
O marcador de páginas - créditos: divulgação
Marcelo Galuppo
Minha mulher já dorme há mais de uma hora. Começo a sentir sono. Está na hora de fechar o livro. Herman Hesse terá de esperar até amanhã para que eu termine sua história. A caixa de vime sobre a mesa de cabeceira guarda uma infinidade de coisas, de pílulas para dor de cabeça a um canivete suíço e uma pequena lanterna, para qualquer emergência que ocorra durante a noite. Há também alguns marcadores de páginas, comprados em viagens. Pego um, de tecido, com um grafismo eslavo, geométrico, com pequenos losangos entrelaçados em preto, branco e vermelho, e uma farta borla branca, que deixo para fora do livro ao fechá-lo, entre a página 128 e 129. Comprei-o em Bucareste, há três anos. Graças ao marcador de páginas, a memória pode desocupar-se de lembrar a página em que parei. Ele me permite parcelar a leitura em fragmentos que cabem em minha rotina.
A passagem do liber, um rolo com um texto escrito, do qual só guardamos o nome, para o codex, um conjunto de páginas costuradas para permanecerem presas umas às outras, representou uma tecnologia que alterou não apenas o modo como concebemos o livro, mas também como lidamos com ele.
Santo Agostinho, no final do século IV, ainda conhecia os libri (plural de liber), mas provavelmente lia mais codices (plural de codex), que os cristãos haviam adotado com entusiasmo para reunir todas as escrituras do Antigo e do Novo Testamentos em um objeto de fácil consulta. Nas Confissões, sua obra mais importante, ele relata ter aberto um codex contendo as Epístolas do apóstolo Paulo para encontrar as palavras que selaram sua conversão. Fechou-o logo em seguida, impactado pela leitura, mas poderia retornar facilmente ao ponto em que parou, pois já compartilhava conosco a comodidade de fechar o livro e de recomeçar depois a leitura sem dificuldade.
Desde a Idade Média, nossa relação com os livros mudou. Quando se lia um rolo, era preciso fazê-lo de modo ininterrupto, pois uma pausa poderia implicar abri-lo no ponto errado, lendo-se novamente o que já fora lido ou perdendo-se algum fragmento ainda não lido do texto. Imagine a dificuldade de se marcar onde a leitura foi interrompida em um rolo com vários metros de extensão.
Também é provável que nossa memória tenha se tornado menos eficaz para guardar aquilo que lemos. Quando se lia um rolo, era preciso que ela trabalhasse de maneira muito mais ativa para manter na imaginação aquilo que se lia. Agora, com o marcador de páginas, nossa memória é cada vez menos requerida (e a memória é como um músculo que, quando não é exercitado, atrofia-se e torna-se inútil para aquilo a que se destinava).
O marcador de páginas, essa prótese da memória, representa, portanto, uma mudança em nossa relação com a leitura. Antes, ler um texto requeria abrir espaço no cotidiano para essa atividade, e isso possivelmente implicava reservar horas para ela. O marcador de páginas fez com que a leitura se encaixasse mais comodamente entre duas atividades. Por causa dele, lê-se no tempo que sobra, lê-se cada vez menos, lê-se cada vez pior.
Penso em rebelar-me, em retirar o marcador de onde o coloquei, chego até a abrir o livro com esse propósito, mas, ao ver o objeto exatamente onde o deixei, reparo na beleza de sua trama e imediatamente me lembro da Romênia, com sua aguardente de ameixa, suas igrejas com seus cantos bizantinos, suas lendas sobre o conde Vlad Tepes. Lembro-me da arquitetura da capital, que me recordou Buenos Aires, e de seus taxistas, que também me fizeram recordar seus colegas portenhos, no que têm de pior. Lembro-me de jantares com amigos, e de passar a mão por uma moita de alecrim e perceber que ele exsudava um óleo aromático. Lembro-me da mansão de Ceausesco e do Palácio do Povo. Lembro-me de entrar em livrarias procurando CDs de Enescu, livros de Cioran e cerâmica Horezu. Lembro-me de uma loja de caramelos que havia em frente ao hotel, onde comprei vários para meus filhos. Percebo, então, que o mesmo objeto que prejudica minha memória também a excita e aviva. Fecho o livro novamente sem retirar o marcador, coloco-o sobre a mesa e apago a luz. Minha última lembrança foi de um padre que insistiu em ungir a mim e à minha mulher durante uma missa, apesar de não sermos Ortodoxos. Faço as pazes com o marcador de páginas. Adormeço.
1 Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG, e autor do livro Os sete pecados capitais e a
busca da felicidade, da editora Citadel, dentre outros. Ele escreve quinzenalmente aos domingos no
Diário de Minas.

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