
O Brasil precisa enfrentar essa realidade com coragem, clareza e estratégia. CRÉDITOS: Divulgação
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08-04-2025 às 10h28
José Aluísio Vieira*
Em algumas regiões do Brasil, a realidade já não comporta mais eufemismos: o crime não apenas domina ruas e vielas — ele governa. Controla o fornecimento de energia elétrica, impõe suas regras sobre o acesso à internet, decide quem pode circular e quem deve se calar. E pior: cobra por isso.
Quando uma facção regula o fornecimento de gás e cobra “impostos” sobre serviços essenciais, estamos diante de um Estado paralelo — mas não mais informal. É um governo criminoso, operando à luz do dia, com autoridade consolidada e apoio (ou medo) popular.
O “Atlas da Violência 2024” estima que 52.391 pessoas foram assassinadas em 2022, uma taxa de 24,7 homicídios por 100 mil habitantes, quando se incluem 5.982 homicídios ocultos — mortes violentas não classificadas oficialmente como homicídios devido a causas indeterminadas. Em comunidades como o Complexo do Alemão (RJ), milícias e facções como o Comando Vermelho (CV) controlam serviços essenciais: cobram até R$ 100 mensais por gás e segurança, segundo reportagens do “O Globo”. Em São Paulo, o Primeiro Comando da Capital (PCC) regula preços de botijões em favelas como Paraisópolis, conforme investigações da Polícia Civil. Esse Estado paralelo movimenta bilhões: o PCC sozinho lucra cerca de R$ 10 bilhões anuais com o tráfico, estima o Ministério Público Federal (MPF).
Essa realidade é o resultado de décadas de ausência estatal. Onde faltam escolas, saúde e segurança, o crime se estabelece como uma presença mais confiável — e opressiva — que o governo.
A falência da soberania estatal não se dá em discursos, mas em territórios perdidos. Quando o policial precisa de autorização judicial para entrar em áreas dominadas, enquanto criminosos circulam armados em veículos blindados caseiros, algo está profundamente errado. As decisões do Supremo Tribunal Federal ao limitar operações policiais visaram, em tese, proteger vidas inocentes. No entanto, ao não oferecer alternativas eficazes ao cerceamento da ação policial, acabaram por entregar ainda mais poder aos que dominam essas áreas com violência e opressão.
Não se trata de defender o abuso policial — longe disso. Mas é preciso reconhecer o óbvio: não há política pública, programa social ou plano educacional que se sustente onde o Estado perdeu o monopólio da força. O combate ao crime precisa ser tão estratégico quanto firme. E precisa começar agora.
A soberania estatal desmorona em territórios perdidos. Em 2022, a Bahia registrou a maior taxa de homicídios do país (45,1 por 100 mil habitantes), seguida por Amazonas (42,5), segundo o “Atlas da Violência 2024”. Na Favela da Rocinha (RJ), traficantes circulam em veículos blindados caseiros, enquanto a polícia enfrenta barreiras legais como a ADPF 635, que desde 2020 limita operações no Rio. Embora tenha reduzido a letalidade policial em 34% em seu primeiro ano (Instituto Fogo Cruzado), a medida não conteve o avanço do crime: Salvador, a capital mais violenta do país em 2022, teve taxa de 47,8 homicídios por 100 mil.
No Amazonas, o Cartel do Norte domina rotas fluviais do Rio Solimões, transformando Manaus em um polo de tráfico com 42,5 homicídios por 100 mil habitantes. Em São Paulo, a subnotificação mascara a realidade: a taxa oficial de 6,8 por 100 mil sobe para 12 quando se consideram homicídios ocultos (“Atlas 2024”), evidenciando falhas na identificação de mortes violentas.
Propostas para retomar o controle
- Criação das Zonas de Recuperação Institucional (ZRIs)
Territórios sob coordenação federal, com forças de segurança integradas, monitoramento externo (inclusive por organismos internacionais) e atuação conjunta em segurança, saúde, educação e regularização de serviços públicos.
- Definição: Áreas como o Complexo da Maré (RJ) ou Paraisópolis (SP) sob intervenção federal, com forças integradas (PF, Exército, polícias locais) e supervisão da ONU.
