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Publicações sistematizadas do acervo do Museu Mariano Procópio, que pertenceram ao segundo imperador brasileiro - créditos: MMP
22-02-2025 às 10h00
Sérgio Augusto Vicente
Integralmente reaberto ao público em 31 de maio de 2023, o Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG), possui uma grande diversidade de acervo em seu circuito expositivo e nas áreas de reserva técnica. Além de móveis, pinturas, medalhas, moedas, armas, minerais, animais empalhados, indumentária e outras categorias de objetos, a instituição conta com uma importante Biblioteca. O setor, inaugurado em 27 de junho de 1939 como “Biblioteca-Arquivos”, passou a existir oficialmente três anos após o fundador da instituição, Alfredo Ferreira Lage, doar todo o complexo paisagístico-arquitetônico e seu acervo à Prefeitura Municipal de Juiz de Fora.
O evento de inauguração da “Biblioteca-Arquivos”, que contou com a presença de diversas autoridades, significou o primeiro esforço de institucionalização do acervo de livros, periódicos, documentos e fotografias oriundos do acervo particular da família Ferreira Lage e adquiridos por meio de compras e doações de pessoas ligadas ao círculo social de Alfredo Ferreira Lage. Amélia Machado Cavalcanti de Albuquerque, sua prima, era uma delas. Conforme consta nos relatórios administrativos da instituição, somente em 1939, a Viscondessa de Cavalcanti (como se tornou conhecida) doou 692 obras, as quais passaram a constituir “uma nova dependência na Biblioteca”.
O acervo bibliográfico reflete o perfil colecionista de seu fundador, intelectualmente marcado pelo gosto eclético e enciclopédico muito característico dos chamados “homens de letras e ciência” do século XIX e início do XX, que tinham a pretensão de enveredar-se pelas mais diferentes áreas do saber. Em um breve percurso por entre as estantes do setor, são encontrados, por exemplo, livros de história da arte e literatura dividindo espaço com obras de direito, botânica, mineralogia e aritmética.
Outro aspecto que chama atenção é o considerável número de obras portadoras de “marcas” de seus antigos proprietários, como carimbos, assinaturas, dedicatórias, ex libris e anotações marginais. Se, por um lado, alguns livros já “nascem” personalizados desde a sua concepção editorial, recebendo impressão e encadernação destinadas exclusivamente a determinado indivíduo, por outro lado, muitos exemplares se singularizam pelo tempo, após percorrerem diferentes contextos e serem marcados pela personalidade de quem os possuiu. Além de configurarem vestígios históricos importantes para o mapeamento da trajetória percorrida por essas obras, as marcas de propriedade e de proveniência contribuem para o delineamento da identidade das coleções.
Sendo uma biblioteca inserida em uma instituição museológica, seus exemplares são valorizados não apenas pelo conteúdo que possuem (valor intrínseco), mas também pela procedência e elementos estéticos que os compõem (valor extrínseco). Uma vez considerados objetos museais, os livros precisam ser tratados como objetos simbólicos dotados de historicidade. Não é fortuito, portanto, que todos os vestígios representativos da relação livro-proprietário, sujeito-objeto, merecem especial atenção dos pesquisadores, que se debruçam sobre a função, origem, usos e significados simbólicos dessas marcas.
Foi pensando nessa abordagem que os historiadores Sérgio Augusto Vicente e Priscila da Costa Pinheiro Boscato efetuaram o levantamento de todo o acervo bibliográfico do Museu Mariano Procópio, por meio do qual foram identificados, levantados e registrados todos os itens portadores de marcas de propriedade, possibilitando a produção de diversos catálogos temáticos ao longo dos últimos anos.
Em 2025, ano em que se comemoram 200 anos do nascimento de D. Pedro II, os historiadores da instituição chamam atenção para um desses instrumentos de pesquisa em especial. Trata-se de um catálogo que reúne e sistematiza informações referentes a um conjunto de publicações personalizadas que pertenceram à família imperial brasileira. Apesar de tratar-se de um quantitativo pequeno, esse conjunto é bastante relevante e significativo historicamente, considerando-se tanto o conteúdo intelectual para o qual esses itens servem de suporte quanto as características que os personalizam e individualizam sob o ponto de vista da cultura material, através de anotações, dedicatórias, encadernações brasonadas, monogramas, etc.
O referido catálogo abrange apenas as publicações que pertenceram ao imperador D. Pedro II, à sua esposa, D. Teresa Cristina, e a D. Luís, neto do casal – que dedicou uma obra de sua autoria à Viscondessa de Cavalcanti. Com exceção desta última, todas as outras foram publicadas na segunda metade do século XIX. São obras que contemplam os mais variados temas, quais sejam: literaturas indianista e de viagem, exposição universal, economia, história da igreja da Candelária e homenagem imperial.
