
Agradável momento de uma boa leitura - créditos: divulgação
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23-03-2025
Marcelo Galuppo[1]
Certa vez Rubem Alves disse que tinha horror ao hábito da leitura. Hábitos são escovar os dentes, exercitar-se, acordar cedo, coisas que são em si mesmas desprazerosas, mas a que continuamos nos dedicando porque, apesar disso, fazem bem para nós. O que ele queria era que as pessoas tivessem amor à leitura.
Qualquer um entende o ponto de Rubem Alves, mas é um argumento parcial. É claro que há livros que eu leio por puro prazer, livros em que o fim da atividade é ela mesma, mas há também livros que leio porque me deixam mais preparados para lidar com o mundo à minha volta, ainda que o esforço para os ler seja enorme. Alguém que diga que ler o filósofo Immanuel Kant é tão prazeroso quanto ler Machado de Assis ou não leu Kant, ou não leu Machado.
A civilização lutou por milênios para desapegar o que precisa ser feito do que apenas dá prazer, Freud que o diga. Se fôssemos guiados apenas pelo prazer imediato que uma atividade proporciona, estaríamos nos dedicando apenas a ter filhos (desde que não precisássemos criá-los), e não haveria nem penicilina nem casas para morarmos. Possivelmente não haveria também bombas atômicas e guilhotinas, mesmo porque a humanidade não teria passado de sua primeira geração: apesar de parecer ao leitor incauto que se dedicar exclusivamente à reprodução aumentaria a nossa população, certamente nosso destino comum seria a extinção, já que a natureza é nossa amiga, mas nem tanto assim.
Se é verdade que o desejo depende em parte da escassez, por outro lado o gosto forma-se pela frequentação. Quando era criança, odiava o sabor amargo do café, mas com o tempo aprendi a apreciá-lo, e tanto, que hoje considero uma heresia, e mesmo um crime, adoçá-lo. Da mesma forma, aprendi a tirar algum prazer da leitura de Kant. Não é tanto o estilo e as qualidades literárias, mas a dificuldade de vencer um texto árido e a verdade que ele contém que caracteriza o prazer de ler um texto de não-ficção
Obviamente há exceções, e alguns ensaios merecem integrar o cânon da nossa literatura. É o caso de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, cujas linhas iniciais são estas: “A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências”. É difícil um ensaio iniciar-se de modo mais elegante que esse, e quem não vê isso é porque não leu suficientes livros para formar o gosto pela norma culta e pelos usos peculiares da língua portuguesa.
É preocupante que cada vez se leia menos: a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil revela que, se 55% dos adultos brasileiros tivera contato com pelo menos um livro em 2007, em 2024 apenas 47% deles teve contato com um livro. Se uma variação de 8% não parece muito grande, saiba que isso corresponde a 11 milhões de pessoas. A média de livros lidos por brasileiros também caiu de 4,95 livros por habitante para 3,96, indicando que temos cada vez menos leitores e que eles também leem cada vez menos.
É claro que informações podem ser obtidas em vídeos, e que também pode-se conhecer o mundo pela internet ou pela televisão, mas o que se perde aí é a ampliação de nossa capacidade imaginativa, que também nos ajuda a compreender o mundo. E, ao não se desenvolver o prazer que decorre da leitura, ficamos presos aos prazeres infantis, deixamos de amadurecer.
Um dos responsáveis por isso é o smartphone que, junto com um acesso irrestrito à internet e às redes sociais, produz o prazer imediato que decorre de rolar os dedos pela tela, sem se fixar em nada: Anna Lembke, autora de Nação Dopamina (e, antes dela, Jaron Lanier, autor de Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais) diz que estamos acometidos de um vício (crescente, como todo vício de natureza química) em navegarmos por horas a fio pelas redes sociais, sem nos concentrarmos em nada, tendo perdido nossa capacidade de focar em algo fora das telas ou mesmo nelas, como mostra Johann Hari, autor de Foco roubado. Com isso, não só a experiência da leitura é-nos subtraída (é difícil concorrer com a vida dos outros, exposta nas redes sociais), como também o gosto pela leitura não se forma, em um círculo vicioso que subtrai a cada ano milhões de adultos do universo dos leitores, que permanecem sendo crianças que gostam de ver desenhos animados e que riem ao ver os outros tropeçando, ao invés de socorrê-los, incapazes de assistir a um concerto ou a uma peça de teatro, e mesmo de apreciar o gosto amargo do café. Não se desenvolve o amor pela leitura sem se trilhar o caminho de seu hábito.
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG, e autor do livro Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, da editora Citadel, entre outros. Ele escreve quinzenalmente aos domingos no Diário de Minas.