- Implementação: Iniciar com 5 pilotos em 2026, com R$ 500 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública. Regularizar energia (30% é desviada em favelas do RJ, diz a Enel) e construir 10 escolas por ZRI em 3 anos.
- Evidência: Medellín reduziu homicídios de 381 para 20 por 100 mil entre 1991 e 2010 com presença estatal e urbanização.
- Policiamento de proximidade e presença contínua
Em vez de operações espetaculares e pontuais, estabelecer presença permanente com unidades treinadas para diálogo, escuta comunitária e atuação preventiva. O policial deve deixar de ser o “invasor” e passar a ser o “vizinho confiável”.
- Plano: Instalar bases permanentes com 50-100 policiais em comunidades como Cidade de Deus (RJ), com R$ 200 milhões anuais para treinamento em mediação e direitos humanos.
- Exemplo: Diadema (SP) cortou homicídios em 70% (2002-2010) com guardas fixos e diálogo comunitário.
- Estrangulamento financeiro do crime organizado
O combate precisa ser econômico. Rastrear dinheiro, empresas de fachada, esquemas de lavagem. Tirar o poder do crime é secar suas fontes de renda. Isso exige inteligência, tecnologia e cooperação internacional.
- Estratégia: Força-tarefa com Receita Federal e Coaf para rastrear os R$ 10 bilhões anuais do PCC e CV. Em 2024, R$ 5 bilhões em criptomoedas do PCC foram bloqueados (“Atlas 2024”). Confiscar bens de 100 empresas de fachada por ano.
- Modelo: A Itália confiscou € 30 bilhões da máfia desde 1982 com a Lei Rognoni-La Torre.
- Intervenção nos serviços capturados
O fornecimento de energia, gás e internet deve ser retomado pelo Estado, com o apoio — quando necessário — de empresas privadas em regime de exceção, sob supervisão rígida e metas sociais claras.
- Ação: Retomar energia e internet com parcerias público-privadas em 50 comunidades até 2027, investindo R$ 1 bilhão. Punir líderes com multas de R$ 1 milhão por desvio de serviços.
- Dado: Em 2022, 23 milhões de brasileiros viviam sob influência criminosa (“Atlas 2024”).
- Justiça de resposta rápida
Criar câmaras especializadas no combate ao crime de domínio territorial, com foco em julgamentos céleres, garantia de direitos e penas proporcionalmente severas para líderes do crime que usurpam funções estatais.
- Estrutura: Criar 10 varas especializadas em capitais, com 50 juízes julgando crimes territoriais em 90 dias. Inspirar-se no Gaeco (SP), que desarticulou redes do PCC.
- Contexto: Apenas 8% dos homicídios resultam em condenação no Brasil (“Rio de Paz, 2019”).
- Revisão do pacto federativo
A segurança nacional não pode ser refém de disputas entre esferas de poder. É preciso constitucionalizar mecanismos de ação integrada entre municípios, estados e União, com protocolos de emergência em áreas sob risco de captura criminosa.
- Proposta: Constitucionalizar ação integrada com R$ 2 bilhões anuais para estados em crise, como a Bahia, onde 7 das 10 cidades mais violentas do país estão (“Atlas 2024”).
- Exemplo: A Lava Jato provou a eficácia da cooperação interinstitucional.
Não há democracia onde o cidadão vive sob ordens de fuzis e sentenças de “tribunais” criminosos. Não há progresso onde o crime é governo. O Brasil precisa enfrentar essa realidade com coragem, clareza e estratégia. A recuperação dessas áreas não é uma questão apenas de segurança pública. É uma missão de reconstrução institucional e moral do Estado brasileiro.
Não há democracia onde 52.391 vidas são perdidas em um ano, como em 2022 (“Atlas da Violência 2024”). O custo da violência — R$ 240 bilhões, ou 2,3% do PIB (Banco Mundial, 2023) — exige ação urgente. Um investimento de R$ 15 bilhões anuais, menos de 1% do PIB, pode reverter esse cenário. O Estado pode até ter renunciado em silêncio, mas ainda pode — e deve — retomar a palavra, o território, retomar o controle.
* José Aluísio Vieira consultor empresarial, educação financeira e finanças empresariais