
Caminhar pelas ruas, sem direção, sem destino, sem hora marcada nem para ir, nem para voltar. CRÉDITOS: Divulgação
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21-03-2025 às 10h01
Sérgio Fialho Antunes*
Era um menino que caminhava pela cidade.
Ele gostava de caminhar e assim seria toda a sua vida.
Caminhar pelas ruas, sem direção, sem destino, sem hora marcada nem para ir, nem para voltar.
Perdia-se pela cidade e pelas cidades por onde andou. Muitas as cidades na vida deste menino que percorreu as margens do Guamá, em Belém, assim como as margens do rio Guaíba, em Porto Alegre, e do Chuí, na fronteira.
Percorreu, ainda, as calçadas de Ramirez como as de Pocitos, as calçadas do Leblon como as calçadas da Ilha dos Araújos, em Valadares, e as calçadas da Lagoa Paulino, em Sete Lagoas.
Neste seu andar pelas ruas, calçadas e praias aconteceu que uma madrugada – ah! não havia hora de caminhar. Era qualquer hora, a hora que dava, na manhã, à tarde ou à noite ou na madrugada.
Como estávamos falando, aconteceu que, em uma destas madrugadas, um amigo o seguiu, encabulado com aquele perambular e o surpreendeu conversando com uma casa.
Isto foi há muito tempo, foi há tanto tempo que o tempo passado parece o tempo das historinhas de rei e rainha…
Era uma vez… há muito tempo… quando numa madrugada.
Vamos lá, no sério. Madrugada, céu iluminado de estrelas, no final de maio, dia 31 de maio, quando no hemisfério sul, o céu faz piruetas de estrelas e de belezas – há quem diga que nestas noites as estrelas brincam e que muitos meninos fogem das estrelas querendo chamá-las para brincar de esconde esconde e de pique – pois foi debaixo de tantas estrelas que ele foi apanhado conversando animadamente com uma casa.
Conversa animada, conversa de voz baixa, quase mímica.
- Você está conversando com quem?
O menino revelou que muitas casas, em certas noites, ele não sabia se por causa das estrelas ou do céu ou por ser Maio, muitas casas gostavam de conversar.
Aquela, por exemplo, era a casa azul, uma casa sempre alegre e animada. Aquela noite, entretanto, ele ainda conversaria com a casa amarela, quase na esquina da rua Camões. Há dias que ela pouco falava, estava muito triste e os dois foram até lá.
- Talvez você consiga animá-la.
Para aquela casa sua tristeza maior era que ali morava a menina mais bonita da rua, a menina mais alegre e feliz da cidade e que ela, a casa, sabia que a sua menina estava triste e isto é que a fazia triste também. A casa entristecia-se.
- Vamos conversar com a menina.
- Vamos conversar com a casa.
No dia seguinte, o menino chegou cedo na casa amarela, pois aceitara a proposta do amigo. O amigo não foi, ele não conseguiu ouvir nada e já tinha certeza de que aquilo tudo era muita loucura para o seu gosto.
O menino chegou sozinho.
A casa devia estar vazia. Ninguém respondia à campainha. Esperou. Apareceram três homens, abriram a porta. Entraram na casa e permitiram que o menino os acompanhasse.
A casa estava vazia e ali, o engenheiro, o novo dono da casa e um chefe de pedreiro discutiam a demolição.
Dali viria um prédio de três andares, seis apartamentos, com garagem. Decidiam tudo, enquanto o menino percorria os cômodos vazios.
A casa lhe mentira ou a casa não falara a verdade para ele ou casa falar era coisa da sua cabeça. Num dos cômodos, uma parede minando chamou-lhe a atenção.
- Este vazamento aqui não existia, temos que verificar de onde esta água vem, pois não há nenhum cano passando por aqui.
O menino ouviu o engenheiro e passou a mão na parede úmida. Eram lágrimas. O povo daquela casa morava agora num sítio em Raposos. A menina existia e já era a menina mais bonita de Raposos.
Ela e seus pais voltaram no dia seguinte para buscar três ou quatro coisas que deixaram para trás.
Amanhecia, quando o menino parou na frente da casa amarela. Feliz, ela queria contar para ele – para um dia escrever toda a sua história – a história da sua vida de casa, abrigando, amando.
Aquela menina nascera ali, agasalhara-se ali, mamara nos peitos da sua mãe vigiada por aquelas paredes protetoras e carinhosas.
A casa amarela sorria feliz enquanto chegavam os homens, trazidos de caminhão, que naquele dia iniciariam a demolição.
Amanhecia.
No céu já não havia mais estrelas.
* Sérgio Fialho Antunes é jornalista