol Invictus), a divindade oficial do Império na época associada ao poder e à invencibilidade.
Embora o uso do órgão de tubos no culto cristão careça de registros precisos de data e local, sabe-se que enfrentou resistência devido à sua associação com ritos pagãos e seculares. O órgão era vinculado ao culto ao deus Pã da mitologia grega, que tocava uma flauta formada por um conjunto de tubos, semelhante ao órgão de tubos. No Império Romano, o instrumento também era utilizado em celebrações cívicas e cerimônias palacianas, além de estar presente nos circos romanos. Mais negativamente, o órgão de tubos era empregado nas arenas para abafar os gritos dos cristãos lançados às feras, o que reforçou seu estigma na tradição cristã.
De acordo com o cronista Bartolomeo Platina (1421-1481), no livro Vitae Pontificum (Vidas dos Papas), o Papa Vitaliano I (620? – 672) introduziu o órgão de tubos na liturgia romana no século VII. O autor relata: “Mas Vitaliano, resolvido a fazer algo sobre coisas sacras, redigiu os Cânones Eclesiásticos e regulamentou o canto na igreja, introduzindo órgãos de tubos para serem usados com a música vocal” (PLATINA, 19?? [1479], p. 158). Esse relato é confirmado pelo Cardeal Bellarmino (1542-1621), que afirma que o Papa Vitaliano I introduziu o órgão de tubos no serviço religioso em Roma no ano de 660, o que resultou na disseminação desse instrumento por toda a Europa. Na Igreja Cristã, o órgão de tubos encontrou um ambiente propício para seu desenvolvimento. Nesse período, os órgãos ainda eram de pequeno porte, como os órgãos portativos (organum portabilis).
Durante o Período Gótico, os órgãos de tubos adquiriram um posicionamento fixo dentro dos templos das igrejas e, geralmente, passaram a ocupar lugares elevados, como os coros altos. Em alguns templos, foram construídas tribunas exclusivas para a instalação dos órgãos de tubos. Nesse momento, o órgão passou a ser um instrumento de destaque, assumindo sua personalidade por meio de suas caixas e dos tubos de fachada, que se tornaram elementos decorativos no interior das igrejas. Somente no Período Barroco, os órgãos atingiram um grande porte em quantidade de registros, extensão e número de manuais. De maneira geral, pode-se afirmar que o órgão de tubos nos Períodos Gótico e Renascentista era, essencialmente, um órgão positivo em uma caixa maior.
Na primeira metade do século XVI ocorrem os movimentos de reforma separatista da Igreja Católica Romana, sendo primeiro destes a Reforma Protestante Luterana, em 1517. O foco principal deste movimento de reforma eclesiástica está em se opor às práticas, doutrinas e questões teológicas. Na liturgia, os movimentos reformistas protestantes investem no canto congregacional na língua vernácula, mas a princípio, sem o uso do órgão de tubos, instrumento usado na liturgia da Igreja Católica Romana.
As ideologias dos reformadores protestantes variaram significativamente em relação ao uso do órgão de tubos nas igrejas. Embora a maioria das igrejas reformadas só tenha adotado o órgão no século XVII, e algumas apenas no século XIX, Martinho Lutero inicialmente criticou o uso desse instrumento, mas os luteranos eventualmente passaram a usá-lo para acompanhar os corais. Em contraste, João Calvino implementou práticas litúrgicas específicas em Genebra que refletiam sua teologia e visão sobre a adoração. Ele restringiu o canto congregacional exclusivamente aos Salmos e textos bíblicos, proibindo o uso de hinos não bíblicos e a formação de coros. Calvino rejeitou o uso de instrumentos musicais no culto, preferindo o canto a cappella em estilo homofônico e silábico, visando à clareza e à compreensão das palavras cantadas. Ulrico Zuínglio também aboliu os órgãos de tubos, justificando-se com a ausência de referências bíblicas ao instrumento. Os Anabatistas, influenciados por Zuínglio, destruíram órgãos de igrejas em 1535. Durante a Reforma Anglicana, muitos órgãos foram desativados devido à sua associação com o Catolicismo, e os Puritanos destruíram órgãos durante o reinado de Elizabeth. Com a Restauração da Monarquia em 1660, o uso do órgão voltou à liturgia anglicana. A reforma holandesa, por sua vez, seguiu a teologia calvinista.
