O fascismo eterno – surgiu no século 20, na Itália, sem base filosófica
Historicamente se define pelo nacionalismo e pelo autoritarismo. Umberto Eco afirma que o fascismo é eterno e enumerou suas características gerais, que abaixo serão conhecidas
25-07-2023 - 12h:05 - atualizado
Sebastião Gusmão
O Fascismo Eterno é o título da conferência proferida por Umberto Eco (1932-2016; um dos maiores intelectuais de nosso tempo), na Universidade de Columbia, em 25 de abril de 1995, numa celebração da liberação da Europa. Foi, no mesmo ano, publicada em livro e é uma reflexão sobre o sentido da história e a importância da memória. Continua assustadoramente atual e de extrema importância para a compreensão da política e dos totalitarismos que ocorrem através do mundo.
Fascismo passou a ser usado como um termo genérico para designar todas as formas de autoritarismo na sociedade moderna. Isto se deve em parte por ter sido o primeiro regime deste tipo (ditadura de direita) surgido no século 20, na Itália. Embora se apresente sob várias formas e não tenha uma base filosófica, o fascismo define-se historicamente pelo nacionalismo e pelo autoritarismo. Umberto Eco afirma que o fascismo é eterno e enumerou suas características gerais:
1) Culto da tradição, com nostalgia de um suposto passado glorioso e, consequentemente, repulsa pela modernidade. O novo é ofensivo à ordem estabelecida, pois é a própria tradição que mantém a ordem. Em muitos momentos a tradição se confunde com o fanatismo religioso (“Deus acima de todos”). Isso se manifesta em nosso meio por um singular cristianismo fundamentalista (fundamentado na promessa de prosperidade e “milagres”, e na coleta de dízimos), comandado por alguns pastores-empresários que guiam o rebanho de ovelhas fiéis e pautam ações políticas. Fascismo e fundamentalismo estão sempre juntos.
2) O irracionalismo, a ação sem reflexão sem crítica. O pensamento crítico não é tolerado pois seria uma ameaça à tradição. Afinal, “pensar é uma forma de castração e a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas.” Segundo Aristóteles, o ignorante afirma, o sábio duvida e o sensato reflete. O fascista afirma suas “verdades” sem refletir e sem permitir a dúvida. Nega-se a racionalidade e, com ela, a ciência (negação da evolução darwiniana, da esfericidade da terra, das vacinas e das alterações climáticas). O que se acredita prevalece sobre os fatos.
3) O desacordo é traição e sinal de inaceitável diversidade. O fascismo busca um consenso a qualquer preço, admitindo apenas uma única leitura da história. Deve-se aceitar a verdade da ordem estabelecida.
4) Medo das diferenças, dos intrusos. Assim, o fascista é racista por definição.
5) Apelo às classes médias frustradas. Os fascismos históricos fizeram apelo aos grupos sociais que sofreram frustração pelos efeitos de uma crise econômica e se sentiram injustiçados pela política liberal democrática.
6) O nacionalismo exacerbado, que leva a uma “obsessão da conspiração, possivelmente internacional” e, como consequência, à xenofobia. Nem todo nacionalista é fascista, mas todo fascista é nacionalista. O nacionalismo vulgar é o fator agregador do fascismo (“Pátria acima de tudo”).
7) Espírito beligerante, pois “o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente.” O fascismo necessita de um inimigo permanente. A violência é aceita e há um culto pela luta, pelas armas, pelo militarismo. Mas “como tanto a guerra permanente quanto o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais.” Donde origina-se o “desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não conformistas, da castidade à homossexualidade.”
Nega-se a liberdade de opção sexual.
8) Populismo. O líder e certos grupos sociais se tornam os intérpretes únicos da voz do povo (sem escutá-lo), da vontade comum. Mas, se a liberdade é o dom maior que garante nossa dignidade, por que a entregamos a um tirano? Étienne de la Boétie, em 1548, tentou responder a esta questão no Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Segundo ele, o poder do tirano origina-se, sobretudo, da magia que seu nome é capaz de cativar e se mantém em razão de uma suposta segurança. O hábito de pertencer ao rebanho do tirano parece mais seguro do que ser responsável pelo próprio destino e nos poupa da angústia de pensar, nos condenando a ser sempre os mesmos. Depende do oprimido permitir a opressão. Somos seduzidos pela servidão e os tiranos são grandes porque nos colocamos de joelhos.
O relatório do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (International Institute for Democracy and Electoral Assistance), com sede em Estocolmo, publicado no dia 22 de novembro último, demonstra a erosão da democracia e o avanço do autoritarismo em vários países. Segundo o Instituto, o Brasil registrou o “maior declínio democrático” entre 150 países analisados. A Instituição alerta que 70% da população mundial vive em países onde há retrocesso democrático e que o número de países que se dirigem para o autoritarismo superou o número daqueles em fase de democratização.
O fascismo, longe de ser apenas um momento histórico na Europa do século 20, é uma ameaça constante à nossa sociedade. Umberto Eco finaliza advertindo que é necessário estar atento para não se esquecer como o fascismo surgiu e como assume novas faces. Há um ciclo nos movimentos totalitários: eles vêm e voltam. Logo, “nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas, a cada dia, em cada lugar do mundo”.
Os indícios apontados por Umberto Eco estão presentes entre nós, constituindo um terreno fértil para o totalitarismo se instalar. No filme “O Ovo da Serpente” (uma profunda reflexão sobre as origens do nazismo) Ingmar Bergman mostra que a chocadeira apropriada do ovo da serpente totalitária é a depressão econômica, desemprego, insegurança, instabilidade política, corrupção e crise moral. Tudo isso leva ao medo e à esperança, formando a matéria prima dos líderes carismáticos, messiânicos. Desta chocadeira eclodiu, na primeira metade do século 20, a serpente do totalitarismo (fascismo, nazismo e comunismo) que envenenou o mundo, causando a morte de milhares durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos seguintes. Mussolini, Hitler e Stalin traziam consigo a vontade doentia de poder, o ovo da serpente totalitária, o veneno do fascismo eterno. Este veneno está na mente dos líderes totalitários.
Querer reviver regimes autoritários seria transformar o passado em coveiro do presente, ignorando a história. Totalitarismo significa perda da liberdade e, consequentemente, da dignidade humana. Esta dignidade está assentada em nossa mente livre, geradora de conhecimento, para determinar nosso destino e procurar desvendar o universo.
Entre os totalitarismos, à direita ou à esquerda, a história mostra que a verdade está na democracia, na liberdade. A democracia não garante o paraíso na terra, mas impede que o inferno fascista se instale. Mas o preço da liberdade é a eterna vigilância, pois a democracia pode sofrer perdas progressivas até chegar ao limite do totalitarismo, e mesmo ultrapassar este limite, como demostra a história contemporânea. O seguro é opor-se ao envenenamento da democracia, manter a serpente fascista dentro do ovo.
Apesar de estarmos numa democracia formal, vivemos tempos fascistas, de exclusão do Outro. O diálogo parece possível apenas entre iguais. Aquele que não comunga as mesmas ideias torna-se um inimigo que necessita ser eliminado. Nossa ignorância, muitas vezes, não nos permite reconhecer nossos preconceitos e intolerâncias, o réptil dentro de nós que está tentando romper a casca do ovo fascista.
Este ovo está sendo incubado pelo analfabetismo funcional, pela intolerância e pelo fanatismo para gerar a serpente do totalitarismo com seu veneno mortal para a democracia.
Tanto a vontade de poder como a servidão voluntária fazem parte de nossa natureza. Assim, a luta pela liberdade é tarefa sem fim, pois o fascismo é eterno.
*Doutor Sebastião Gusmão, além de professor é neurocirurgião, Filósofo, pesquisador, e, atualmente, é coordenador do serviço de neurocirurgia do Hospital das Clínicas da UFMG. Tem 27 obras publicadas.