Embora as consequências da ditadura continuem sendo devastadoras e um grande mal a ser derrotado no Brasil, hoje, também me ponho a pensar na triste doença do Alzheimer
19-11-2024 às 09h:39
Sérgio Augusto Vicente*
Ainda não assisti ao filme “Ainda Estou Aqui”, mas li o livro em 2017. Na época, a leitura foi norteada pelo meu sequioso dever de historiador em refletir sobre as memórias da ditadura civil-militar brasileira. Uma motivação política.
Hoje, porém, o filme me chama atenção pela dupla dimensão da luta contra o esquecimento na trajetória da protagonista Eunice Paiva, mãe do autor e esposa da vítima da opressão, o Rubens Paiva: de um lado, o esquecimento político intencional e sistemático dos detratores da democracia, que sumiram com o corpo de seu marido; de outro, a doença de Alzheimer, que a acometeu na velhice, depois de tantas batalhas por justiça e publicização da verdade.
Embora as consequências da ditadura continuem sendo devastadoras e um grande mal a ser derrotado no Brasil, hoje, também me ponho a pensar na triste doença do Alzheimer, que subtrai a identidade e a essência de uma pessoa antes mesmo de sua partida definitiva, que leva à morte silenciosa antes do óbito. Quantas famílias não estão padecendo com algum ente pego de surpresa por essa doença traiçoeira?
Isso tudo nos leva a dimensionar a importância que as memórias têm em nossas vidas. Sem ela, a memória, não existe vida humana. E o Alzheimer dá justamente uma rasteira nas memórias mais recentes, aquelas que dizem respeito aos instantes que viram passado logo que nascem. Para a pessoa acometida por esse mal, não existe passado recente. Um abismo se abre. A fotografia se esmaece a cada dia até mergulhar no mais profundo universo vazio, no silêncio que ensurdece, no branco que não se confunde com a paz, no eterno e aflito desejo de regressar à casa onde viveu a infância, no enxergar na face do filho o rosto do pai que há muito já partiu. O “há pouco” se torna terra do nunca, enquanto o “há muito” se transforma no agora. Até que, um dia, nem uma coisa nem outra. O coração bate em um corpo que não é habitado pela mesma alma. Esta já se despediu tão sorrateiramente que já se fez cumprir o luto antes do suspiro final.
Esse é o grande mistério ou tragédia da vida. Tragédia que não heroiciza as vítimas como num desfecho brutal de uma batalha em que um bravo guerreiro morre por uma causa. Trata-se, pelo contrário, de uma batalha silenciosa, sem holofotes, sem aplausos, sem choro, sem plateia. Uma partida ainda mais solitária do que a solidão que, por si só, já define a morte. Currículos, status, poder, cargos, dinheiro, glamour, ostentação… Tudo se esvai como a sublimação nada sublime de uma pedra de naftalina sem cheiro.
Mas “Ainda Estou Aqui” nos deixa uma mensagem de esperança, que consiste em acreditar que vale a pena lutar. Foi a luta de Eunice, em seus tempos de consciência, que possibilitou a sua redenção em uma narrativa futura, escrita pelo filho e, posteriormente, transformada em filme internacionalmente reconhecido. Eunice “Ainda está aqui”, assim como os resquícios da ditadura, entranhada em nossa cultura política, mas, por isso mesmo, mais necessário se faz que ela (Eunice) ainda permaneça entre nós como símbolo e representação da luta por direitos e justiça. Mais do que nunca ela precisa estar entre nós para inspirar um mundo tão esvaziado de forças progressistas.