
CRÉDITOS: Divulgação
09-08-2025 ás 10h30
Rogério Reis Devisate*
A história é remédio eficaz para as crises de memória ou de identidade política. Embora seja cheia de detalhes, o imaginário popular se fixa em pessoas e momentos, dispensando o contexto. Por limitar-se à superfície dos acontecimentos, tende a condenar alguns e “aliviar” os que se apresentam como Robin Hood, esquecendo-se que as pessoas são complexas e que a vida desafia o caráter e a responsabilidade, continuamente, motivo pelo qual a condenação ou o enaltecimento de alguém por uma obra não costuma ser justa.
Muito além das opiniões individuais e da construção dos personagens no imaginário, os fatos são ótimos como fonte de informação e nos ajudam a escapar das ilusões das massas e das armadilhas das suas versões. Não negamos que os comportamentos das massas envolvam algo peculiar.
Freud a examinou e escreveu a obra “Psicologia das massas e análise do eu”. O tema interessou a outros autores e pensadores, tendo Charles Mackay produzido “História das Ilusões e loucuras das massas”, abordando os “problemas de percepção”.
Não é incomum que, querendo participar ativamente dos episódios da história contemporânea, torçamos os fatos e argumentos, para que caibam nas nossas intenções e pessoais narrativas. Assim, as massas tendem a afastar a simples e óbvia verdade do fato, substituindo-a por algo de que possa se apropriar, ou seja, de uma história onde seja, ao mesmo tempo, narradora e personagem, moldando os acontecimentos ao seu gosto e sabor.
Sobre certos vultos históricos, os contextos são fundamentais para que entendamos os acontecimentos. Se não ampliarmos os fundamentos das nossas análises, erraremos nos diagnósticos. Como exemplo, podemos dizer que fica difícil entender o motivo pelo qual a Coroa Portuguesa foi tão dura com Tiradentes, que foi preso em 1789, se não associarmos esse fato ao início da Revolução Francesa, que começou no mesmo ano. Portugal freou os anseios por liberdade e independência do Brasil, agindo com extremo rigor, com medo de que ocorresse, aqui, o que acontecia na França.
Por falar naquela Revolução, um dos seus principais personagens, Robespierre, fomentou o ódio e fez o Terror se instalar, até que sofreu resistência à altura. Agia com extremo rigor, portando-se como tirano revolucionário em nome de uma utópica república ideal, até que a guilhotina, arma que usou contra tantos, acabou cortando, também, a sua cabeça.
Hitler era vegetariano. Também não bebia e não fumava. Esses detalhes parecem surpreender a muitos, mas não impediram que liderasse o partido do socialismo nacional alemão e governasse com mão de ferro. Morreu isolado, sozinho, após dias de sobrevivência em bunker subterrâneo. Pela versão oficial, teria se suicidado e o seu corpo teria sido queimado. Da sua existência pessoal, nada sobreviveu e nem tem túmulo.
Mussolini, no ano de 1922, chegou ao poder na Itália. Inspirou Hitler, que assumiu o poder em 1933, na Alemanha. Depois, Hitler passou a inspirar decisões de Mussolini. Governaram com mãos de ferro e se valeram de forças militares e policiais paralelas. As liberdades individuais foram erodindo. Quando derrotado, Mussolini foi executado a tiros – fato ocorrido dois dias antes da morte de Hitler. O corpo de Mussolini ficou dependurado numa viga, sendo alvo de insultos e de objetos lançados pelo povo. Foi enterrado em cova sem identificação…
Saddan Hussein dirigiu o Iraque como ditador e, com a queda do regime, foi encontrado escondido num buraco e, depois, levado à morte por enforcamento. Não teria sido enterrado e o paradeiro do corpo é um mistério. Muammar al-Gaddafi, na Líbia, também foi deposto, cassado e espancado pelos milicianos que o capturaram e desfilaram com o seu corpo ferido pelas ruas. Depois foi morto, baleado. Idi Amim Dada governou Uganda e fez do terror um instrumento de governo, até que foi deposto. Anastásio Somoza, que governou a Nicarágua com vigor tirânico, também foi para o exílio, onde foi assassinado. O fim trágico também atingiu ditadores que governaram Roma. Nero passou por isso, até suicidar-se. Calígula e Commodus aprontaram, até ser mortos em conspirações.
Os exemplos demonstram que não há paz, após a deposição, para quem não construiu alianças a não ser pelo ódio, usando a manipulação e o medo como instrumentos dessa dominação.
A lista seria grande, imensa. Todavia, este não é o objetivo deste pequeno e despretensioso texto. Em verdade, guardadas as proporções e peculiaridades, aqueles que chegam ao poder por golpes e manobras desonestas, tendem a perdê-lo em circunstâncias equivalentes. É um tipo de karma político e concretização adaptada da máxima “quem com ferro fere, com ferro será ferido”.
As cumplicidades que se formam envolvem os vínculos subjetivos pela tomada do poder e terminam aí. A partir desse momento, a dinâmica passa a ser outra: a criação de uma nuvem lírica de figuras de linguagem; a instituição de um núcleo, com forças que possam proteger os governantes, contra todos; a intriga palaciana; a criação de uma novel força militar ou paramilitar para cercar a chefia de governo, distinta das forças militares de defesa do país; a caçada aos adversários; a criação de mitos que possam servir para enaltecer as figuras do governo e os seus elevados valores, ao mesmo tempo em que condenam e desqualificam os adversários.
Assim que essa aparência de união e confiança se esvai, os grupos se afastam e buscam a sua proteção, fazendo-o com a entrega de nomes e de pactos secretos, fomentados pelo malcheiroso fogo da intriga e da traição. Nesse jogo, enquanto se protege a própria cabeça, não raro se entrega – de bandeja – o líder supremo e as lideranças que o envolvem. Nesse jogo, deve cair a cúpula, para a sobrevivência da base. Para que o sistema funcione, com pequenas variações, é assim que acontece, em qualquer tempo e espaço.
O povo, normalmente, fica alheio a tudo. Impotente e submisso, funciona como plateia dos programas de televisão, aplaudindo ou vaiando, cantando ou dançando, conforme as orientações que recebem. Pouco ou nada pode fazer, enquanto o show acontece. Mas, no tempo em que se desfazem as amarrações danadas e violentadoras, da tirania que perfaz a ordem do dia, o povo se sente livre para agir conforme a sua natureza, ocasião em que canta nas ruas, livre e feliz, comendo e bebendo e dançando, não só sobre o cadáver político do ditador de plantão mas, também, por um vigor biologicamente natural, anterior às formalidades da existência dos indivíduos de ruas, bairros e cidades, pois são as pessoas se lançando em comemoração pelo retorno da sua mais pura e simples tradução da liberdade. Esse é um alto valor, sem tradução e significação em preço monetizado.
A grande massa tem consciência de que esse baile de máscaras não tem valor algum, que a vida humana precisa ter sentido maior e que o medo e desvalia que a tirania causa não podem mesmo existir. Liberto dos grilhões, rompendo os vínculos de modo simples e direto, fala ao tirano: “-Está tudo acabado entre nós! Agora, somos livres, livres, de novo.”
Àquele que confundia o medo que causava com respeito e prestígio, pouco caberá, no final.
Do outro lado, as pessoas cantarão por novos tempos e cada verso enterrará mais fundo o que se experimentou. Como bem fala o “Hino da Independência do Brasil”, sempre teremos o raiar da liberdade no horizonte.
*Rogério Reis Devisate é Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ.