
01-03-2025 às 08h08
Rosane Carmanini Ferraz (*)
A fotografia é um objeto simbólico, vetor de construção de subjetividade e representação de trajetórias pessoais. Mas é também fonte de informação e um importante meio pelo qual se observa e interpreta diferentes tempos históricos e grupos sociais. Carrega em si uma combinação do valor de culto e valor de exibição que são sensivelmente alterados quando uma imagem passa a integrar o acervo de um museu ou centro de memória. Ou seja, no contexto museal, a fotografia se ressemantiza, produzindo discursos e efeitos diversos. A coleção de fotografias do Museu Mariano Procópio, um dos primeiros museus do Brasil e o primeiro museu de Minas Gerais, fundado em 1921 pelo colecionador Alfredo Ferreira Lage, traz consigo tais características, além de ser representativa do colecionismo de fotografias da segunda metade do século XIX e século XX.
Os documentos iconográficos sob a guarda do Arquivo Fotográfico do Museu Mariano Procópio compreendem, atualmente, mais de 36 mil imagens de caráter histórico e institucional, dentre as quais exemplares das mais relevantes técnicas da história da fotografia, tais como: daguerreótipos, ferrótipos, ambrótipos, negativos de vidro e flexíveis, fotos-pinturas, fotografias esmaltadas, fotografias albuminadas em formato estereoscópico, carte de visite, carte cabinet, cabinet size, carte imperial e outros formatos diversos, cartões-postais, diapositivos, e fotografias do século XX, em cores e em preto-e-branco.
A origem da coleção de fotografias do Museu Mariano Procópio se confunde com a própria história da família Ferreira Lage. Há registros de álbuns e itens que pertenceram a Mariano Procópio e Maria Amália Ferreira Lage, e aos filhos do casal, Frederico e Alfredo, que também eram fotógrafos amadores. A sobrinha de Mariano Procópio, Amélia Machado Cavalcanti (Viscondessa de Cavalcanti), também foi importante doadora de acervo, desde álbuns fotográficos a cartões-postais. Portanto, a formação da coleção de fotografias da instituição está relacionada ao colecionismo privado das famílias Ferreira Lage e Cavalcanti.
O núcleo inicial da coleção é composto, em sua maioria, por cerca de 1.500 imagens oitocentistas, de diferentes técnicas e formatos, majoritariamente encartadas em álbuns, que são considerados por muitos pesquisadores grandes livros do século XIX. É provável que as narrativas dos álbuns tenham sido construídas pelos próprios colecionadores, assim como a seleção das imagens. Tais imagens eram adquiridas em estúdios dos “fotógrafos de vistas e retratos”, notando-se a predominância de temas como retratos individuais e coletivos, vistas urbanas e paisagens, fotografias de viagens, além de registros de fatos históricos. Dentre os álbuns adquiridos, ressaltam-se importantes coletâneas de cidades europeias como Milão, Roma, Marienbad e Constantinopla (atual Istambul), e diversas cidades brasileiras, com destaque para o Rio de Janeiro – sede do poder imperial. Estes documentos denotam as características de um colecionismo de cunho privado, além de temas relacionados à atuação das famílias Ferreira Lage e Cavalcanti no cenário político e social da segunda metade do século XIX e início do século XX.
Quanto aos retratos, observa-se a predominância das representações da parentela e das redes de sociabilidade das famílias colecionadoras, notadamente dos diversos membros da Família Imperial e da nobreza brasileira. A elite nobiliárquica europeia, monarcas, artistas, intelectuais e cientistas completam o panteão de personagens “ilustres” da coleção. Os diversos “tipos humanos”, de negros a nativos indígenas, passando por diferentes registros que retratavam os ofícios urbanos, completam a coleção de retratos, mesmo que subtraídos de si a identidade, colecionados pelo seu caráter de exemplaridade e exotismo.
Num contexto mais amplo, as coleções do Arquivo Fotográfico do Museu Mariano Procópio trazem importantes referências estéticas, históricas, culturais, antropológicas e científicas. Estes registros iconográficos são importantes fontes de estudos relacionados às mais diferentes áreas do conhecimento.
Grande parte dos fotógrafos presentes na coleção é formada por europeus ou por profissionais com ascendência europeia, com inserção de algumas imagens produzidas por fotógrafos do Oriente Médio, da América do Norte, além da presença significativa de profissionais de maior relevância nos cenários nacional e local. Destacam-se mestres da fotografia mundial, como Nadar, Disdéri, Angerer, Pierre Petit, Reutlingler, Giorgio Sommer, Pascal Sebah, Neurdein, e grandes nomes da fotografia oitocentista no Brasil, como Marc Ferrez, Revert Henry Klumb, Insley Pacheco, Georges Leuzinger, Henschel, dentre outros.
Com a doação do Museu Mariano Procópio à municipalidade em 1936 por Alfredo Ferreira Lage, o conjunto documental se transforma em uma coleção de caráter permanente e
público, que, ao longo do tempo, se desdobraria e ampliaria, com a incorporação de novas doações. Dentre elas, podemos destacar parte da documentação iconográfica de empresas como a Cia. Pantaleone Arcuri, através do Conselheiro do Conselho de Amigos do Museu Mariano Procópio e ex-diretor da instituição, Arthur Arcuri, e da empresa Carriço Film, de propriedade do cineasta local João Carriço. O Arquivo Fotográfico ainda recebeu doações de famílias e personalidades da cidade de Juiz de Fora, de instituições como o Exército Brasileiro e de sacerdotes da Igreja Católica, além da transferência de fotografias pela própria Prefeitura de Juiz de Fora. Desta forma, um grande conjunto de documentos avulsos registra personagens, eventos, paisagens, o cenário urbano e o cotidiano do município.