Trata-se de uma amostragem por meio da qual é possível mapear parte da rede de sociabilidade e de interlocução dos escritores oitocentistas – sobretudo daqueles que integravam, orbitavam ou dialogavam com o universo da realeza brasileira, antes e depois da Proclamação da República no Brasil. Ademais, essas publicações podem ser consideradas objetos simbólicos constitutivos da história intelectual de um Estado-Nação em processo de construção. Elas deixam entrever olhares de homens de letras preocupados com a busca e a consolidação de uma identidade nacional ancorada em valores ainda arraigados à tradição do romantismo e aos conceitos de evolução e civilização europeus.
Um dos livros, por exemplo, corrigido pelas mãos do imperador D. Pedro II antes de sua versão final pela Tipografia Nacional, denota a preocupação de uma elite ilustrada com a imagem do país diante do mundo. Dentro desse repertório de preocupações, saltam aos olhos os desconfortos gerados pela recalcitrante permanência do regime escravocrata em um país que foi o último a aboli-la, em face de um cenário no qual essa prática opressora era vista como entrave institucional ao avanço e progresso civilizatórios.
Muitas dessas obras, ao terem suas encadernações personalizadas com o brasão imperial e o monograma de D. Pedro II, denotam sintonia com a ritualística monárquica e suas etiquetas de deferência e distinção conferidas ao chefe da nação. Tudo isso contribuía para reforçar a sua representação como mecenas das artes, das letras e da ciência, até mesmo quando as bases de sustentação da monarquia ruíam. O exemplar da clássica obra do indianismo brasileiro, Confederação dos Tamoios, contemplada nesse catálogo, não nos deixa mentir, quando nele se verifica uma carta na qual o mordomo da casa imperial solicita ao autor uma encadernação especial para Sua Majestade.
Sob olhares eurocêntricos e elitistas que perscrutavam o interior de um país continental ainda repleto de mistérios a serem desvendados, é possível também entrever personagens históricos silenciados ou poucos conhecidos pela história oficial. Podemos citar aqui o caso de Delfina da Cunha, mulher escritora cega, que, valendo-se de suas habilidades poéticas, dedicou alguns de seus versos ao imperador brasileiro. Não menos emblemático é o negro baiano Lucas, ícone da resistência à escravidão, condenado à morte em praça pública e, posteriormente, representado por Alexandre José de Moraes Filho em Cantos do Equador (1881). E, por fim, o negro Paula Brito, que não obstante sua origem pobre, tornou-se escritor e um dos precursores do campo tipográfico e editorial brasileiro, sendo responsável, inclusive, por imprimir títulos de grandes nomes da literatura nacional, como os de autoria do também negro Machado de Assis. Todos esses personagens da nossa história podem ser enxergados nas publicações reunidas nesse catálogo, através de “leituras em contrapelo”, nome que o historiador italiano Carlo Ginzburg atribui ao esforço crítico de enxergar, por entre as tramas e a tessitura do discurso das elites, atitudes e ações de indivíduos e grupos subalternizados pelo patriarcalismo e a “ideologia senhorial”.
Contudo, para além dessas reflexões sobre história social e história da literatura, as publicações levantadas e descritas nesse catálogo nos dão a dimensão dos diferentes aspectos que envolvem a história do livro, da leitura e do colecionismo. Para além dos conteúdos intrínsecos das obras, é preciso atentarmos para o seu valor simbólico enquanto “objetos biográficos” dotados de longas trajetórias percorridas. Trajetórias atravessadas por marcas e vestígios recebidos daqueles que os possuíram antes de chegarem à Biblioteca do Museu Mariano Procópio.
O conjunto de obras reunidas nesse catálogo se mostra coerente com uma das facetas do colecionismo de Alfredo Ferreira Lage, fundador do Museu Mariano Procópio. Cada um desses itens bibliográficos se inscreve nos termos de uma prática colecionista atrelada aos esforços de perpetuação da memória monárquica brasileira.
A expectativa é a de que esse trabalho venha a complementar os instrumentos de pesquisa produzidos sobre a família imperial brasileira em outros setores do Museu Mariano Procópio, como os Arquivos Histórico e Fotográfico e a Reserva Técnica. Acredita-se que, assim, ele será útil não apenas às atividades internas desenvolvidas pela instituição – subsidiando a realização de exposições e atividades educativo-culturais das mais variadas – como também às investigações dos pesquisadores externos que acorrem ao primeiro museu de Minas Gerais para a realização de seus trabalhos. Por fim, é preciso destacar o quanto essa iniciativa poderá favorecer o mapeamento e a complementação das informações relativas ao acervo imperial, que se encontram dispersas em diversas instituições de memórias, dentro e fora do Brasil.
Considerando a relevância desse trabalho, acreditamos na possibilidade de vê-lo publicado em um futuro não muito distante, a depender da captação de recursos para tal. Por enquanto, os interessados em consultá-lo deverão fazê-lo mediante agendamento prévio, através do e-mail pesquisamapro@pjf.mg.gov.br. Feito o agendamento, o/a interessado(a) poderá realizar essa consulta presencialmente na instituição.