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Entre a Formalidade e a Flexibilidade. Novas formas de normatividade emergem para acompanhar a
dinamicidade do mundo contemporâneo.
12-02-2025 às 09h47
Marina Madeira*
Após duas Guerras Mundiais na primeira metade do século XX, a necessidade de uma cooperação global mais estruturada se tornou evidente para Estados e atores não governamentais. O sistema internacional em que confiamos hoje para lidar com problemas transfronteiriços, como as mudanças climáticas, o terrorismo, crises humanitárias e pandemias de saúde, foi estabelecido após este período. A totalidade e resultados desses esforços coletivos que advém da multiplicidade de arranjos e interações entre atores bem como sua dinâmica, seus processos para tomada de decisões, gerenciamento e enfrentamento de problemas transnacionais, é chamada de Nova Governança Global.
O direito internacional tradicional tem mostrado limitações diante da dinamicidade do mundo contemporâneo e, por isso, alguns processos da nova governança global podem estar fora do seu escopo a medida que carecem de certas formalidades. Esses processos emergentes têm sido chamados de “formulação informal do direito internacional” e sua informalidade pode estar relacionada aos atores envolvidos, ao processo em si, aos resultados ou a uma combinação desses aspectos.
Sobre o prisma dos autores, a formulação do direito internacional informal não se limita aos atores diplomáticos tradicionais, como chefes de Estado, ministros das Relações Exteriores e embaixadas, e envolvem diferentes atores dentro do Estado, como reguladores domésticos, agências independentes,corporações trasnacionais e o mercado de capitais globais, movimentos da sociedade civil e entidades subfederais ou ramos legislativo ou judicial, chamados de atores informais. O FSC, por exemplo, é uma organização global sem fins lucrativos que define padrões para tornar o manejo florestal ambientalmente responsável, socialmente benéfico e economicamente viável a longo prazo. A Fair Wear Foundation é uma organização independente que trabalha com marcas de vestuário, trabalhadores e influenciadores da indústria para melhorar as condições de trabalho na indústria do vestuário. A Better Cotton Initiative, ou BCI, visa tornar o algodão uma commodity sustentável de forma generalizada, reduzindo os impactos ambientais da produção de algodão e melhorando os meios de subsistência e o desenvolvimento econômico das áreas produtoras de algodão. A Rainforest Alliance foi fundada em 1987 como uma organização não governamental que promove negócios responsáveis e oferece certificações para silvicultura e agricultura sustentáveis, e mais particularmente nos setores de café, cacau, chá, avelã e banana, mas também para o turismo sustentável, por exemplo.
No que diz respeito ao processo, a formulação do direito pode ser considerada informal quando ocorre, não dentro de uma organização internacional tradicional (constituídas por tratados entre Estados, detentoras de personalidade jurídica internacional e regidas pelo Direito Internacional), mas em redes organizadas de maneira frouxa, como redes transgovernamentais (organizações baseadas em uma expectativa compartilhada, em vez de um acordo vinculativo) ou organizações internacionais informais. Como exemplo de organizações informais, podemos nos referir ao Grupo dos 7 (G7) ou ao maior Grupo dos 20 (G20), por meio dos quais as principais economias do mundo se engajam na coordenação de políticas não vinculativas, em vez de estabelecer regras formais. Esses fóruns promovem a adoção de diretrizes e recomendações que, embora não vinculativas, influenciam diretamente o comportamento dos Estados e empresas.
A formulação é considerada informal em termos de seu resultado quando, em vez de levar à adoção de uma hard law,como os tratados, com efeito impositvo e vinculativo e sanções estabelecidas, leva à adoção de soft laws, que tem como característica principal a flexibilidade de que são dotadas. Elas, no entanto, ainda são normativas e influenciam o comportamento dos atores. Existem muitos exemplos de instrumentos informais ou de soft law, e são declarações, diretrizes, resoluções, códigos de conduta, e outras promulgações: as Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais, que estabelecem padrões para uma conduta empresarial responsável; os padrões de capital, liquidez e financiamento bancário adotados pelo Comitê de Supervisão Bancária de Basileia; o Codex Alimentarius, um conjunto de diretrizes e códigos de prática sobre padrões alimentares destinado a contribuir para a segurança, qualidade e equidade do comércio internacional de alimentos, desenvolvido pela FAO e pela Organização Mundial da Saúde; são todos exemplos. Apesar de serem voluntários e não vinculativos, esses padrões e diretrizes são frequentemente seguidos por Estados e atores privados, como empresas, bancos, fornecedores e produtores.
A vantagem na formulação informal de normas reside no fato dessas atividades de cooperação serem mais rápidas e eficazes do que a formulação tradicional de normas, tornando-as atraentes para os atores internacionais. A cooperação informal é tipicamente mais flexível, dispensando regras processuais estritas e maiorias de votação, e também pode ser menos custosa, pois geralmente não requer o financiamento de um secretariado ou infraestrutura permanentes. Redes de governança informais também frequentemente envolvem uma gama mais ampla de partes interessadas e permitem que participem das negociações, o que pode resultar em melhores resultados e melhor implementação.
Esses instrumentos também são mais fáceis de desenvolver e adaptar conforme o problema no mundo real evolui, o que não é o caso dos tratados internacionais tradicionais. Além disso, acordos não vinculativos podem alcançar níveis de conformidade semelhantes ou até superiores em comparação com a formulação tradicional de normas.
Por essas razões, a formulação informal de normas é particularmente atraente para questões que são tecnicamente complexas, que exigem regulamentação detalhada e eficaz, ou em questões altamente políticas, onde é mais difícil alcançar um acordo formal entre os Estados.
A Nova Governança Global reflete uma evolução do direito internacional para um modelo mais dinâmico e adaptável , que busca maior agilidade para responder a questões globais urgentes ao mesmo tempo que garante previsibilidade e estabilidade normativa em áreas de interesse comum. Embora os instrumentos formais do direito internacional continuem relevantes, a interação entre hard e soft laws é essencial para enfrentar desafios globais contemporâneos a medida que se complementam.
Em um mundo marcado por crises complexas e interdependentes, a governança global deve equilibrar agilidade e legitimidade, garantindo que a cooperação internacional continue a promover soluções eficazes e justas para todos os envolvidos e afetados.
*Marina Madeira é Cientista do Estado pela UFMG, Bacharel em Direito pela PUC Minas, Advogada especialista em Compliance