A Igreja Católica Romana, no Concílio de Trento (1545-1563), conhecido como a Contrarreforma, permitiu a participação dos fiéis em determinadas partes da missa; contudo, a maior parte da celebração ainda continuou reservada aos celebrantes. O Concílio de Trento regulamentou e controlou a prática musical, incentivando a simplicidade e o cantochão. Somente em 1600 foi publicado o Caeremoniale Episcoporum (Cerimonial dos Bispos), que estabeleceu regras para o uso do órgão na liturgia católica. Em oposição à prática protestante, que fazia amplo uso litúrgico do órgão de tubos, o Caeremoniale Episcoporum restringiu os momentos de atuação do órgão, assim como os dias apropriados para seu uso. O repertório oficial da liturgia católica continuou sendo o cantochão, considerado a forma principal de canto litúrgico, com a permissão do Cantus organalis (canto de órgão, forma primitiva de polifonia).
Foi também no Concílio de Trento – mais especificamente no dia 17 de setembro de 1562 – que o uso do órgão de tubos foi oficializado na liturgia da Igreja Católica Romana. Na sessão XXII, sob o pontificado de Pio IV, no Decretum de Observandis et Evitandis in Celebratione Missae (Decreto sobre o que se deve observar e evitar na celebração da Missa), há a seguinte referência ao órgão de tubos: “Apartem também das Igrejas aquelas músicas, onde assim no órgão, como no canto, se mistura alguma coisa impura e lasciva; e do mesmo modo todas as ações seculares, conversações vãs e profanas, passeios, estrépitos, clamores; para que a casa de Deus pareça, e se possa chamar com verdade Casa de oração” (REYCEND, 1781, Tomo II, p. 113). Esse trecho enfatiza a necessidade de pureza e solenidade no culto, incluindo a música e o uso do órgão, garantindo que o ambiente da igreja seja verdadeiramente reverente e adequado para a adoração.
Adotado para o acompanhamento congregacional e dos grupos corais nas Igrejas Protestantes ainda no século XVII, o órgão de tubos passou a ser amplamente utilizado em todas as épocas do calendário litúrgico. Na liturgia protestante, o organista desempenha o papel de “regente congregacional”, pois o órgão não é um simples acompanhador, mas sim o condutor dos fiéis nos cânticos congregacionais. O organista é responsável pelas introduções dos hinos, determinando o andamento, a tonalidade e o caráter do hino. Durante as estrofes, o organista orienta a respiração entre as frases e, por meio de diversas registrações, conduz a dinâmica das estrofes em harmonia com o texto poético.
Nesse novo ambiente litúrgico dos países protestantes do centro-norte europeu, a organaria tem um amplo impulso. No Período Barroco são construídos grandes órgãos de tubos com mais de dois manuais e pedaleira. Ampliou-se a extensão dos manuais e são enriquecidos na quantidade e variedade de registros, sendo provido de uma variedade de timbres e de harmônicos. Neste impulso da organaria ocorre a chamada “Era de Ouro” do órgão, 1740 a 1790; logo após, o ‘Triunfo da Tecnologia’, 1790 a 1890. Enquanto isso, nessa época, no sul da França, Itália e Península Ibérica, os órgãos de tubos possuíam apenas um manual dividido, raramente dois manuais, sem pedaleira, e, em alguns exemplares, botões de baixo, principalmente para fornecer um suporte harmônico básico. Na Península Ibérica, essa realidade permaneceu até o final do século XIX.
No século XVIII, durante a chamada “era de ouro” do órgão de tubos, Wolfgang Amadeus Mozart relatou, em sua correspondência, uma visita ao organeiro J.A. Stein em Augsburgo, em 1777. Ao manifestar seu desejo de tocar um dos órgãos de Stein, Mozart enfrentou surpresa por parte do organeiro, mas respondeu com admiração, chamando o órgão de ‘O Rei dos Instrumentos’.
O órgão de tubos, com sua rica paleta sonora, é incomparável em sua capacidade de preencher o espaço sagrado e de guiar o canto da congregação, proporcionando uma base sólida que sustenta e eleva a adoração coletiva. Com sua sonoridade imponente e, quando tocado com a articulação adequada à acústica do templo, o órgão é capaz de guiar o canto congregacional, seja em uma pequena capela ou em uma imensa catedral. Uma ótima analogia desse tema encontra-se em I Coríntios 14:8-9: “Porque, se a trombeta der sonido incerto, quem se preparará para a batalha? Assim também vós, se com a língua não pronunciardes palavras bem inteligíveis, como se entenderá o que se diz?” O órgão, em sua majestosa sonoridade e liderança musical, atua como a voz clara que guia a congregação na adoração. Ele não apenas acompanha, mas também conduz e dá forma ao louvor, garantindo que as preces e cânticos sejam elevados com precisão, intensidade e espírito de adoração. O organista, como “regente congregacional”, se torna um canal que, através do som do órgão, unifica e conduz os corações dos fiéis, transformando o ato de adorar em uma experiência harmoniosa e reverente, capaz de elevar as almas em direção ao Criador. Por sua variedade sonora, que vai de suaves pianíssimos a imponentes fortíssimos, e à sua diversidade de timbres, que incluem flautados (bordões), registros de palhetas e até um tutti, o órgão se adequa perfeitamente a todos os momentos litúrgicos.