O processo de formação do Arquivo Fotográfico do Museu Mariano Procópio se deu, portanto, através de estratégias diversas: por meio da aquisição de fotografias de personalidades, através da troca de fotografias e cartões-postais entre as redes de sociabilidade das famílias Ferreira Lage e Cavalcanti com a família imperial e outras famílias da elite oitocentista, inclusive com registros de autógrafos e uma significativa comunicação manuscrita em diversos itens documentais. A aquisição de imagens através de viagens e da atuação pública daqueles colecionadores também se configura uma estratégia de formação da coleção, bem como as diversas doações efetuadas a partir da constituição do Museu Mariano Procópio.
O Arquivo Fotográfico do Museu Mariano Procópio teria um importante marco em sua vida social no ano de 1939, com a inauguração do setor “Biblioteca-Arquivos”, sob a coordenação de Geralda Ferreira Armond – prima de Alfredo Ferreira Lage e Diretora do Museu entre os anos de 1944 e 1980. A exemplo da coleção fotográfica, a gênese do acervo de livros, documentos textuais e outros documentos iconográficos está vinculada à documentação pessoal e aquisições das Famílias Ferreira Lage e Cavalcanti, e de doações por pessoas que faziam parte do círculo social dos colecionadores. Sendo assim, pode-se afirmar que Alfredo Ferreira Lage sustenta uma forma de coleção de si e dos seus como um ato autobiográfico. Considerada uma das últimas realizações do colecionador, a iniciativa de criação do setor demonstra sua preocupação em organizar o acervo de caráter histórico e documental.
Do período de transição da gestão de Alfredo Ferreira Lage até o final da década de 1970, quando se inicia o processo de reestruturação do Museu Mariano Procópio, não havia uma equipe técnica em condições de realizar o tratamento adequado do acervo e a organização
dos documentos, no que se refere aos procedimentos técnicos como catalogação e indexação.
Na década de 1980, através de um projeto, fruto de parceria entre a Prefeitura de Juiz de Fora e a Fundação Nacional de Artes (Funarte), definiu-se um espaço específico para acondicionamento do Arquivo Fotográfico e as políticas de preservação e conservação do acervo, além da implantação do laboratório fotográfico, no ano de 1987.
A década de 1990 marca o avanço no trabalho de identificação, catalogação e reprodução do acervo em negativos de segunda geração e em papel. Nesse período, foi realizada, ainda, a contabilização parcial das imagens do acervo, sob a coordenação de Narcise Szymanowski, fotógrafo e pesquisador na área da história da fotografia. A identificação de vários retratados e diversos fotógrafos e, portanto, o primeiro esforço de pesquisa e qualificação deste acervo se deve ao trabalho dessa equipe. Houve, além disso, um intenso trabalho de difusão da coleção, através do atendimento de um número significativo de pesquisadores e produção de dezenas de exposições temporárias.
Após um período de descontinuidade do trabalho técnico por falta de uma equipe qualificada, desde o ano de 2007, o acervo tem recebido tratamento de conservação preventiva, envolvendo ações de higienização, intervenções de restauro e acondicionamento técnico. Procedeu-se também à contabilização total do acervo sob a guarda do Arquivo Fotográfico. Deu-se início ao processo de elaboração de catálogos temáticos das coleções, com ênfase na pesquisa histórica sobre o acervo, seus colecionadores e fotógrafos, incluindo, quando possível, a identificação de procedência, revisão e elaboração de fichas de catalogação, bem como a digitalização das imagens.
É importante destacar que o trabalho de catalogação e processamento técnico dos documentos visuais é de fundamental importância na rotina de trabalho dos museus. Os catálogos, inventários e levantamentos são relevantes instrumentos de busca, com vistas à segurança e divulgação do acervo, agilidade no atendimento às pesquisas internas e externas, evitando o excessivo manuseio do acervo original e contribuindo para sua conservação.
Nesse sentido, a digitalização, pesquisa, identificação, catalogação e difusão das coleções representam a possibilidade de novas fontes de estudo e novos olhares sobre o nosso passado. Tais ações propiciam que as imagens sejam ressignificadas por diferentes públicos, em diferentes momentos históricos. Essas imagens, transitando por diferentes
gerações, ganham sentido de novidade e ressignificação ao serem articuladas pela historicidade do presente. As ações alicerçadas no chamado “tripé museológico” – preservação, pesquisa e difusão – têm propiciado a qualificação desse acervo, atestando a relevância do Arquivo Fotográfico do Museu Mariano Procópio como um dos mais importantes acervos públicos iconográficos brasileiros.
(*) Rosane Carmanini Ferraz é licenciada e bacharel em História, especialista e mestre em Ciência da Religião e doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Graduanda em Museologia pela UNIASSELVI. Professora de História e historiadora, é Agente de Suporte Acadêmico no Mestrado em Gestão da Educação Pública, da Fundação CAEd/UFJF. Atualmente, é Supervisora de Gestão de Acervos Bibliográfico, Fotográfico e Documental no Museu Mariano Procópio, onde se dedica à preservação, pesquisa histórica, processamento técnico e difusão de acervos e integra a equipe de curadoria das exposições da instituição.