Por sua capacidade de produzir sonoridades que vão do mais suave sussurro ao mais grandioso clamor, o órgão de tubos reflete a natureza divina do Criador. Assim como o som do órgão pode preencher um templo com força avassaladora ou acariciar os corações com delicadeza, Deus é, ao mesmo tempo, majestoso e poderoso, capaz de mover montanhas, mas também amoroso, trazendo conforto e paz às almas necessitadas. O órgão, com sua complexidade e beleza imensas, é uma metáfora perfeita para o Deus que, com poder absoluto, criou o universo e cuja essência envolve amor incondicional e ternura infinita.
Por outro lado, a sonoridade do órgão de tubos, que vai dos tons mais suaves aos acordes mais grandiosos, ecoa e eleva as preces e falas humanas ao Criador, traduzindo momentos de contrição, alegria, fervor, adoração e louvor, ajudando a expressar a profundidade de cada emoção e devoção espiritual. Nesse sentido, o mais tocante e mais significativo elogio que já recebi como organista litúrgico foi: “Como você consegue, com o órgão, nos conduzir à adoração.”
Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.), em Confissões, descreve profundamente o impacto da música na alma e como ela pode aproximar o ser humano de Deus. A música sacra tem o poder de despertar emoções profundas e levar a alma a contemplar a grandeza e o amor divino. Assim, Santo Agostinho escreve: “Quanto chorei nos teus hinos e cânticos, fortemente comovido pelas suaves vozes da tua Igreja que soavam! Essas vozes entravam em meus ouvidos, e a tua verdade destilava-se em meu coração, e daí inflama-se um sentimento de piedade, e corriam lágrimas, e eu me sentia bem com elas.” (Confissões, Livro IX, Capítulo 6). Por outro lado, Friedrich Nietzsche (1844-1900), que também era músico, deixou registros de sua admiração pela grandiosidade do som do órgão. Ele relatou sua emoção ao ouvir o instrumento em diversas ocasiões, destacando seu impacto profundo. Em uma de suas obras, ele escreveu: “O que é o som do órgão senão a voz de uma catedral falando? Nada mais atinge os sentimentos tão profundamente, nada faz estremecer o chão de modo tão poderoso.”
Portanto, ao longo de sua trajetória eclesiástica, o órgão de tubos tem estado presente na liturgia cristã por quase 1.400 anos. No século VII, o órgão passou por uma espécie de ‘conversão ao cristianismo’, sendo incorporado ao culto religioso. No século XVI, durante a Reforma Protestante, ele não foi adotado de imediato pelos reformadores, mas posteriormente foi integrado como um instrumento litúrgico nas Igrejas Reformadas.
Em suma, no ambiente litúrgico, o órgão de tubos transcende o papel de mero instrumento musical, assumindo a função de condutor do canto congregacional, de acompanhamento de coros e nos momentos instrumentais do culto, enriquecendo as cerimônias com sua sonoridade majestosa e abrangente. Ao longo dos séculos, demonstrou sua eficácia na elevação espiritual e na condução harmoniosa da adoração coletiva. Quando oficializado na liturgia cristã, o órgão de tubos tornou-se um símbolo do Cristianismo, consagrado como o instrumento próprio para o culto divino, um instrumento litúrgico por excelência, capaz de conferir solenidade às cerimônias religiosas. Assim, o órgão de tubos permanece como um legado sonoro de transformação e devoção, uma testemunha da história da fé cristã. Transformado de seu passado secular e pagão, tornou-se um instrumento sacro e litúrgico, um símbolo sonoro de profunda transformação e devoção, capaz de tocar corações e elevar almas em majestoso louvor e adoração.
*Dr. Handel Cecilio – Organista e Pianista – Concertista Internacional; Professor de Música – Músico em eventos – www.handelcecilio.com